terça-feira, 11 de setembro de 2012
Para além da temporada dos furacões
Por Fernando Cardim de Carvalho - Valor 11/09
Poucos momentos da história do capitalismo no pós-Segunda Guerra foram tão marcados pelos riscos de uma catástrofe econômica internacional como o que se abre nas próximas semanas. O fim das férias de verão europeias marca o término da trégua criada pela letargia dos mercados de dívida soberana de países da eurozona durante o período que vai de julho ao final de setembro.
A relativa calmaria desses meses contrasta dramaticamente com a repetição de momentos de pânico vividos no primeiro semestre deste ano, mas se explica menos pela adoção de instrumentos reconhecidos como eficientes de administração da crise do euro, do que pelo apego de europeus a suas férias, mesmo em meio a turbulências profundas como a que assistimos. O fim das férias desperta as consciências amortecidas pelo sol e pelo calor e traz de volta as preocupações com as graves ameaças que pairam sobre a área euro, especialmente no que tange ao status da Grécia e à possibilidade de que Espanha e, possivelmente, Itália se vejam forçadas a finalmente pedir o socorro financeiro formal da chamada troica, constituída pela União Europeia (UE), pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Como nas séries policiais de televisão, em maio e junho deste ano, algumas medidas de suporte foram prometidas aos países mais ameaçados, gerando algum alívio. Mas isso durou pouco tempo. A chamada união bancária, que serviria mais imediatamente para ancorar sistemas bancários frágeis como o espanhol sem submeter o governo do país às mesmas extensas exigências impostas à Grécia, Portugal e Irlanda, foi uma das medidas recebidas com relativo entusiasmo pelos mercados financeiros, antes que ficassem claras as difíceis pré-condições para que essa união fosse criada, incluindo-se aí o espinhoso tema da redefinição das responsabilidades e da estrutura do BCE para administrar essa iniciativa.
Na ausência de medidas concretas no período de férias, pequenas ondas, marolinhas mesmo, foram sendo criadas, ora por alguma declaração do presidente do BCE, Mario Draghi, ora por críticas de autoridades monetárias alemãs, sempre hostis a qualquer medida que envolva o BCE alem do previsto nos seus estatutos de criação, ora por acenos de líderes políticos, ou rumores de acenos dos mesmos líderes, etc.
A partir deste mês, se aproxima a hora da verdade para a zona do euro. Por um lado, uma pressão cada vez mais forte vai se acumulando sobre a Grécia com o objetivo aparente, mas sempre negado, de forçá-la a pedir sua saída da área e, talvez, até mesmo da União Europeia. Os estatutos da UE e do euro não preveem a possibilidade de excluir membros. O caminho preferido dos membros mais fortes seria certamente receber um pedido de saída por parte da Grécia, e sabe-se lá quem mais, de modo a marcar de modo claro a responsabilidade por essa saída. Seria impossível entender de outra forma, não só a insistência da troica em exigências que obviamente não podem ser satisfeitas como também ao aumento periódico de demandas sobre o país.
Mas se a Grécia é o exemplo mais extremo, certamente não é o único. A população de Portugal, por exemplo, se prepara para conhecer nos próximos dias as medidas adicionais o governo local que terá de tomar para cumprir as metas impostas pela troica como preço para seu apoio, que, sem nenhuma surpresa, deixaram novamente de serem atingidas. Espanhóis vivem na expectativa de novos anúncios de cortes em serviços públicos, aumentos de impostos e, naturalmente, de novas quedas de seu Produto Interno Bruto (PIB). À sucessão infernal de contração da demanda pública e aprofundamento da recessão e do desemprego, que impedem o cumprimento de metas fiscais e levam a nova contração de demanda pública e assim por diante, a UE tem pouco a oferecer senão a perspectiva de novos sacrifícios e novas exigências sobre países que já se debatem em crises profundas.
Por quanto tempo ainda? Impossível saber, até pelas incertezas políticas envolvidas, mas a certeza vai crescendo que o tempo está acabando para que alguma solução possa ser encontrada. A própria percepção de que talvez o euro e até mesmo a própria UE não tenham saída pode levar a uma rápida deterioração da situação e a uma ruptura de grandes proporções.
