terça-feira, 4 de setembro de 2012
Obama precisa justificar o governo
Por Gideon Rachman - Valor 04/09
Campanhas presidenciais podem focar trivialidades. Por isso, o fato de Paul Ryan, candidato republicano a vice-presidente, ter mentido sobre ter corrido uma maratona em menos de três horas, poderá ser bizarramente importante. Na convenção do partido Republicano, na semana passada, Ryan foi apresentado como um indômito contador de verdades. Os democratas argumentaram que, na realidade, seu discurso continha mentiras sobre tudo: do Medicare ao fechamento de uma fábrica de automóveis.
Mas a reforma do Medicare é difícil de compreender. Por outro lado, subtrair uma hora de seu tempo de percurso numa maratona é facilmente compreensível. Isso faz Ryan parecer um tanto ridículo e desonesto. Os democratas vão deitar e rolar em cima das afirmações do homem da maratona em sua própria convenção, nesta semana.
A gafe é ainda mais irritante para os republicanos porque eles recém-promoveram uma convenção muito bem-sucedida. Em Tampa, na semana passada, o partido Republicano trancou seus tios loucos no sótão - com exceção de Clint Eastwood, a quem permitiu-se uma breve aparição. Falou-se muito pouco sobre religião, aborto, imigração, a certidão de nascimento de Barack Obama ou sobre a ameaça de lei sharia ser imposta em Michigan.
Em vez disso, os republicanos martelaram um único tema. Eles são o partido que encarna o otimismo e o individualismo do sonho americano. Por outro lado, Obama foi retratado como um bom homem que "não saca (as coisas)": como alguém que pensa que todas as coisas boas vêm do governo e denigre o esforço individual. Para que Obama seja reeleito ele terá de repelir esse ataque justificando o governo. Ele terá que defender seu estímulo econômico. Ele terá de defender o "ObamaCare". Acima de tudo, o presidente terá de resgatar a ideia mais poderosa e sedutora na política americana - o sonho americano.
Essa é uma tarefa muito delicada. As possibilidades de acidentes são sublinhadas por um discurso improvisado que o presidente fez, alguns meses atrás, em que ele pareceu zombar dos esforços dos donos de pequenas empresas. A frase fatal empregada por Obama - "você não construiu isso (seu negócio)", foi repetida interminavelmente durante a convenção republicana. Uma sucessão de pequenos empresários foi trazida ao palco para afirmar, em termos indignados, que tinham, efetivamente, "construído" (seus empreendimentos).
A defesa dos democratas é de que o presidente estava simplesmente falando sobre a necessidade de o governo disponibilizar serviços vitais, como (a construção de) infraestrutura. Eles insistem em que suas observações foram tiradas de contexto. Mas, na verdade, elas também não soam muito bem em contexto. Obama zombou de pessoas bem sucedidas, que pensam: "bem (meu êxito) deve ser simplesmente porque eu sou muito inteligente". Uma gafe política é mais perigosa quando parece confirmar o que os eleitores já suspeitam. E o presidente já era vulnerável à ideia de que tem escassa simpatia em relação ao homem comum.
Mas parte da munição que Obama necessitará para reagir contra seus adversários e defender o papel do governo pode ser encontrado na própria convenção republicana. A primeira noite foi encenada contra o pano de fundo de um enorme retrato de Neil Armstrong, que morreu na véspera do encontro. Mas Armstrong foi à Lua não porque "perseguiu seu sonho" e fundou uma pequena empresa - mas porque o governo federal o colocou lá. Qual é a diferença entre a Nasa, a respeitada agência espacial, e os temidos "planejadores centrais" ridicularizados por Ryan?
O candidato a vice-presidente argumentou que Obama abraçou ideias alienígenas europeias segundo as quais as pessoas são limitadas por suas circunstâncias sociais. "Eu nunca me vi como alguém aprisionado a algum status em minha vida", gabou-se Ryan. Mas é preciso atentar para o fato de que tanto Ryan e (ainda mais) Romney nasceram em circunstâncias confortáveis, embora os dois tenham se empenhado ao máximo para ressaltar algo que se assemelhasse a enfrentar dificuldades em suas vidas.
Por outro lado, Condoleezza Rice, a ex-secretária de Estado, uma menina negra que nasceu no segregado Alabama, fez muito menos alarde sobre sua história muito mais notável. Talvez por ela ter realmente obtido sucesso partindo de uma origem difícil, Rice mostrou-se mais aberta a aceitar a ideia que Ryan ridicularizou - a de que as circunstâncias sociais fazem diferença. Hoje professora da Universidade de Stanford, ela perguntou: "Se posso checar seu código postal e afirmar se você terá um bom ensino, poderei realmente dizer que não importa de onde você vem?" Corrigir essa desigualdade de oportunidades, disse Rice, é a "questão de direitos civis de nosso tempo". É difícil ver como isso pode ser concretizado sem alguma forma de intervenção governamental ou de reformas.
Se pressionarmos um pouco mais, desnudaremos mais incoerências ainda não reveladas na posição republicana. A enfática defesa do Medicare (sistema de saúde financiado pelo governo em benefício dos idosos) pelos republicanos é incompatível com a noção de uma América onde o principal papel do governo é simplesmente sair da frente.
Obama poderá citar esses pontos e o fará. Porém, mesmo ao esmagar argumentos de seu oponente, ele terá de tomar cuidado para não pisotear o sonho americano. A ideia de "terra das oportunidades", onde um indivíduo é livre para abrir seu próprio caminho, continua inspirando - e é muito mais inspiradora, para a maioria dos americanos, do que a noção de uma rede de segurança social. O argumento no qual ele precisa insistir é de que o governo é o amigo do sonho americano, não seu inimigo.
Seria bom acreditar que a eleição americana focará, em última instância, o profundo debate sobre o papel do governo. Mas poderá, com igual probabilidade, transformar-se em uma batalha de gafes: o "você não construiu isso", de Obama, contra a maratona de três horas, de Ryan. (Tradução de Sergio Blum)
Gideon Rachman é o principal analista de assuntos internacionais no FT.
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