quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A China está certa em abrir-se devagar



Por Martin Wolf - Valor 29/02

A próxima grande crise financeira mundial virá da China. Não se trata de uma previsão inflexível. Poucos países, no entanto, conseguiram evitar crises depois de terem promovido liberalização financeira e integração internacional.

Pense nos Estados Unidos dos anos 30, Japão e Suécia no início dos 90, México e Coreia do Sul no final dos 90 e nos Estados Unidos, Reino Unido e grande parte da região do euro dos dias de hoje. Crises financeiras atingem todos os tipos de países. Como Carmen Reinhart, do Peterson Institute for International Economics, e Kenneth Rogoff, de Harvard, ressaltaram, as crises representam "uma ameaça que paira igualmente" sobre todos os países. A China poderia ser diferente? Apenas se as autoridades chinesas mantiverem a cautela.

A cautela permeou o informe, na semana passada, em que o Banco do Povo da China, autoridade monetária do país, recomendou acelerar a abertura do sistema financeiro chinês. Tendo em vista o que está em jogo, tanto na China como no mundo, é essencial considerar as implicações. Assim, talvez, o mundo faça agora um trabalho melhor do que fez no passado ao administrar esse processo.

O plano foi divulgado pela agência de notícias estatal Xinhua, não no site do banco central chinês. Além disso, foi divulgado sob o nome de Sheng Songcheng, chefe do departamento de estatísticas, não do presidente ou vice-presidente. Isso deve significar que se trata mais de um exercício para sondar as opiniões a respeito da ideia do que uma política já definida. Ainda assim, o informe foi divulgado com a aprovação do Banco do Povo da China e, muito possivelmente, com a de pessoas bem acima na hierarquia.

O artigo apresenta três fases de reforma. A primeira, a ocorrer nos próximos três anos, abriria caminho para mais investimentos chineses no exterior uma vez que "o encolhimento dos bancos e empresas ocidentais deixou espaço livre para investimentos chineses" e, portanto, trouxe uma "oportunidade estratégica". A segunda fase, a ocorrer entre três e cinco anos, aceleraria a concessão de empréstimos internacionais em yuans. No longo prazo, de cinco a dez anos, os estrangeiros poderiam investir em bônus, ações e propriedades na China. A livre conversão do yuan seria o "último passo", a ser dado em algum momento não definido. Esse passo também seria combinado com restrições aos fluxos de capital "especulativos" e à captação estrangeira de curto prazo. Em resumo, a integração plena seria adiada indefinidamente.

Quais as implicações do plano? A resposta é que o plano parece ser sensato. Para chegar a essa opinião, é preciso levar em conta os benefícios e riscos para a China e o mundo da "reforma e abertura" financeira dos chineses.

Os argumentos a favor de tal abertura para o mundo estão ligados intimamente aos favoráveis à reforma doméstica. De fato, a primeira não pode ser promovida antes da última: abrir ao resto do mundo o sistema financeiro chinês altamente regulamentado seria uma receita para um desastre, como as autoridades chinesas já sabem. É por esse motivo que a conversibilidade plena chegaria apenas em um futuro distante, com indica o plano.

Felizmente, os argumentos para uma reforma doméstica são fortes. Mercados financeiros dinâmicos são elemento essencial em qualquer economia que deseje sustentar seu crescimento e começar a rivalizar com os países ricos em produtividade, como a China certamente aspira a fazer. De forma mais imediata, como destaca Nicholas Lardy, do Peterson Institute for International Economics, em recente estudo, "taxas de depósitos reais negativas impõem um imposto implícito elevado às famílias, que são grandes depositantes líquidos no sistema bancário, e levam a investimentos excessivos em imóveis residenciais". "Taxas de empréstimo reais negativas subsidiam investimentos em setores de uso intensivo de capital, minando, portanto, o objetivo de reestruturação da economia em favor da indústria leve e do setor de serviços."*

No entanto, como Lardy também sabe, esse regime financeiro distorcido faz parte de um sistema mais amplo de tributação da poupança, promoção dos investimentos e limitação do consumo, que levou a imensas intervenções nos mercados de câmbio e à vasta acumulação de reservas internacionais. O argumento mais forte pelas reformas é que esse sistema não mais contribui para um padrão de desenvolvimento desejável. A estrutura, porém, está tão arraigada à economia que reformá-la é algo politicamente tenso e economicamente destrutivo. A questão, inclusive, é se tal reforma é politicamente viável. Certamente, será um processo lento.

Como, então, as medidas de abertura propostas pelo banco central se encaixam em tal reforma cautelosa? Presumivelmente, a maior liberdade de fluxos de saída de capital prevista para os próximos cinco anos ajudaria a substituir em parte o acúmulo de reservas internacionais. Se isso, contudo, ocorresse paralelamente à rota indicada de aumento nos juros reais, os superávits da China em conta corrente e na poupança poderiam disparar, agravando os desequilíbrios externos.

Isso evidencia como é grande a aposta em jogo para o resto do mundo com o tipo de reforma e de abertura do setor financeiro que vier a ocorrer na China.

A poupança bruta da China está em um índice anual bem acima de US$ 3 trilhões, o que é mais de 50% maior do que a poupança bruta dos Estados Unidos. A integração total desses vastos fluxos certamente terá imenso impacto no mundo. As instituições financeiras da China, já enormes, quase certamente se tornarão as maiores do mundo nos próximos dez anos. Basta lembrar-se da integração do Japão da década de 80 e a subsequente implosão financeira para ver os possíveis perigos. Devemos ficar satisfeitos, portanto, de que a China esteja adotando uma abordagem cautelosa.

O mundo tem interesses enormes na reorientação da economia da China em direção a um crescimento mais equilibrado. Também tem interesse paralelo na forma como a China administrar sua reforma doméstica e abertura do sistema financeiro. Toda uma série de políticas precisa ser coordenada, particularmente no que se refere à regulamentação financeira, política monetária e regimes cambiais. Se isso for bem realizado, a atual crise dos países de alta renda não será seguida logo depois pela "crise da China' dos anos 2020 ou 2030. Se for mal realizado, até os chineses poderiam perder o controle, com resultados devastadores.

O Banco do Povo da China sugere um cronograma de reformas que se adequaria às necessidades da China e do mundo. Mas para que isso aconteça, discussões meticulosas de todas as implicações precisam ocorrer agora. As políticas da China não importam apenas aos chineses. É isso que significa ser uma superpotência - como os EUA deveriam saber. (Tradução de Sabino Ahumada)



* Sustaining China's Economic Growth After the Global Financial Crisis, (algo como "sustentando o crescimento econômico da China depois da crise financeira mundial") Peterson Institute for International Economics, 2012.



Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

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