A economia americana teve até agora um 2012 melhor que a UE, exibindo uma pequena redução na taxa de desemprego e uma expansão do produto positiva, ainda que pequena e claudicante. No entanto, espera-se a virada do ano com certo tremor, pela enorme (e quase inacreditável) ameaça do chamado penhasco fiscal ("fiscal cliff"). Em dezembro expiram as reduções de impostos decididas pelo ex-presidente Bush em favor de grupos de renda mais alta com as adições adotadas pelo presidente Obama, que beneficiaram setores da classe média. Enquanto o segundo quer eliminar os benefícios concedidos por Bush aos mais ricos, mantendo a redução para a classe média, os republicanos não aceitam a medida nesses termos. O impasse pode levar simplesmente ao termino do prazo da validade das medidas de redução dos impostos, aumentando de modo importante a tributação das pessoas físicas.
Por outro lado, também no início de 2012 deverão entrar em vigor cortes de despesas públicas em face da incapacidade da comissão bipartidária criada pelo atual presidente para sugerir medidas de reequilíbrio fiscal em chegar a propostas consensuais politicamente aceitáveis.
Finalmente, voltará a novela da ampliação do teto da dívida pública americana que, se impedida, implicará o estrangulamento dos gastos públicos no país. Se tudo der errado, como é perfeitamente possível, já que a mesma causa, o impasse político dos últimos anos gerado pela radicalização do partido Republicano na defesa de teses extremistas, responde pelas três ameaças, a frágil recuperação da economia americana enfrentará um obstáculo possivelmente fatal, e o "duplo mergulho", isto é, a queda em uma nova recessão, se tornará inevitável.
As consequências para a economia mundial de uma coincidência de tragédias econômicas, na UE e nos Estados Unidos, seriam provavelmente arrasadoras e teriam impactos duradouros.
Um colapso do euro é, porém, relativamente improvável. Embora seja dolorosamente claro para qualquer um que siga o desenrolar da crise que as lideranças políticas da região não tenham o estofo necessário para pensar e implementar alguma política mais ousada, seja na direção da federalização, seja na direção da definição de instrumentos de administração da crise mais eficazes, elas têm alguma prática no anúncio de paliativos que tem permitido o adiamento repetido de impasses fatais e não há razão para supor que o arsenal tenha se esgotado de forma permanente.
Já a probabilidade de queda no "penhasco fiscal" nos Estados Unidos é muito mais difícil de avaliar, dada a influência que elementos largamente irracionais tem tido no debate político daquele país. Parece se alimentar da desfuncionalização do Estado americano a principal ameaça de colapso da economia. A importância de posturas irracionais, de diagnósticos no mínimo malformulados, mas mais provavelmente simplesmente falsos, e a desintegração política que vem definindo aquele país aos olhos do mundo tornam quase impossível fazer qualquer previsão mais segura.
Otimistas dirão que alguma coisa será feita, nem que seja no último minuto. Se esta é a esperança, porém, as chances de sucesso são pequenas, porque a economia, e mais especialmente os mercados financeiros não esperam por "últimos minutos", são as expectativas desses últimos momentos que contam, e elas são formadas, e se tornam decisivas, muito antes.
De qualquer forma, a existência de ameaças excepcionais não deve desviar a atenção dos analistas de que evitar o desastre não significa que a conjuntura internacional vá passar por alguma melhora significativa, mas, sim, apenas que uma ruptura explosiva talvez possa ser evitada. Em caso positivo, as economias, tanto da UE quanto dos Estados Unidos, devem seguir sua trajetória de semiestagnação enraizada na crise financeira de 2008.
Devem restar poucas dúvidas, em 2012, que a economia mundial se debate numa depressão. Em profundidade, extensão e duração, a crise iniciada no setor financeiro americano em 2007, que se espraiou pelo mundo em 2008, especialmente após a quebra do Lehman Brothers, só se compara à da década de 1930. Como nos anos 30, uma crise financeira de graves proporções parece desarmar os mecanismos espontâneos com que uma economia empresarial conta para se recuperar de recessões, no que se chama usualmente de "crises cíclicas". Uma depressão é caracterizada exatamente pela paralisia desses mecanismos e pela perpetuação de uma situação de semiestagnação.
O crescimento não é impossível, mas é incerto e frágil, sempre ameaçado por bombas-relógio plantadas na economia. É conhecido como a preocupação do presidente americano Roosevelt com déficits públicos o levou a superestimar a extensão em que a economia americana tinha se recuperado da queda de 1931 a 1933, e a adotar políticas de austeridade fiscal que jogaram o país em nova crise, da qual só saiu com o início da Segunda Guerra. O Japão, nos anos 1990 e 2000, repetiu o mesmo erro, mais de uma vez.
Mas não são apenas os impactos sobre finanças públicas que importam. A destruição de riqueza financeira de famílias, firmas, bancos, e até mesmo governos, passa a inibir duravelmente seus gastos, impedindo qualquer recuperação significativa de demanda agregada.
