quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Oportunidade para o Brasil tornar-se protagonista
A grande crise financeira de 2008, com o colapso do Lehman Brothers desencadeou um fenômeno com múltiplas dimensões. A crise e o quase colapso do sistema financeiro são o núcleo de uma erupção vulcânica que desencadeou a chamada Grande Recessão de 2008/09, seguida da crise de dívidas soberanas na Europa e causaram uma série de outras mudanças paradigmáticas.
As economias dos Estados Unidos e da Europa saíram da normalidade e passaram a ser regidas por comportamentos induzidos por incerteza, medo, contágios, pânicos e corridas, com mudanças súbitas de humor, de aversão ao risco e das convenções nas quais se baseiam as decisões financeiras e econômicas.
Pela experiência histórica, a crise de 1930 e a crise do Japão nos anos 1990, a única lógica ou elemento racional que prevalecem neste caso é a lógica da desalavancagem, em que os agentes econômicos, que se endividaram na fase anterior de boom de crédito, que precede toda crise financeira, têm agora de pagar as dívidas e limpar seus balanços, num contexto em que seus ativos perderam valor ou viraram pó.
Este processo gera a chamada "balance sheet recession". As famílias terão que aumentar a poupança ao longo dos próximos anos para pagarem a dívida, reequilibrar seus balanço. Mas, para isso, terão que reduzir o consumo, provocando recessão e desemprego.
Diante da recessão e desemprego, as empresas, mesmo tendo lucro, em vez de investirem para ampliar a capacidade produtiva, preferirão pagar suas dívidas para limpar os balanços. Os bancos terão que se desalavancar, em sucessivas rodadas, na medida em que se desfazem de seus ativos para reduzir seus passivos. Esse processo causa a desvalorização dos ativos, gerando a necessidade de novas desalavancagens.
Foi assim que, em 1929, os Estados Unidos levaram uma década para superar a crise. O Japão levou pelo menos uma década e meia para livrar-se dos problemas financeiros que eclodiram em 1989. A atual crise financeira não será diferente. Vai levar mais uma década para que seja superada e a normalidade restaurada. Haverá avanços e recuos nas economias desenvolvidas, mas elas permanecerão semiestagnadas ou com crescimento rastejante.
A atual contração econômica decorre do estouro de uma superbolha financeira. Desde os anos 1980, quando se inicia o período de desregulação financeira, as inovações geraram um superboom de crédito e sucessivas bolhas. A cada estouro, o sistema financeiro ou os países, com crises de "sudden stops", foram socorridos ampliando-se a liquidez e o crédito, o que manteve ficticiamente o valor dos ativos financeiros para, finalmente, a crise do subprime de 2007 desencadear a grande crise financeira de 2007/08.
Tanto as intervenções dos bancos centrais como dos Tesouros Nacionais não têm resolvido o problema real de solvência dos devedores, limitando-se a prover liquidez, a taxa de juros subsidiadas, e transferir ativos financeiros problemáticos para seus balanços.
Se este processo de subsídio e de manutenção dos ativos financeiros problemáticos nos balanços do governo perdurar por mais uma década é possível que as algumas instituições credoras consigam sobreviver. Na realidade, com a fantástica expansão monetária, os sucessivos afrouxamento - o "quantitative easing" - e aquisições de ativos problemáticos, o Federal Reserve (Fed, banco central americano) e o Banco Central Europeu (BCE) estão agindo como se estivessem reestabelecendo a situação prévia a crise, com a manutenção dos ativos financeiros nos balanços dos bancos não a valor de mercado, mas a preços ficticiamente avaliados pela explosão monetária e creditícia sem precedentes.
A dura realidade é que a própria crise financeira já tornou transparente que a maioria destes ativos financeiros tem valor fictício, pois alguns créditos eram Ponzi, outros eram garantidos por outros títulos que evaporaram e só uma pequena parte tem garantia em produção ou renda futura.
Outra consequência inevitável das crises financeiras é que elas se iniciam com a insolvência de dívidas do setor privado e rapidamente se convertem em déficit, dívida pública e, em seguida, crise do setor público. Atualmente, isso está sendo sentido de forma mais aguda na Europa com a crise das dívidas soberanas.
