sexta-feira, 27 de abril de 2012

A classe média toma o poder



Por Philip Stephens - Valor 27/04

Tropeço a toda hora com previsões inabaláveis de que o futuro pertence à China. Ou de que o Reino Médio sempre terá dificuldades para desafiar a primazia dos Estados Unidos. Não pergunte como a Índia e Brasil se encaixam nessa história. Esse tipo de exercício sobre como será a reconstrução do cenário geopolítico, por mais divertido que seja, também acaba desviando um pouco as atenções. O século XXI não será modelado pelas escolhas abstratas de países. O poder transformador pertencerá à nova classe média mundial.

A história dos últimos 20 anos foi a de uma grande transferência de peso econômico e influência geopolítica do Ocidente para o Oriente. Esse reequilíbrio ainda tem caminho a percorrer. As comparações sobre a posição relativa das potências estabelecidas e emergentes obscurecem alguns dos motores mais importantes da mudança. O que acontece dentro dos Estados é tão interessante quanto o que pode mudar nas relações entre eles. Em 20 anos, o mundo que agora é pobre de forma predominante passará a ser em sua maioria de classe média.

Os Estados, é claro, continuarão a forma dominante de organização política. É improvável que o aumento da riqueza remova identidades nacionais e culturais. Em alguns casos, pode muito bem reforçá-las. O nacionalismo ressurgente poderia mostrar-se uma das grandes ameaças à segurança e paz internacional. A forma como a maioria dos novos atores globais se comportará, no entanto, será guiada pela redistribuição inédita de poder, dos governantes para os governados.

Os números brutos estão delineados em um relatório convincente - Tendências Mundiais 2030- recém-publicado pelo Instituto de Estudos de Segurança (ISS, na sigla em inglês), com sede em Paris. Pelas tendências atuais, destaca o informe, as fileiras da classe média mundial passarão das cerca de 2 bilhões de pessoas atuais para 3,2 bilhões em 2020 e para 4,9 bilhões em 2030, quando a população mundial total seria de pouco mais de 8 bilhões. Dito de outra forma, pela primeira vez na história humana, haveria mais pessoas na classe média do que na pobre.

Os economistas podem debater a definição precisa. Para o ISS, o que constitui ser de classe média é ter renda disponível entre US$ 10 e US$ 100 por dia. Outros elevam um pouco o nível, considerando valores a partir de US$ 15. Pelos padrões ocidentais mesmo essa faixa é bastante baixa - mas leve em conta, então, quantas pessoas sobrevivem com US$ 1 por dia. O mais importante é que mesmo as suposições mais conservadoras indicam que haverá uma redistribuição irrevogável de poder econômico.

Como seria de se esperar, a transformação será mais pronunciada na Ásia. A China já possui mais de 160 milhões de consumidores de classe média, atrás apenas dos EUA. O número, contudo, representa apenas cerca de 12% da população chinesa. Até 2030, de acordo com as projeções da ISS, a proporção poderá ser de 74%. Na Índia, metade da população deverá supera o limite de US$ 10 diários antes de 2025. Em 2040, 90% estarão na classe média.

Essas tendências irão além da Ásia. Quase 70% dos brasileiros deverão estar na classe média em 2030. No mesmo ano, a América Central e América Latina terão tantos consumidores da classe média quanto a América do Norte. A transição será mais lenta na África, mas mesmo lá os números deverão mais do que dobrar em relação a 2030.

Esses novos consumidores ainda terão renda disponível bem menor do que seus pares na América do Norte e Europa. A proporção dos países ricos no consumo da classe média mundial, no entanto, deverá ser cortada em mais da metade, de 64% para 30%, até 2030.

As implicações dessa transformação serão tão profundas para as dinâmicas da ordem política dentro dos Estados ascendentes quanto as relações entre esse países e as potências estabelecidas. Classes médias maiores e mais afluentes provavelmente exigirão maior prestação de contas por seus governos. Isso não significa necessariamente que haverá um clamor por democracias representativas no estilo ocidental. Indica, no entanto, que as elites atuais, muitas vezes autoritárias, ficarão pressionadas.

A demanda das classes médias por mais voz na organização de suas sociedades será amplificada pelo maior acesso à educação - especialmente entre as mulheres - e pelo avanço incansável da tecnologia digital. O impacto da revolução digital já deixou sua marca no mundo árabe. O acesso compartilhado a comunicações instantâneas e praticamente gratuitas dá às classes médias mundiais uma arma potente na luta para ter maior controle sobre suas vidas. Já há mais usuários de internet na China do que cidadãos nos EUA.

Para o Ocidente, a perspectiva encorajadora de bilhões de pessoas saindo da pobreza chega acompanhada da probabilidade de que muitos - talvez a maioria - acolherão valores básicos, como a liberdade individual, dignidade humana e o Estado de direito. Não há relação automática entre a riqueza de uma sociedade e o grau de liberdade individual. Nem uma linha direta entre prosperidade e democracia. Há evidências de sobra, no entanto, indicando que mais cidadãos se identificam com um amplo conjunto de valores universais, quanto mais ricos ficam e mais anos de ensino acumulam. Governos opressivos por todos os lados terão problemas para resistir a esse despertar político.

Isso não quer dizer que o mundo será um lugar mais estável e pacífico. Grandes potências ainda concorrerão. Regimes sob pressão em casa podem muito bem sair à busca de inimigos externos. A concorrência por recursos naturais e a distância entre as expectativas da nova classe média global e a capacidade dos Estados de atendê-las será um convite para que regimes autoritários despertem os demônios da xenofobia. Uma provável desarticulação das instituições de governança global não será de nenhuma ajuda.

Mas e quanto às perspectivas de um mundo universalmente mais próspero e mais comprometido com a liberdade? Certamente, surgirão boas notícias a partir disso.



Philip Stephens é editor e comentarista político do FT.

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