A única grande esperança que parece restar é a demanda externa, por mais que pareça (seja) absurdo imaginar que todos os países possam ter exportações líquidas positivas.
Finalmente, o aumento de alavancagem a que todos, famílias, firmas, bancos e governos, recorreram no tempo das vacas gordas finalmente apresenta sua conta. Os que sobrevivem, levam muito tempo para recuperar qualquer forma de vida normal.
Nesse contexto, tornam-se visíveis e urgentes desequilíbrios entre setores da economia, regiões, países mesmo, como no caso da UE, que permaneciam ocultos. À periferia da zona euro, por exemplo, cuja prosperidade se assentava no endividamento externo, agora sem financiadores a quem recorrer, só resta o caminho eufemisticamente chamado de "desvalorização doméstica". Impedidos de desvalorizar a moeda nacional, que já não existe, só lhes resta a saída de reduzir seus custos de forma a superar o enorme gap de competitividade que sofrem.
Na falta de qualificação de sua mão-de-obra, o que resta a gregos, portugueses, e mesmo, ainda que em grau um pouco menor, espanhóis, italianos e outros periféricos para reduzir seu custo de produção? O rebaixamento de salários até o ponto em que os produtos produzidos nesses países possa se tornar competitivo com o que é produzido nos países líderes.
Países que têm sua própria moeda usufruem, nesse processo, de vantagens, especialmente com a possibilidade de desvalorização cambial, mas em um mundo em prolongada e profunda contração, o comércio exterior não é mais que uma dança de cadeiras em que, sempre, alguém tem de sair perdendo.
Em suma, não há razão para supor que qualquer forma de normalidade venha a ser recuperada na economia mundial em menos do que quatro ou cinco anos, provavelmente ainda mais. Não se pode esquecer que a outra depressão só foi resolvida por um grande choque exógeno de demanda, o início da Segunda Guerra. Mesmo o melhor cenário, aquele em que autoridades europeias subitamente iluminadas consigam construir modos de administração da crise do euro de modo mais construtivo e em que autoridades norte-americanas milagrosamente iluminadas consigam romper o impasse que mantem paralisado o governo do país nos últimos anos, permanece muito ruim, o de atividade econômica em expansão lenta e incerta, sujeita a interrupções constantes, sempre ameaçada por novas crises.
Em um cenário assim, é improvável que a China possa repetir o papel que teve na primeira fase da crise, de locomotiva, pelo menos para alguns países, inclusive o Brasil. Forçada a relativizar a ênfase em mercados externos que se mostram extremamente claudicantes, a China parece voltar-se para seu mercado interno como motor de crescimento, mas não é pacífico que essa estratégia possa sustentar as taxas de crescimento que o país precisa para manter sua estabilidade política e social.
Nesse quadro, as perspectivas para o Brasil no futuro próximo não podem deixar de ser preocupantes. A ênfase no mercado doméstico é destino, mais do que escolha. Não se pode descurar das exportações, até mesmo para poder pagar pelas importações necessárias sem aumento excessivo do nosso passivo externo que possa, no futuro, por em risco nossa segurança, mas a dependência das exportações de matérias primas não nos augura um futuro próspero e a sobrevalorização do real nos impede de brigar de forma efetiva por espaço na arena internacional.
Por outro lado, voltar-se para o mercado interno implica dinamizar investimentos e repensar a ênfase dada pelo consumo (especialmente aquele financiado por endividamento) nos últimos anos. Esse gênero de estratégia não acelera nossa acumulação de capital, não aumenta nossa produtividade e competitividade, não estimula de forma eficaz o tipo de investimento que o país precisa nesta hora e fragiliza a economia. O consumo deve crescer, mas induzido pela expansão de investimentos e não pelo endividamento. O anúncio recente de uma estratégia para estimular investimentos em infraestrutura, nesse sentido, é um bom augúrio, esperemos que represente uma nova compreensão do que o país necessita e não se esgote nessa iniciativa.
Em outra série como esta do Valor, eu enfatizei minha preocupação com o futuro que minha neta Carolina viria a ter de enfrentar. Essas preocupações, se mudaram desde então, se tornaram mais aflitivas (e agora não só com o futuro de Carolina, mas também de Daniel, meu neto que está para chegar).
O Brasil tem o privilégio de contar com um mercado interno promissor. Resta saber se teremos a perícia necessária para concretizar essa promessa.
Fernando Cardim de Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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