A adoção da moeda única na Europa criou um problema adicional: sem a prévia integração dos mercados de trabalho e sistemas previdenciários, que continuam nacionais, a mobilidade do emprego é restrita. Assim, o custo unitário do trabalho tornou-se muito elevado nos países orientados para a expansão de serviços não negociáveis (Grécia, Portugal, Espanha etc) comparativamente aos países do norte da Europa, que cresceram com a expansão da indústria e produtos "tradables", onde os ganhos de produtividade foram muito maiores e obrigatórios para enfrentar a competição.
A Alemanha, por exemplo, onde a indústria representa 30% do Produto Interno Bruto (PIB), e transformou-se em grande exportador líquido, enquanto a Grécia, na onda da entrada de capitais, se endividou excessivamente e não tem hoje como pagar as dívidas. É o velho problema da dupla transferência de renda.
O forte ajuste fiscal torna-se obrigatório para reduzir o déficit, a dívida pública e a desvalorização cambial, aumentando o desemprego, a fim de reduzir os salários e preços em euros, reequilibrar o setor externo e promover a transferência externa, ou seja, pagar sua dívida externa.
Muitos acreditam que esta crise levará à dissolução do euro ou, pelo menos, à saída da Grécia, Espanha e, eventualmente, outros países. Não acredito nesta hipótese, pois a integração europeia é antes de tudo um projeto político, e a vontade política é muito forte e dominante neste processo. A opção será por um longo e prolongado ajuste dos países do sul da Europa que deverá levar ainda década de crise profunda e reformas.
Num quadro de crise financeira prevalece a incerteza e o longo prazo é imprevisível. Na incerteza, como dizia Keynes, para tomar decisões é preciso aceitar "convenções" e basear-se nelas para "arriscar previsões". Ao invés de arriscar previsões de curto prazo, este texto tenta perceber as grandes rupturas e tendências históricas, tanto no pensamento dominante, como na dinâmica global da economia mundial. Vamos detectar os deslocamento das forças dominantes que comandarão a economia global e que poderão representar grande oportunidades para o Brasil deixar de ser um país dependente e coadjuvante e se tornar autônomo, ter um projeto próprio de "catching up" e ser protagonista de seu futuro.
Toda a crise financeira profunda e duradoura desencadeia crise política e social. Rompe-se o consenso ou acordo que prevalecia previamente e o poder hegemônico perde legitimidade e se enfraquece. Na economia, os regimes de política econômica, as instituições, a ideologia e o pensamento econômico que as organizam e sustentam, tornam-se disfuncionais, exigindo constante e crescente intervenção do Estado.
O paradigma liberalizante que vigorava desde 1980 entrou em crise e passou a ser questionado pelos fatos, pela necessidade de respostas pragmáticas e rápidas do governo para salvar o sistema. A insatisfação politica da população e a inquietação social é crescente. A ortodoxia econômica envelheceu subitamente e tornou-se disfuncional diante dos fatos, abrindo espaço para novas ideias. A conservadora revista "The Economist" resume a atmosfera do famoso encontro de Jackson Hole, deste ano, onde os banqueiros centrais e os maiores experts acadêmicos em política monetária se reúnem anualmente oferecendo diagnósticos e políticas alternativas - mas todos eram presas de um fato embaraçoso: "Nada do que eles tinham feito funcionou, e eles não sabiam porque".
Com a ascensão do neoliberalismo, a partir dos anos 1980, o mercado transformou-se no princípio dominante de organização da economia capitalista, com retração da função Estado. Entretanto, com a crise, se não fosse a massiva intervenção e socorro prestado pelo Estado todo o sistema financeiro americano e europeu teria praticamente desaparecido. Para a sobrevivência do próprio capitalismo, o Estado-nação está retomando a sua função reguladora e controladora dos mercados, num processo adaptativo, diante da ameaça maior da crise.
