terça-feira, 4 de setembro de 2012
A indústria em perigo
Por Luiz Gonzaga Belluzzo - Valor 04/09
Relembrando: durante todo o pós-guerra, até a crise da dívida externa de 1982, o Brasil manteve um ritmo acelerado de crescimento econômico. Entre 1947 e 1980 o PIB cresceu em média 7,1%, uma marca não igualada, no período, nem mesmo pelo Japão ou pelos celebrados Tigres asiáticos.
Comparado a esta "era de alto crescimento" o desempenho econômico dos últimos 35 anos tem sido sofrível. Perde, por exemplo, para a "recessão" que apareceu entre 1962 e 1967, nos anos de crise e estabilização, em que a economia cresceu miseravelmente para os padrões da época: apenas 3,2% ao ano.
A perda de dinamismo da industrialização brasileira provocou, no início dos anos 90, uma reação estremada nas hostes liberais: abrir a economia e expor os empresários letárgicos aos ares benfazejos da globalização. O silogismo em que se desdobra a premissa é grotesco em sua simplicidade: se a indústria brasileira perdeu a capacidade de investir ou de se modernizar, a solução é submeter a incompetente à disciplina da concorrência externa.
Quase todos concordam que se esgotaram as formas de financiamento, de incentivos e de proteção, responsáveis pela sustentação do desenvolvimento industrial brasileiro ao longo de mais de cinco décadas. Custa muito trabalho, além de imaginação, construir as novas instituições financeiras, pensar na reforma fiscal, enfim dar tratos à bola para estabelecer uma nova relação entre o Estado e o setor privado.
Um estudo encomendado pela União Europeia revela aspectos importantes do processo de internacionalização dos anos 90 e 2000: 1) nos países em desenvolvimento, os benefícios do investimento estrangeiro - tais como absorção de tecnologia, adensamento de cadeias industriais, crescimento das exportações - dependeram das políticas nacionais; 2) os países em desenvolvimento que cresceram mais e exportaram melhor foram os que conseguiram administrar uma combinação favorável entre câmbio desvalorizado e juros baixos.
Na era da arrancada chinesa, é superstição acreditar que a abertura financeira e a exposição pura e simples do setor industrial à concorrência externa são capazes de promover a modernização tecnológica e os ganhos de competitividade. Os estudos mais especializados e aprofundados sobre o tema mostram que a concorrência nos mercados contemporâneos está marcada por características que não guardam qualquer semelhança com as crendices simplificadoras das vantagens comparativas.
Até mesmo os estudiosos conservadores reconhecem a existência de economias de escala e de escopo, economias externas, estratégias de ocupação e diversificação dos mercados, conglomeração e acordos de cooperação. Neste jogo só entra quem tem cacife tecnológico, poder financeiro e amparo político dos Estados nacionais. O resto está na arquibancada batendo palmas.
Estas características essenciais da concorrência e do comportamento das empresas, sobretudo na área industrial, estão completamente ausentes das elucubrações dos que pretendem nos ensinar as virtudes milagrosas do curandeirismo que aspira foros de ciência.
Algumas correntes de opinião cultivam com esmero o hábito de ignorar a experiência alheia e, pior, tratam de desqualificar e desfigurar o seu próprio passado, quando não se empenham denodadamente em promover o seu completo esquecimento.
Não há exemplo nos países periféricos \- aí incluídos o Chile e os "Tigres Asiáticos", a China, de renúncia a políticas deliberadas de reestruturação produtiva ou de estímulo à modernização e à conquista de mercados. Seja qual for a estratégia adotada - liderança das exportações ou preeminência do mercado interno - os casos bem sucedidos de avanço industrial e produtivo na dita "era da globalização" têm um traço comum: intencionalidade e coordenação pública.
É insensato subestimar os efeitos causados pelas mudanças da geoeconomia mundial: a expansão sino-asiática vai continuar ameaçando as estruturas industriais do Velho e do Novo Mundo. As políticas asiáticas de promoção e integração industrial estão alicerçadas em ganhos expressivos nas relações produtividade/salário e salário/câmbio na manufatura. Esse processo é amparado por um sistema de crédito voltado para o investimento manufatureiro privado e para a sustentação dos programas públicos de gastos em infraestrutura.
A despeito da crise global e da inevitável desaceleração chinesa, o estilo de desenvolvimento sino-asiático vai prosseguir em seus trabalhos de ganhar a dianteira na porfia competitiva global. Não é por desvio ideológico ou coisa parecida que as medidas protecionistas se espalham e se aprofundam silenciosamente no mundo inteiro, enquanto os adeptos das teorias das vantagens comparativas se lamentam, entre gemidos e murmúrios. Nessas circunstâncias, a valorização cambial é um erro grave, assim como a hesitação em promover políticas adequadas de defesa comercial e de estímulo às exportações.
Em artigo escrito com Júlio Sérgio Gomes de Almeida sugeri que a falsa inserção competitiva da economia brasileira está cobrando o seu preço. Falsa, porque as políticas dos anos 90 entendiam que bastava expor a economia à concorrência externa e privatizar para lograr ganhos de eficiência micro e macro econômicas. Percorremos o caminho inverso dos asiáticos que abriram a economia para as importações redutoras de custos. A abertura estava, portanto, comprometida com os ganhos de produtividade voltado para aumento das exportações. As relações importações/exportações faziam parte das políticas industriais, ou seja, do projeto que combinava o avanço das grandes empresas nacionais nos mercados globais e a proteção do mercado interno. As importações não tinham o objetivo de abastecer o consumo das populações. Estas se beneficiaram, sim, dos ganhos de produtividade e da diferenciação da estrutura produtiva assentada em elevadas taxas de investimento.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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