segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O DNA da Europa unida

Por Antonio C. Manfredini - Valor 12/12

A Europa unida foi recorrentemente envolvida numa roupagem econômica, mas sua natureza sempre foi política. Quando, em 1951-1952, Jean Monnet, Robert Schumann e Konrad Adenauer, entre outros, criaram a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca) - embrião do Tratado de Roma que, em 1957-1958, criou o Mercado Comum Europeu - o projeto europeu nasceu político. Em que pese a lógica econômica por trás do livre comércio dos insumos críticos da industrialização do pré-guerra e do alargamento dos mercados domésticos, a ideia sempre foi aproximar os países para evitar que o Reno voltasse a ser fronteira conflituosa.

Os horrores das guerras mundiais levaram as elites e a liderança da Europa a aceitar, de bom grado, um projeto ambicioso de uma comunidade de estados "pós-nacionais", em que a coordenação passou a ser mais importante que a soberania. O projeto político da Europa Unida produziu ganhos econômicos e níveis de bem-estar nunca antes atingidos.

A Europa unida sempre foi um projeto das elites. Apesar da importância dos regimes democráticos dos membros fundadores, o povo nunca foi chamado a participar das decisões críticas e, nas raras vezes em que o foi, disse não. A lógica econômica do euro foi atropelada em nome de ambiciosos objetivos políticos: mais Europa menos estados nacionais, mais coordenação menos independência, nenhuma liberdade para a formulação da política monetária, mas remanesceu a soberania nacional sobre a política fiscal, enquadrada pelo pacto de estabilidade - uma moldura frágil desrespeitada até por Alemanha e França.
A Europa foi conduzida por iniciativas predominantemente francesas e aquiescência e recursos significativamente alemães, que se tornaram fonte generosa e silente de fundos para a urdidura do tecido europeu. Os alemães aceitaram esse encargo para construir uma ordem geopolítica em que o fantasma do "problema alemão" fosse para sempre afastado. Essa versão do problema alemão tem agora uma face macroeconômica: sob uma moeda única e nenhum grau de liberdade na política cambial, o mix de política fiscal e monetária que serve a Berlim/Frankfurt não é facilmente aplicável a outros países da UE e vice-versa.

Essa enorme crise europeia de hoje - a chamada crise do euro - é a colisão da agenda política com a agenda econômica, das elites com o povo, das proposições com sua fonte de financiamento.

Os problemas econômicos são amplamente conhecidos: 1) a zona do euro não é uma área monetária ótima; 2) muitas federações fiscais são caracterizadas por transferências significativas entre os entes federados, como condição para operar sob uma moeda única; 3) um ajuste feito exclusivamente pelos devedores em condições dramáticas gera condições economicamente draconianas que desembocam em instabilidade política (a Alemanha é o melhor exemplo: as condições muito severas impostas a ela pelo Tratado de Versailles, predominantemente por inspiração francesa, produziram não só a hiperinflação de 1923, como alimentaram um populismo político que patrocinou a segunda fase da guerra descrita por A. J. P. Taylor); 4) sem um banco central capaz de monetizá-las, as dívidas públicas não são livres de risco de default, já que são um contrato extremamente delicado entre gerações, especialmente se as condições demográficas forem desfavoráveis, como serão na Europa; 5) um banco central crível precisa estar acoplado - ainda que independente - a uma autoridade crível capaz de taxar, caso contrário há uma alta probabilidade de haver risco moral e, no limite, hiperinflação; 6) no curto prazo o único deus "ex-machina" é o BCE, mas isto pode induzir um comportamento oportunista em diferentes países; 7) garantias menos frágeis de estabilidade, provavelmente requererão um novo tratado europeu e uma nova perda de liberdade dos Estados membros: a política fiscal será comunitária.

Dado o DNA da Europa Unida, uma eventual solução estável e duradoura estará com os políticos, dificilmente será aprovada diretamente pelos eleitores e implicará em menos liberdade e mais necessidade de coordenação fiscal entre os estados-membros

As perguntas que tornam a atmosfera pesada são: 1) a vontade e determinação política desses líderes europeus, após 60 anos do Tratado de Paris que criou a Ceca em meio às feridas do pós-guerra, ainda é a mesma? 2) as elites conseguirão vender esse projeto aos europeus de hoje, mais ricos e mais velhos e menos politicamente ameaçados pela polaridade ideológica do pós guerra? 3) os possíveis financiadores estarão dispostos a prover recursos em condições razoáveis como o fizeram pós 1945, ou serão draconianos como em Versailles em 1919? 4) E os devedores, utilizarão os recursos de forma responsável como fizeram os europeus ocidentais no pós-guerra ou teremos uma nova rodada de risco moral em escala ampliada?

Quando escrevi este artigo, a Europa Unida parecia perigosamente próxima de uma mutação adversa. Os acontecimentos posteriores, de quinta e sexta-feiras, se conformarão ao DNA da Europa Unida e podem ter alterado este processo (em que pese a decisão britânica) embora muito ainda precise ser feito para assegurar a sobrevivência do euro.

É difícil imaginar quem se beneficiaria de uma grande ruptura na Europa mas, como disse Konrad Adenauer, a história é a soma de todos os erros que poderiam ter sido evitados.



Antonio Carlos Manfredini é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo/FGV




Nenhum comentário:

Postar um comentário