quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Adeus ao Velho Mundo


Javier Santiso
Valor 17/08/2011
As pedras de dominó continuam caindo, uma após a outra. A crise financeira de 2008 não para de multiplicar paradoxos. Enquanto os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) viam suas dívidas trilharem caminhos explosivos, nos incitando cada vez mais a comparar suas experiências com as dos países emergentes nas décadas de 80 e 90, esses mesmos mercados emergentes precisavam esfriar o entusiasmo dos investidores. Enquanto, por exemplo, os países da América Latina conseguiam, um após o outro, chegar a "ratings" de crédito dentro do "grau de investimento" (primeiro o Brasil, depois o Peru e, mais recentemente, ainda de forma parcial, a Colômbia), os países da OCDE viam suas dívidas e riscos soberanos reclassificados pelas agências avaliadoras de crédito.

Em agosto de 2011, outro dominó e outro tabu caíram. Pela primeira vez, uma das agências, a Standard & Poor's, rebaixou a classificação de crédito dos Estados Unidos - após ter elevado a da Colômbia algumas semanas antes. A notícia não é trivial. Os bônus do Tesouro dos Estados Unidos, até então, eram considerados os mais seguros do mundo, considerados até como "livres" de risco, de acordo com os mercados. Os "treasuries" possuem funções cruciais no sistema financeiro internacional, porque são os bônus de maior liquidez do mundo, servem como ativos de refúgio em períodos de estresse e são usados até como referência absoluta para determinação dos preços dos demais títulos do planeta. Quando Brasil ou Rússia emitem títulos de dívidas, seus preços de referência são estabelecidos em função dos bônus dos Estados Unidos. Todo o setor financeiro se baseia no postulado de que os "treasuries" são os bônus de referência, por serem os papéis mais seguros. Esse postulado, agora, está voando pelos ares.

Depois da crise de 2008, os prêmios de risco de muitos países da OCDE começaram a convergir com os dos países emergentes. Enquanto os primeiros viam seus spreads aumentarem e, portanto, suas classificações de crédito caírem, os últimos viam seus prêmios recuarem e as avaliações melhorarem. Hoje em dia, a Grécia está no mesmo nível que a Argentina, considerada pelos mercados como um dos países de maior probabilidade de inadimplência ou reestruturação de sua dívida soberana. Por sua vez, Portugal exibe um prêmio de risco muito superior ao de sua antiga colônia, Brasil. Em abril de 2011, o ex-presidente Lula chegou a insinuar que o Brasil poderia resgatar Portugal, comprando bônus portugueses, enquanto o "Financial Times" sugeria com certa ironia que Portugal aceitasse ser anexado pelo Brasil... para poder assim resolver a crise e reduzir seus prêmios de risco.

O anúncio da Standard & Poor's também deixa em evidência que os países emergentes se transformaram nos protagonistas das finanças mundiais. Dessa forma, em meados de 2011, os maiores detentores de bônus dos Estados Unidos deixaram de ser os países da OCDE: entre os dez maiores detentores, a metade era de países emergentes. A China lidera, agora à frente do Japão e Grã-Bretanha, com mais de um terço de seus US$ 3,2 bilhões em reservas internacionais investidos em bônus americanos. Por isso, mal a notícia da Standard & Poor's foi anunciada, Pequim apressou-se em chamar a atenção de Washington, sem deixar a ironia de lado, para tomar cuidado e não deixar a classificação de seus bônus cair ainda mais - ou seja, dando conselhos ao país sobre como lidar com sua crise. A China, no entanto, não é o único país emergente com bônus dos Estados Unidos em abundância; logo depois da Grã-Bretanha aparece o Brasil, com cerca de US$ 200 bilhões investidos em "treasuries". A seguir, vêm mais três mercados emergentes - Taiwan, Rússia e Hong Kong - todos agora à frente da Suíça, Canadá e Luxemburgo.

A geografia dos países não muda. A geografia financeira, sim. O que estamos presenciando é um mundo no qual as certezas mais arraigadas do passado começam a ser questionadas. Quando Stefan Zweig chegou ao Brasil, em meados do século passado, escreveu que se tratava do país do futuro. Sem dúvida os emergentes são os países do futuro. Mais do que isso, transformaram-se em países do presente: China, França, Índia e todos os demais se converteram em importantes atores econômicos industriais e financeiros. Enquanto isso, os países da OCDE, com os Estados Unidos à frente, sem perder seu protagonismo, verão como deixarão de ser os únicos epicentros do mundo, as referências absolutas a partir das quais tudo é comparado. E isso também vale para o mundo financeiro.

Javier Santiso é professor de Economia na Esade Business School

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