quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Desmontando a armadilha: o papel do microcrédito



Por Fábio José Ferreira da Silva - Valor 14/09

Na década encerrada em 2010 o Brasil obteve avanços sociais importantes, destacando-se a melhora da distribuição de renda, a ascensão social e a redução da pobreza extrema, associados à melhora das condições no mercado de trabalho, às políticas de transferência de renda e a estabilidade monetária. Ainda assim, o Brasil possui cerca de 40 milhões de pobres, de acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) relativos a 2009, o que reforça a necessidade de se aprimorar políticas públicas de combate à pobreza e expandir as que vêm dando certo.

A pobreza tem um caráter inercial, ou seja, costuma passar de pai para filho. Há pelo menos duas razões, complementares, para esse fato. Inicialmente, deve-se considerar que a necessidade de suprimento de bens básicos norteia as ações das famílias pobres, levando a uma sobrevalorização do presente em detrimento do futuro. Como resultado, a primeira explicação para a persistência da pobreza é que filhos de pais pobres começam a trabalhar desde cedo para ajudá-los no sustento da casa, afastando-se da escola e, com baixa escolaridade, a possibilidade de se romper a pobreza se reduz substancialmente. Infelizmente, essa espécie de "miopia temporal" joga contra o melhor mecanismo de combate à pobreza, mas cujo retorno é de longo prazo, que é a educação. Para reduzir essa distorção faz sentido exigir dos beneficiários de programas sociais, como contrapartida, a manutenção das crianças na escola, em linha com o que se observa com o programa Bolsa Família. Além da inclusão, pode-se dizer que existe consenso de que o próximo passo envolve medidas que melhorem a qualidade do serviço.

Outra razão que confina famílias pobres em uma armadilha de pobreza - conforme descreve Jeffrey Sachs no livro "The End of Poverty: Economic Possibilities for Our Times" - é a restrição imposta aos investimentos. Para desenvolver qualquer atividade, por menor que ela seja, é necessário algum capital. Expandir a produção agrícola além da subsistência, por exemplo, requer a compra de sementes e outros insumos, o que implica a existência de recursos disponíveis, que é justamente o que a família não tem. Teoricamente, o sistema financeiro poderia resolver esse problema, canalizando recursos daqueles que têm sobra para onde ele é escasso. Entretanto, a falta de garantias dos demandantes e o elevado custo fixo em relação ao valor dos empréstimos desencorajam os ofertantes, comprometendo seu bom funcionamento. Nesse contexto é que o microcrédito - que é o crédito de baixo valor para pessoas de baixa renda, voltado ao investimento - pode ter um papel decisivo.

O papel do microcrédito no combate à pobreza vêm ganhando importância nos últimos anos, consolidando-se com a escolha de Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank, de Bangladesh, como prêmio Nobel da Paz em 2006. No Brasil, as primeiras iniciativas ocorreram nos anos 70, ganhando musculatura com a criação do Programa Nacional do Microcrédito Produtivo Orientado que, de 2005 a 2010, desembolsou R$ 9,5 bilhões em 7,3 milhões de operações. O perfil do cliente é composto principalmente por trabalhadores do setor informal (97%), da atividade comercial (88%) que utiliza os recursos para capital de giro (92%). Assim como ocorre internacionalmente são, na maioria, mulheres (63%), evidenciando que o programa pode contribuir para reduzir os diferenciais de gênero no mercado de trabalho.

Um exemplo de experiência de sucesso ocorre com o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) que administra o maior programa de microcrédito da América do Sul, o Crediamigo, cujos recursos, em mais de 90%, direcionam-se aos moradores da região Nordeste. Uma das características interessantes do programa é a responsabilidade solidária. Dessa forma, os demandantes de crédito reúnem-se em grupos e tem incentivos a se autofiscalizarem pois a inadimplência de algum componente repercute sobre os demais.

Os impactos desse programa, analisados em detalhe no livro "Microcrédito o Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro" organizado pelo professor Marcelo Neri impressionam: os participantes do programa tiveram aumento das vendas e do retorno sobre o capital superior aos não participantes. Dos clientes inicialmente pobres, cerca de 50% superaram a linha da pobreza. A inclusão financeira, portanto, ao permitir que as pessoas desenvolvam sua capacidade empreendedora, leva a uma inclusão produtiva e, o que é mais importante, abre portas de saída da pobreza. Além disso, a inadimplência reportada pelo Crediamigo é de apenas 1,2%, em média, do total desembolsado. Em 2010 foi menor ainda, 0,5%.

O potencial de inserção do microcrédito no Brasil é substancial. As pesquisas mais recentes do IBGE relativas a 2009 apontam para um contingente de 23 milhões de empresários e trabalhadores conta-própria no país, dos quais 66% não têm acesso a crédito pessoal - para os mais pobres o indicador é naturalmente maior. Por mais que a situação tenha melhorado em relação aos 76% verificados no ano de 2003, é nítido que o patamar atual ainda encontra-se distante do que seria razoável.

Um dos maiores desafios ao microcrédito é a focalização, que ainda pode ser aprimorada, haja vista que os clientes, via de regra, por mais que sejam de baixa renda, estão em sua maioria acima da linha de pobreza. Logicamente, existem dificuldades para se incorporar esse público, sendo que a integração das bases de dados com a do Bolsa Família é um primeiro passo para identificá-los. A predominância de recursos liberados para capital de giro em relação à compra de máquinas e equipamentos também sugere que os recursos destinam-se a microempresas em operação, quando se poderia enfatizar o desenvolvimento de novos negócios, impulsionando potencialidades locais. Aliando-se às medidas recentemente anunciadas de expansão do microcrédito, esforços nessa direção podem contribuir para a geração de emprego e renda em benefício dos mais pobres.



Fábio José Ferreira da Silva é mestre em Economia pela FGV/SP e analista do Banco Central. fabio.silva@bcb.gov.br




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