quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Transferindo reputação
Por Carlos Viana de Carvalho - Valor 06/10
A reunião de hoje do Banco Central Europeu (BCE) será a última sob o comando do seu atual presidente. Jean Claude Trichet construiu sólida reputação de banqueiro central comprometido com inflação baixa. Essa postura se reflete na condução recente da política de juros do banco. Por conta da inflação acima da meta, o BCE vinha elevando as taxas de juros até recentemente, a despeito da crise que assola a região.
Essa conjunção de fatores - crise, inflação acima da meta e troca de comando - dificulta o trabalho de se antever a decisão a ser tomada pelo BCE na reunião de hoje, e nos próximos meses. Talvez um episódio passado, que guarda algumas similaridades, seja útil neste contexto.
Nos últimos meses de 1998, o Bundesbank (banco central alemão) estava sob forte pressão política para reduzir os juros. O seu crítico mais vocal era ninguém menos do que o recém-empossado ministro das Finanças. Àquela altura, a economia alemã dava sinais de desaceleração e a inflação vinha caindo sensivelmente. Entretanto, até novembro, o Bundesbank havia mantido sua meta de taxa de juros constante e havia sinais de que isso não mudaria até o fim do ano.
Em virtude da reputação de forte comprometimento com a estabilidade de preços, tentativas políticas de influenciar as decisões do Bundesbank não eram muito frequentes e, em todo caso, não deveriam ser grande fonte de preocupação. Entretanto, o fim de 1998 não era um período usual.
Afinal, a partir de janeiro do ano seguinte, as decisões de política monetária para a zona do euro passariam a ser tomadas pelo BCE. E uma das grandes preocupações dos alemães em relação a essa mudança era justamente garantir que as decisões do novo banco central fossem tão isentas de influência política e tão focadas na estabilidade de preços quanto as do Bundesbank.
O que o banco central alemão poderia fazer naquelas circunstâncias? Reduzir as taxas de juros. Essa resposta não parecia ser compatível com os padrões históricos de atuação do Bundesbank. Mas ao se desviar do seu padrão usual e optar por um corte de juros naquele momento, o BC alemão poderia de certa forma facilitar o trabalho do BCE.
Com alguma probabilidade, o novo banco central não precisaria mais reduzir as taxas de juros nos meses seguintes. Ainda que isso se fizesse necessário, a pressão política para tal poderia esmorecer em decorrência do corte inesperado pelo Bundesbank. Em qualquer um dos casos, o ambiente seria mais propício à construção de reputação do BCE como um banco central vigilante em relação à inflação. Para o banco alemão a decisão não chegaria a ser um passo embaraçoso na direção errada, mas sim a antecipação de uma decisão que ele próprio provavelmente tomaria um pouco adiante.
Apesar do contexto distinto, alguns aspectos da conjuntura atual sugerem uma analogia com o episódio de 1998. Em tempos normais, e sob o comando de Trichet, seria razoável supor que o BCE continuaria com o aperto monetário por mais alguns meses. Entretanto, a situação na Europa está claramente longe da normalidade.
Os apertos fiscais impostos aos governos dos países mais afetados pela crise, aliados à perda de confiança na zona do euro, estão tendo forte efeito contracionista sobre a atividade econômica da região. Somem-se a isso as evidências de problemas de liquidez e/ou solvência no setor bancário de alguns países, e a meu ver passa a ser mais razoável prever que o próximo movimento do BCE será de redução da taxa de juros.
Além disso, a partir de novembro o BCE passará a ser presidido pelo italiano Mario Draghi. Infelizmente, como a Itália vem enfrentando dificuldades para rolar sua dívida pública, já surgiram especulações acerca do tratamento que o BCE do futuro presidente dispensará ao seu país de origem. De um lado, há os que antecipam que o BCE será retoricamente mais duro com os países que vêm enfrentando dificuldades para obter financiamento nos mercados, incluindo a Itália, para não parecer leniente. De outro lado, há os que preveem maior disposição do BCE de Draghi para ajudar esses países, e os que temem que um eventual corte nas taxas de juros com a inflação correndo acima da meta possa abalar a sua reputação.
As circunstâncias parecem propícias para um corte de juros "antecipado" pelo BCE já nesta reunião. Além de atenuar os efeitos contracionistas dos apertos fiscais ora discutidos, tal decisão poderia facilitar o trabalho de preservação (construção?) de reputação do BCE de Mario Draghi, pelas mesmas razões que o corte de juros pelo Bundesbank em dezembro de 1998 pode ter ajudado o BCE nos seus primeiros meses (sim, o Bundesbank reduziu os juros na ocasião).
Um episódio recente envolvendo o Banco Central brasileiro (BC) talvez se preste a uma análise semelhante. Refiro-me à manutenção dos juros na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) sob o comando do seu ex-presidente Henrique Meirelles, seguida de elevação já na primeira reunião do Copom sob o comando do atual presidente, Alexandre Tombini. A manutenção dos juros na última reunião de 2010 surpreendeu a maioria dos analistas econômicos, que advogavam aperto monetário para combater a inflação em alta.
Com a mudança de comando no Banco Central brasileiro, os juros foram elevados em cinco ocasiões, até o corte inesperado da Selic na última reunião do Copom. Será que houve uma tentativa de "transferência de reputação" na transição do BC de Meirelles para o BC de Tombini? Bem, mas nesse caso há uma série de considerações adicionais a serem feitas. É melhor deixar essa análise para uma outra ocasião.
Carlos Viana de Carvalho é professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e sócio da Kyros Investimentos
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