Esse deslocamento e processo adaptativo entre mercado e Estado, num novo ambiente desencadeado pela própria crise, levará anos para estabelecer um novo paradigma. A plutocracia financeira, ainda com poder formidável, sofreu baque mortal, mas vem resistindo ao avanço da regulação e dos controles pelo estado. Além disso, as mentes humanas são presas de velhos ideias e levam muito tempo para serem mudadas.
Entretanto, quanto maior for a resistência e o período de dominância das velhas ideias e do mercado livre como princípio de organização da economia, maior será a crise necessária para que o princípio adaptativo funcione e reestabeleça a nova ordem. Nos Estados Unidos, ainda em 2008, o governo republicano, defensor da ideologia neoliberal, teve que reagir reduzindo os impostos e aumentando os gastos para salvar o sistema financeiro, praticando a política de recuperar a demanda agregada, ainda que contra o seu credo.
Com o aumento do déficit e da dívida públicos, veio a reação subsequente com ascensão politica da ala mais conservadora dos republicanos, que poderá travar o instrumento fiscal, com grande risco de um segundo mergulho da economia americana. Tanto é que os jornais já anunciam a possibilidade de um "abismo fiscal", a partir de 31 de dezembro. Se não houver um novo acordo entre democratas e republicanos, difícil num ano de eleição, e se não forem renovadas as medidas adotadas anteriormente de redução de imposto e aumento de gastos fiscais, teremos uma contração fiscal correspondente a 3,5% do PIB, o que levará a economia americana a nova recessão.
Com o deslocamento pela crise do mercado para o Estado, a ascensão econômica e política da China ganha novo significado como o candidato natural para ser o novo paradigma econômico dominante, um novo capitalismo de Estado, em substituição ao modelo da liberalização global.
Nos próximos anos, tanto os Estados Unidos como a Europa deverão ter como prioridade absoluta a revitalização das suas economias, voltando-se para dentro. Somada a isso, com a perda de credibilidade e de legitimidade da sua classe dirigente, a governança global mudará radicalmente. Desta forma, viveremos, nas próximas décadas, um interregno hegemônico, com a ausência de um centro que dite as regras do jogo, exerça dominância política e ideológica, imponha um pensamento econômico e atue como policial do mundo.
Neste quadro, novos atores estão ganhando autonomia e poder global, como os países do grupo dos Brics, por exemplo; outros fóruns estão surgindo, como o G-20; e coalizões de forças políticas estão se formando. É isto que construirá uma nova ordem internacional.
Nesse quadro, conceitos como soberania, Estado-nação e nacionalismo, com novos conteúdos, voltarão a adquirir força política e movimentarão as massas, particularmente nos emergentes. Estes processos estão sendo alimentados pela guerra cambial, crescente protecionismo e pelo fato de o problema de desemprego ser sempre um problema nacional.
Como a crise que afetou em cheio Estados Unidos, o consumidor ou importador em última instância e emissor de moeda reserva, a economia mundial perdeu a sua locomotiva que puxava o resto, desde a Segunda Guerra Mundial. O dinamismo econômico, de um lado, se deslocou para a periferia, para os países emergentes; e de outro, deixou de ser as importações do centro, para os mercados domésticos destes países. Uma nova dinâmica global está emergindo, como mostra nitidamente as tendências e projeções de crescimento pós-crise.
É nesse panorama que cabe colocar o que acontecerá com o desenvolvimento brasileiro. Na verdade, a pergunta correta seria: estamos preparados para aproveitar novamente um período de vácuo de poder e nos inserirmos no novo contexto global e deslanchar um novo projeto nacional de desenvolvimento sustentado?
A industrialização brasileira, a locomotiva do processo de desenvolvimento desde os anos 1930 até a crise da dívida externa, em 1980, não ocorreu por geração espontânea. Foi no interregno hegemônico anterior, entre o declínio do império britânico e a ascensão norte americana, que abriu espaço para manifestação de vontade política.
A partir da crise da dívida externa de 1980, ficamos dependentes do setor financeiro internacional e, com a abertura da conta de capitais e a integração financeira, voltou a dominar a mentalidade colonial na qual passamos a priorizar a estabilidade macroeconômica, em detrimento de um projeto de desenvolvimento; e o fluxo de capitais do exterior, como determinante dos investimentos e crescimento.
