Os desafios da (re)industrialização
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
Nos anos 80 do século passado, sob a inspiração de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, as políticas industriais e de fomento coordenadas pelo Estado foram lançadas no rol dos pecados sem remissão. No Brasil, o desenvolvimentismo foi alvejado por maldições e imprecações.
A desorganização financeira e fiscal que se seguiu à crise da dívida externa forneceu combustível para alastrar as chamas da purificação mercadista. O apelo à liberalização geral e irrestrita explicitava o fim do consenso em torno do objetivo comum do desenvolvimento fundado na industrialização. Entre as camadas dominantes, o dissenso neoliberal incluía o desconforto com o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos consagrado na Constituição Cidadã de 1988. A dificuldade de se reconstituir, em novas bases, um objetivo compartilhado foi agravada pelo enfraquecimento da capacidade coordenadora de um Estado financeiramente prostrado diante da crise fiscal e monetária e dos programas impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Depois da bem-sucedida estabilização de 1994, os "reformistas liberais" brasileiros apoiaram sua estratégia em cinco pontos: 1) a estabilidade de preços criou condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial imporia disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam os gargalos de oferta na indústria e na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia "poupança externa" em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente; 5) o gotejamento da renda promovida pela acumulação de riqueza na camadas superiores - auxiliada pela ação das políticas sociais "focalizadas" - seria a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza.
Na verdade, a privatização desarticulou um dos mecanismos mais importantes de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira. O setor produtivo estatal - num país periférico e de industrialização tardia - funcionava como um provedor de externalidades positivas para o setor privado: 1) O investimento público era o componente "autônomo" da demanda efetiva (sobretudo nas áreas de energia e transportes) e corria à frente da demanda corrente; 2) as empresas do governo ofereciam insumos generalizados em condições e preços adequados; e, 3) começavam a se constituir - ainda de forma incipiente - em centros de inovação tecnológica.
Os celebrados efeitos da privatização sobre a eficiência da economia não se concretizaram. Senão vejamos: 1) a indexação das tarifas e preços das empresas privatizadas produziu um aumento expressivo dos custos dos insumos de uso generalizado e; 2) o investimento em infraestrutura passou a correr atrás da demanda, gerando pontos de estrangulamento; 3) as grandes empresas "exportaram" os seus departamentos de P&D e os escritórios de engenharia reduziram dramaticamente seus quadros; 4) e iniciativas importantes, como o Centro de Pesquisas da Telebrás, foram praticamente desativadas.
No debate em curso sobre a situação da indústria brasileira, há quem proclame o "mito da desindustrialização". Mal sabem que a encrenca vai além dos problemas criados pelas importações predatórias, danosas à produção corrente e à ocupação da capacidade já instalada. A dilaceração das cadeias produtivas pelo "real forte" e a estagnação dos investimentos só serão reparadas com o aumento dos gastos na formação da nova capacidade, sobretudo, nos setores novos e intensivos em tecnologia. Isto vai demandar, sim, o exercício do "animal spirits" dos dirigentes empresariais, a centralização do capital, agora disperso em empresas sem a escala requerida para participar do atual estágio da concorrência global e a elevação do gasto autônomo do Estado.
O salto de escala e tecnológico das indústrias brasileiras não vai ocorrer sem políticas adequadas que estimulem o mercado de capitais. A experiência histórica demonstra que isso exige a constituição de bancos universais de grande porte, rigorosamente regulados e supervisionados, capazes de desenvolver instrumentos financeiros destinados para o crédito de longo prazo.
O esperado efeito "acelerador" decorrente desse arranjo vai dinamizar os setores já existentes, cuja "proteção" não deve ser concedida sem contrapartidas de desempenho nas exportações, na inovação tecnológica e na substituição de importações. A economia mundial está diante de capacidade de oferta excedente em quase todos os setores e isso vai tornar ainda mais acirrada a conquista de mercados.
Sobre a utilização dos recursos decorrentes da exploração do pré-sal: a avalanche de moeda estrangeira que certamente advirá da exportação de petróleo ameaça tornar incontrolável o vício nativo cevado nas delícias tão sedutoras quanto e viciosas do câmbio valorizado. O ideal para o país detentor de uma riqueza natural abundante é constituir um fundo soberano e aplicar no exterior os recursos gerados pelas exportações, utilizando no âmbito doméstico tão somente os recursos gerados nas vendas internas e os rendimentos obtidos das aplicações no exterior. Esses fundos são genuinamente "fundos de poupança", poupança de longuíssimo prazo.
