segunda-feira, 17 de setembro de 2012
A excepcionalidade europeia
Por Jean-Claude Trichet - Valor 17/09
A criação da união monetária e econômica da Europa é única na história dos Estados soberanos. A região do euro formou uma "sociedade de Estados" de um tipo totamente novo, que transcende o conceito tradicional de soberania de Vestfália.
Como indivíduos em uma sociedade, os países da região do euro são tanto independentes como interdependentes. Eles podem afetar uns aos outros tanto de forma positiva como negativa. A boa governança requer que cada país-membro e as instituições da União Europeia (UE) cumpram suas responsabilidades. Acima de tudo, união monetária e econômica significa exatamente isso: duas uniões, uma monetária e outra econômica.
A união monetária europeia funcionou notavelmente bem. Desde o lançamento do euro em 1999, manteve-se estabilidade de preços em 17 países com 332 milhões de pessoas, cuja inflação anual média foi de apenas 2,03% - melhor do que o histórico da Alemanha de 1955 a 1999. Além disso, a região do euro criou 14,5 milhões de novos empregos desde 1999, em comparação aos 8,5 milhões a 9 milhões criados nos Estados Unidos. Isso não quer dizer que a Europa não tem um sério problema de desemprego; mas não há inferioridade óbvia na Europa: todas as economias avançadas precisam impulsionar a criação de empregos.
Da mesma forma, em termos consolidados, a conta corrente da região do euro está equilibrada, sua relação entre endividamento e Produto Interno Bruto (PIB) é bem menor que a do Japão e o déficit anual das finanças públicas é bem menor que o dos EUA, Japão e Reino Unido.
O euro, por si só, não explica por que a região do euro tornou-se o "homem doente" da economia mundial. Para entender isso, é preciso considerar a debilidade da união econômica da Europa.
Em primeiro lugar, o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), cujo objetivo era assegurar políticas fiscais sólidas na região, nunca foi adotado corretamente. Ao contrário, em 2003 e 2004, França, Itália e Alemanha procuraram enfraquecê-lo. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e os países pequenos e médios da região impediram que o PEC fosse desmantelado, mas seu espírito ficou gravemente comprometido.
Além disso, a governança na região do euro não incluiu o monitoramento e fiscalização dos indicadores de competitividade - as tendências dos custos e preços nominais nos países-membros e os desequilíbrios externos dentro da região do euro (em 2005, muito antes da crise, defendi, em nome do Conselho do BCE, que houvesse uma fiscalização apropriada de vários indicadores nacionais, como o custo da unidade de trabalho).
Uma terceira fonte de fragilidade foi o fato de não terem sido imaginadas ferramentas de administração de crises quando o euro foi lançado. Em grande parte do mundo naquela época, a "negligência benigna" estava na ordem do dia, particularmente nas economias avançadas.
Por fim, a alta correlação entre a capacidade creditícia dos bancos comerciais de um país e a de seu governo cria uma fonte adicional de vulnerabilidade, que é particularmente prejudicial para a região do euro.
Felizmente, houve muitos progressos, como as melhoras significativas no PEC e a criação de formas de supervisão dos desequilíbrios nacionais e dos indicadores de competitividade. Foram criadas novas ferramentas de administração de crises. E há consenso de que a estabilidade e prosperidade da UE exigem a conclusão do mercado único e reformas estruturais obrigatórias para todos os 27 membros. A proposta de união bancária ajudaria a separar a capacidade creditícia dos bancos comerciais da de seus governos.
Nada disso, no entanto, é suficiente. Em vez de impor multas sobre países que descumprem regras e ignoram recomendações, como o PEC supostamente deveria fazer, a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e - isto é essencial - o Parlamento Europeu deveriam decidir diretamente as medidas a adotar de imediato no país em questão. A política fiscal e determinadas políticas econômicas deveriam estar sujeitas à ativação de uma "federação de exceção" da região do euro.
A ideia de que compartilhar uma moeda única também significa aceitar limitações à soberania fiscal não é nova. Uma "federação de exceção" simplesmente delineia as consequências lógicas da ineficiência das multas previstas pelo PEC e é integralmente consistente com o conceito de subsidiariedade que vem sendo aplicado desde a criação do PEC: enquanto a política econômica nacional estiver cumprindo os referenciais, não há sanções.
O elemento mais importante da "federação de exceção" talvez seja sua forte âncora democrática. Sua ativação estaria sujeita a um processo de decisões totalmente democrático, com responsabilização política clara. Mais precisamente, as decisões de adotar as medidas propostas pela Comissão Europeia e aprovadas pelo Conselho Europeu exigiriam voto majoritário do Parlamento Europeu - ou seja, dos representantes eleitos pelos países-membros da UE.
Em circunstâncias excepcionais como essa, o Parlamento do país em questão deveria ter a oportunidade de explicar ao Parlamento Europeu por que não pôde adotar as recomendações propostas, enquanto Parlamento Europeu poderia explicar por que a prosperidade e a estabilidade da região do euro estão em jogo. A palavra final, no entanto, seria do Parlamento Europeu.
No passado, sugeri a criação de um ministério das finanças para a região do euro, que seria responsável por ativar a federação fiscal e econômica quando e onde fosse necessária e por administrar as novas ferramentas de administração de crises, como o Mecanismo de Estabilidade Europeu (ESM). Também seria responsável por supervisionar a união bancária e representaria a região do euro em todas as instituições financeiras e grupos informais.
Ainda mais importante, no entanto, a "federação de exceção" em algum momento deixaria de ser uma exceção. O ministro das Finanças seria um membro do futuro braço executivo da UE, juntamente com os outros ministros responsáveis por outros departamentos federais.
A partir desse ponto de vista, a Comissão Europeia pressagia um futuro governo europeu democrático, como sugeriu o ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, que propôs instituir um presidente eleito. O Conselho, por sua vez, parece antecipar a futura Câmara Alta do Parlamento Europeu, com a Câmara Baixa já sendo eleita por todos os cidadãos da UE.
Tenho plena consciência da ousadia do que proponho. Os europeus, contudo, precisam aprender as lições do passado recente. Precisamos deixar clara a natureza do que precisa ser feito para assegurar uma governança que seja democrática e tão efetiva como exigem as circunstâncias. (Tradução de Sabino Ahumada)
Jean-Claude Trichet é membro do conselho de diretores do Banco de Compensações Internacionais (BIS). Foi presidente do Banco Central Europeu (BCE), de 2003 a 2011 e do Banco da França (1993-2003). Copyright: Project Syndicate, 2012.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário