segunda-feira, 17 de outubro de 2011
Fome de comida e de estabilidade
Por José Graziano da Silva - Valor 17/10
Raras vezes o dia Mundial da Alimentação, data que remete à criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 16 de outubro de 1945, cercou-se de tantas incertezas. Os maiores níveis de volatilidade de preços agrícolas verificados nas últimas décadas e a velocidade das oscilações ameaçam produtores e consumidores.
Em movimento semelhante ao de outras commodities básicas, o Índice de Preços de Alimentos da FAO desenha curvas acentuadas desde 2006, quando uma subida contínua elevou os preços a um então nível recorde em meados de 2008. Os preços despencaram no segundo semestre, mas no ano seguinte recomeçou um movimento de alta que se acelerou em 2010 até chegar a um novo patamar histórico, onde nos encontramos agora.
Quando as cotações arremetem em direções opostas e com igual vigor, num curto espaço de tempo, é muito difícil não cometer erros de cálculo. Eles podem assumir contornos superlativos tanto no excesso da semeadura, quanto na insuficiência do investimento.
A volatilidade decorrente deforma em vez de lubrificar a acomodação entre oferta e demanda. Impede justamente que os mercados procedam à tarefa de condensar desequilíbrios em referências consensuais (preços) que encorajam o investimento e incrementam o consumo. Nesse ambiente de incertezas a fome ameaça invadir a casa de milhões de famílias que vivem na corda bamba, ora acima, ora abaixo da linha da pobreza.
Praticamente um em cada sete habitantes do planeta passa fome em pleno século XXI. Quase 80% da humanidade vive com menos de US$ 10 por dia. Para a parcela predominante do planeta, portanto, a face mais visível da crise são as oscilações abruptas nos preços da comida e ameaça da fome. A solução definitiva para esse problema passa por entendê-lo como uma das prioridades interligadas pela agenda da crise.
O mais recente relatório da FAO sobre a situação da fome no mundo (www.fao.org/publications/sofi/es/) aponta a retomada dos investimentos em agricultura e segurança alimentar nos países pobres e em desenvolvimento como um requisito para garantir o bem-estar de bilhões de pessoas num ambiente de preços altos e volatilidade persistente. Mais que uma insistência é um alerta. Desde o início dos anos 1980 a fatia da agricultura na ajuda internacional ao desenvolvimento registrou um retrocesso importante: de 17% para cerca de 5% do total, queda agravada pela redução dos investimentos dos próprios governos receptores de cooperação.
O equívoco dessas decisões pode ser mensurado no atual descompasso entre a oferta e a demanda. A produção cresce, mas a fome não diminui e os estoques globais seguem em níveis baixos. Em resumo, a promessa de abastecimento just in time pelos mercados não se confirmou.
Não há mágica que faça brotar os campos sem políticas afins. A agricultura necessita de investimentos para romper um descompasso que amplifica a fome e os equívocos neomalthusianos.
Embora o grosso dos recursos deva vir da esfera privada - que segue uma lógica própria cuja prioridade não é acabar com a fome - os Estados tem um papel importante a recuperar. A eles caberá investir em áreas onde a carência de alimentos é mais aguda, seja no apoio direto a pequenos produtores ou em bens públicos necessários ao desenvolvimento rural e ao bem estar de seus habitantes.
O estímulo à agricultura familiar e o resgate da alimentação tradicional são estratégias complementares em momentos de incerteza nos mercados mundiais. Elas reduzem a dependência em relação a mercados instáveis de commodities, geram renda e trabalho e propiciam uma saudável diversificação da dieta.
O complemento a esse estímulo produtivo é o fortalecimento das redes de proteção social, uma forma de alívio imediato às famílias vulneráveis que pode dinamizar os mercados locais. Onde há fome, invariavelmente há comunidades rurais exauridas economicamente, como a vegetação murcha de um campo sem água. Políticas de transferências de renda funcionam como chuva nesse solo seco, permitindo que volte a florescer.
Plantar, colher e consumir é o que faz girar a roda da economia em milhões de pequenos núcleos populacionais do planeta. Levado à escala nacional com crédito ao pequeno produtor, assistência técnica e aquisições de colheita - desde alimentos a sementes crioulas - esse motor ajudou o Brasil a superar a crise.
O foco na segurança alimentar, portanto, não é uma ilha dentro da crise, tampouco um alvo estático. Não visa apenas responder à urgência da fome, mas compor uma dinâmica feita de mercados locais e internacionais robustos, sistema financeiro regulado e ações coordenadas de governos em parcerias com a sociedade civil, a iniciativa privada e a cooperação internacional.
Na abrangência do desafio reside a sua força. Os interesses ecumênicos arrebanhados nessa agenda emprestam coerência social e produtiva à re-ordenação global requerida pela crise.
Um exemplo resume as energias locais potencialmente acionáveis nessa direção. Nos países pobres e em desenvolvimento as mulheres formam 43% da força de trabalho agrícola. Restrições de gênero no acesso ao crédito, à terra e a insumos reduzem a produtividade da lavoura sob controle feminino. Facilitar esse acesso poderia elevar a oferta em até 4%, tirando 100 a 150 milhões de pessoas da subnutrição.
O Prêmio Nobel acaba de reconhecer o papel decisivo da mulher na construção da paz. Está na hora de reconhecer, também, a sua relevância como arquiteta de um mundo feito de maior segurança e estabilidade, alimentar e financeira.
José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para a América Latina e Caribe e diretor-geral eleito da Organização, cargo que assumirá em 1º de janeiro de 2012
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