Proteção à indústria deve ter limites
Por Gustavo Loyola
Em seu último comparecimento ao Senado Federal, o ministro Guido Mantega listou a queda da taxa Selic entre as chamadas "medidas de defesa cambial" adotadas pelo governo para salvaguardar a indústria manufatureira nacional. Parece não haver melhor evidência do que esta para indicar que a política de juros não mais objetiva exclusivamente o controle da inflação, o que seria de se esperar em um país que pratica o regime de metas para inflação. No Brasil, pelo que se depreende da apresentação do ministro Mantega, na fixação dos juros, o Copom também visaria evitar a sobrevalorização da moeda brasileira e prejuízos a nossa indústria.
Há sérios riscos nessa estratégia, caso ela de fato prevaleça. Ao desviar o uso do principal instrumento de política monetária para outros fins que não o da estabilidade de preços, o governo aumenta o risco da criação de desequilíbrios internos que levariam à aceleração da inflação e ao não cumprimento da meta nos próximos anos. Além disso, o Banco Central passa a depender mais fortemente do apelo a outros instrumentos para integrar o cardápio da política monetária, em um contexto no qual a taxa de juros serve a vários fins ao mesmo tempo, o que acaba por trazer distorções adicionais ao mercado de crédito, sem obter-se plenamente a mesma eficácia no controle da demanda agregada.
As preocupações com a indústria, por mais legítimas que sejam, não podem ser atendidas com políticas que prejudicam a estabilidade macroeconômica. Este fato é tão óbvio que deveria dissuadir o governo do emprego da política cambial e da política de juros como instrumentos de estímulo ao setor manufatureiro nacional. Porém, o que se vê nos últimos meses é certa relativização da importância do equilíbrio macroeconômico, em favor da necessidade urgente de defesa da produção doméstica contra as várias "guerras" externas, imaginárias ou reais.
O governo acredita ser possível desvalorizar o câmbio real, com uma política simultânea de restrição à entrada de capitais, intervenções do Banco Central (BC) no mercado cambial e redução da taxa real doméstica de juros. Ao mesmo tempo, pretende manter o salário real em crescimento, como sinaliza, por exemplo, a atual política de reajustes do salário-mínimo. Tudo isso, combinado com uma meta declarada de manter o crescimento do PIB acima dos 4% ao ano, pode desaguar na aceleração inflacionária que, como resultado, acabaria por apreciar o câmbio real e reduzir os salários reais, na contramão, portanto, das intenções originais do governo. Em tal contexto, a manutenção do contraponto positivo observado em 2011 com o aumento do superávit primário tornou-se ainda mais relevante e imprescindível, mas as pressões derivadas do reajuste do salário-mínimo e da necessidade de manter os investimentos públicos provavelmente levarão a política fiscal a se mostrar mais expansionista no corrente ano.
Quanto às vicissitudes da indústria nacional, entendo que a manutenção do tripé de políticas macroeconômicas - câmbio flutuante, regime de metas para inflação e superávits fiscais primários - é condição necessária para se encontrar uma solução sustentável para os elevados custos domésticos e a falta de competitividade observados na produção doméstica de manufaturas. Por outro lado, considero não ser tampouco razoável uma postura passiva nas políticas públicas, atribuindo-se as dificuldades da indústria apenas às suas desvantagens comparativas no sentido ricardiano do termo. Isso seria fechar os olhos à existência de uma série de distorções domésticas que, embora atingindo todos os setores da economia brasileira, parecem recair mais fortemente sobre alguns setores industriais.
Sendo assim, a correta resposta do governo estaria primordialmente em políticas horizontais que reduzissem o "custo Brasil". Entre elas, poderíamos mencionar a redução da complexidade do sistema tributário e a eliminação completa de tributos que oneram as exportações. Ainda no campo dos impostos e contribuições, é necessária a redução da taxação fortemente incidente sobre insumos como a energia elétrica, mediante uma redistribuição inteligente da carga tributária. Além disso, a redução dos custos associados à folha salarial também se mostra relevante, notadamente numa conjuntura de redução sustentada do desemprego no país. A melhora da infraestrutura - principalmente na área da logística - também deveria constar entre as prioridades do governo, havendo ainda muito a se aperfeiçoar no ambiente regulatório com o intuito de atrair investimentos privados para esse setor.
Finalmente, vale mencionar que uma política de restrições às importações não pode ser considerada como parte da solução dos problemas da indústria doméstica. Ao contrário, o aumento da competitividade no setor manufatureiro doméstico passa necessariamente pelo livre comércio, fonte importante e insubstituível de incremento da produtividade na indústria. Por óbvio, isso não implica adotar postura passiva sempre quando houver evidência de práticas desleais de comércio por outros países.
Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
terça-feira, 3 de abril de 2012
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