terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
O canto da sereia
Por Jorge Arbache - Valor 14/02
Brasil e China têm histórias, culturas e instituições bastante distintas, mas têm características em comum que os tornam candidatos naturais a cooperar e a usufruir das potencialidades e ambições um do outro. Ambos têm economias robustas, territórios ricos em recursos naturais, grandes populações e gozam de crescente protagonismo global. Mas ambos têm enormes desafios, alguns em comum, como pobreza e dinâmica demográfica, e outros particulares, como déficits crônicos das contas correntes, baixa taxa de investimento e pressões inflacionárias persistentes no Brasil, e crescente carência de energia e alimentos necessários para manter o crescimento elevado e a estabilidade política na China.
A relação econômica bilateral tem aumentado velozmente, impulsionada pela demanda chinesa por commodities brasileiras e pela demanda brasileira por investimentos, bens de capital, bens intermediários e bens de consumo chineses. De fato, em 2011, o comércio bilateral alcançou US$ 77 bilhões, um aumento de 38% em relação a 2010. No ano passado, o superávit comercial com a China correspondeu a nada menos que 39% do nosso resultado total. A China não apenas é de longe a principal parceira comercial, mas, também, a principal fonte de investimento estrangeiro direto no Brasil.
As oportunidades de aprofundamento das relações econômicas bilaterais são bastante promissoras. Em favor do Brasil estão a incorporação de centenas de milhões de chineses à economia moderna e o aumento do consumo das famílias, que elevam a demanda por commodities. Em favor da China estão o nosso crescimento econômico e a expansão da classe média, que criam novas oportunidades de negócios.
As relações econômicas com a China têm beneficiado o Brasil no curto prazo. De fato, as exportações para a China contribuem para amenizar os déficits das contas correntes, enquanto as importações de produtos chineses têm sido úteis para disciplinar os preços internos e facilitar o acesso a bens de consumo, máquinas e insumos.
O outro lado da moeda é que as relações bilaterais, tal como elas se encontram, induzem a produção de commodities e desencorajam fortemente a produção industrial. Isto porque o padrão de comércio Brasil-China caracteriza-se como o tipo mais radical de comércio "norte-sul", muito mais radical até do que aquele com os Estados Unidos ou com a União Europeia: importam-se produtos manufaturados e exportam-se commodities. Em 2011, 91% das exportações brasileiras para a China foram commodities, enquanto as importações brasileiras da China representam parcelas crescentes do consumo aparente de manufaturados, chegando, em alguns setores, a mais de 50% do total. Já o investimento chinês no Brasil concentra-se em commodities, notadamente em petróleo, gás e mineração e na infraestrutura necessária para a sua exportação, tal como ocorre na África. Forja-se, com isso, uma crescente complementariedade entre as duas economias.
Diferentemente de outros países em desenvolvimento produtores de commodities, o Brasil tem uma indústria consolidada, inclusive com "market share" internacional não desprezível em alguns setores e, por isso, tem muito a perder com a estagnação da sua indústria. Ainda mais preocupante é a queda da diversificação das exportações e a crescente dependência de commodities. A evidência empírica internacional mostra que países mais dependentes da exportação de commodities tendem a ter crescimento econômico mais volátil e mais lento no longo prazo.
No Canto XII da Odisseia de Homero, Odisseu foi alertado pela deusa Circe dos desafios que enfrentaria ao passar pelas traiçoeiras águas das ilhas das sereias. Para sobreviver ao naufrágio iminente, Odisseu deveria resistir à provação do canto sedutor das sereias. Odisseu ordenou que o amarrassem fortemente ao mastro da sua nau, mandou tapar os ouvidos dos seus marujos com cera e lhes ordenou remar com todas as forças para que se livrassem logo daquelas águas. Odisseu ouviu os cantos das sereias, mas resistiu desesperadamente, o que lhes permitiu seguir viagem em segurança.
A relação econômica atual Brasil-China guarda similaridades alegóricas com a peça de Homero. A primarização não é destino e tampouco a crescente dependência à economia chinesa deve ser vista como panaceia para as deficiências da economia brasileira. O que, à primeira vista, são sedutoras e irresistíveis facilidades associadas a preços baixos de produtos importados, elevados ganhos com exportações de commodities e acesso facilitado a investimentos e financiamentos pode, na verdade, ser uma cilada com riscos substanciais e não negligenciáveis ao crescimento sustentável.
Em razão da singularidade dos dois países e do enorme potencial de cooperação, a relação Brasil-China requer uma visão menos pragmática por parte do Brasil e mais estratégica. É preciso buscar uma agenda de colaboração com objetivos mais amplos baseada no princípio do mútuo benefício, num horizonte de longo prazo. A agenda deve incluir parcerias em ciência e tecnologia, acesso a mercado, acordos de investimentos e o reconhecimento das enormes diferenças das políticas econômicas e comerciais nacionais e de seus impactos altamente assimétricos no padrão de comércio e investimento bilateral.
A China é, antes de tudo, uma grande oportunidade para o crescimento brasileiro. Mas, para que essa oportunidade se transforme em crescimento sustentável, será preciso o Brasil fazer o seu dever de casa. Para isso, será necessário, em primeiro lugar, que o país saiba o que quer da relação com a China. Em segundo lugar, para se mitigar a desindustrialização, será preciso aproveitar a base industrial, a experiência e a capacidade empreendedora para explorar industrialmente o enorme potencial brasileiro em áreas como recursos naturais, alimentos, energia e biotecnologia. Tal empreitada vai requerer investimentos em inovação para agregação de valor e melhoria do ambiente de negócios. Em terceiro lugar, será preciso uma diplomacia econômica mais vigorosa e equipar o país com mais e melhores recursos humanos e institucionais de defesa de nossos interesses.
Por fim, se, por um lado, a atual relação Brasil-China é sedutora por atenuar as nossas vulnerabilidades econômicas de curto prazo, por outro lado, ela cria novas vulnerabilidades de longo prazo, as quais poderão se manifestar já num contexto de eventual desaceleração do crescimento chinês.
Jorge Arbache é assessor da presidência do BNDES e professor de economia da Universidade de Brasília. E-mail: jarbache@gmail.com.
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