As políticas monetária e fiscal e o regime de taxa de câmbio foram subordinadas àquelas prioridades. O polo dinâmico foi deslocado para o exterior: sistema financeiro global e seu fluxo de capitais. O mercado foi alçado a princípio organizador e coordenador da atividade econômica. As ideias correlatas de Estado-nação, interesse nacional e planejamento estratégico foram para o index e retiradas do vocabulário e da prática, substituídas pelo discurso liberalizante e pela teoria de dependência em que somos meros coadjuvantes subordinados e associados ao poder hegemônico.
De 1980, quando finda a industrialização por meio da substituição de importações e temos a crise fiscal do Estado brasileiro, até 2004, a economia estava dominada por aquilo que Celso Furtado chamava de "insuficiência dinâmica" da estrutura produtiva. Apesar da indústria de transformação ser relativamente desenvolvida, era incapaz de gerar efeitos dinâmicos capaz de autoimpulsionar seu crescimento. Com "oferta ilimitada de trabalho" e enorme desemprego, os salários da grande massa eram extremamente deprimidos e a grande maioria ocupava empregos informais. Isso explica por que o Brasil tinha um perfil de distribuição de renda e de salários dos piores do mundo.
Com a forte queda na taxa de natalidade, em meados da década de 1980, a população jovem de 18 a 26 anos parou de crescer e tem declinado desde então. Com a aceleração do crescimento, a oferta de trabalho voltou a crescer. Naquele momento, a economia brasileira sofreu uma transformação estrutural da maior importância do ponto de vista do crescimento econômico autossustentado. Isso significou uma dramática mudança na dinâmica do mercado de trabalho. Os salários na base da pirâmide começaram a aumentar em termos reais e com crescente formalização das relações de trabalho. Pela primeira vez desde a grande onda de imigração, nas primeiras décadas do século XX, começamos a enfrentar uma situação em que mão de obra passou a ser um fator relativamente escasso.
O mais importante é que, nesse quadro, as empresas reagiram, aumentando a produtividade para compensar os aumentos de salários, gerando um círculo virtuoso e dinâmico. Como a nossa indústria de transformação está longe da fronteira tecnológica, há um espaço imenso para aumentar a produtividade do trabalho com simples processo de "catching up". E, de fato, os dados mostram que, a partir daquela data, a trajetória de produtividade sofreu uma inflexão e deslanchou no Brasil até pelo menos a crise de 2008.
Assim, geramos um círculo virtuoso dinâmico em que os aumentos dos salários, de um lado, obrigam os empresários à atualização tecnológica, e aumento de produtividade, de outro, amplia a demanda de bens de consumo que estimulam os investimentos produtivos. Esses investimentos têm sido autofinanciados pelas próprias empresas. A rigor, os dados do IBGE mostram que, nos últimos anos, as empresas brasileiras poupam muito mais do que investem produtivamente, isto é, os lucros retidos são maiores do que os investimentos até pelo menos 2008, a partir de quando os impactos do câmbio valorizado e seus efeitos sobre os custos deprimem as margens de lucro.
A criação desse círculo virtuoso dinâmico tem um paralelo na nossa história econômica. Corresponde ao deslocamento, para dentro do país, do polo dinâmico em 1930, com a introdução do processo de substituição de importações, que permitiu implantar a indústria brasileira e gerou efeitos dinâmicos autossustentados até 1980. Com a crise financeira de 2008 e novo período de interregno hegemônico, abre-se uma oportunidade de voltarmos a completar o projeto de desenvolvimento econômico e social, com o deslocamento do polo dinâmico de crescimento para dentro do país. Com mais meio século de crescimento, ainda que moderado, completaremos o projeto, iniciado nas últimas décadas do século XIX, de ter uma sociedade moderna, democrática e rica.
Yoshiaki Nakano é mestre e doutor em economia pela Cornell University. Professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP/FGV). Ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP).
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