quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Seja ousado, apague esse incêndio


Por Martin Wolf - Valor 26/10

Caro Mario Draghi. Congratulações e comiserações: na próxima semana, você assumirá uma das mais importantes missões de um banco central em todo o mundo; mas também assumirá uma responsabilidade terrível. Somente o Banco Central Europeu pode acabar com a crise da zona do euro. Você precisa escolher entre dois caminhos: o ortodoxo levará ao fracasso; o heterodoxo deve levar ao sucesso.

A zona do euro enfrenta um conjunto de complexas dificuldades de longo prazo. Mas seus membros não terão a oportunidade de fazer os ajustes necessários e implementar as reformas necessárias se ela não sobreviver. Entre as necessidades imediatas estão colocar a Grécia numa rota sustentável, evitar um colapso nos mercados de dívida pública de vários países grandes e impedir o colapso dos bancos. Dessas, são as duas últimas que importam.

O economista que melhor explicou o papel do BCE é Paul De Grauwe, da Universidade Leuven*. Por que, perguntou ele, as taxas de juro sobre a dívida de vários grandes países membros da zona euro são maiores do que no Reino Unido, apesar de a situação fiscal britânica estar longe de excelente: os déficits e a dívida pública líquida da Espanha são inferiores às do Reino Unido, a taxa de endividamento da Itália é maior, mas seu déficit é muito menor, e o déficit francês é menor, embora sua dívida seja um pouco maior.

É certamente surpreendente que os mercados encarem a dívida do Reino Unido com menos ceticismo que as dos outros países. Isso não está acontecendo porque os anglófonos criaram uma trama engenhosa para destruir o euro, eles não são tão espertos. Para deixar bem clara a explicação alternativa de De Grauwe: é o banco central, idiota.

O que é, afinal, que determina o preço das dívidas soberanas? Governos não oferecem nenhuma garantia - e créditos baseados em receitas tributárias proporcionam uma segurança ilusória.

Consideremos o exemplo da Itália: a dívida pública líquida é de 120% do Produto Interno Bruto (PIB); o prazo de maturação médio é de sete anos; e o déficit fiscal é de 4% do PIB. Assim, seu governo precisa arrecadar um quinto do PIB a cada ano. Todos os credores sabem disso. Suponhamos que os credores temam que o governo seja incapaz de tomar emprestado somas tão enormes. Poderia a Itália sobreviver cortando gastos? Não. Se o país tentasse resgatar sua dívida pagando-a com receitas, precisaria reduzir seus gastos em bem mais do que um quinto do PIB, de um dia para outro, uma vez que a própria tentativa levaria o país a uma depressão. Nenhum credor são imagina que um país nessa situação conseguiria rolar sua dívida.

Os mercados de dívida de governos sustentam-se como por magia: a disposição para conceder empréstimos depende da disposição de outros a também fazê-lo, agora e no futuro. Esses mercados podem ser cenário de pânico de manadas e por isso necessitam um comprador de última instância investido de credibilidade: o banco central. O Reino Unido tem um. Os membros do euro não. Na prática, eles tomam empréstimos em moeda estrangeira.

É claro que os membros podem reduzir os riscos. Eles podem ter dívidas e déficits menores, embora a Espanha tenha efetivamente entrado em crise com menos endividamento e déficit do que a Alemanha. Eles podem tomar empréstimos de longo prazo - no século XIX, grande parte da dívida do Reino Unido era impagável.

Qualquer tentativa por parte do BCE de ser o emprestador de última instância que os membros necessitam desencadeará protestos. As pessoas argumentarão que o banco central poderá perder dinheiro, exacerbar o risco moral e atiçar a inflação.

Quanto à primeira dessas acusações, a resposta certa é: e daí? O objetivo do banco central é estabilizar as economias, e não ganhar dinheiro.É muito mais provável que o BC perca dinheiro com intervenções hesitantes do que mediante intervenções vigorosas que produzam êxito. Quanto à segunda objeção, é necessária uma compreensão clara das regras que regem as políticas fiscal e econômica. É preciso também decidir se um país é crivelmente solvente. A Itália e a Espanha certamente são. Quanto à terceira objeção, não existe uma boa razão para esperar um processo inflacionário fora de controle como resultado de operações monetárias de um banco central. A expansão da base monetária não resulta automaticamente em expansão da oferta monetária, como bem sabemos. Com efeito, durante a atual crise, a base monetária tornou-se desconectada da oferta monetária em todas as grandes economias. Esse é o significado de crise financeira.

Suponhamos que o BCE tenha êxito em estabilizar os mercados de títulos de governos dessa maneira. Isso também estabilizaria, automaticamente, os bancos, uma vez que é o medo de inadimplência soberana que está provocando preocupações com insolvências bancárias. Capital capaz de proteger o sistema bancário europeu de grandes defaults soberanos simplesmente não existe. É particularmente ridículo supor que os soberanos possam oferecer seguro eficaz contra seu próprio colapso. No entanto, para início de conversa, como inexistem boas razões para que uma zona do euro bem administrada sofra tais colapsos, a resposta é cortá-los - na raiz.

Escrevo "bem administrada", deliberadamente. Uma zona do euro bem administrada é sinônimo de crescimento sustentado e realização de ajustes. Também nesses aspectos o BCE tem papel fundamental a desempenhar.

A zona do euro como um todo não sofreu enormes bolhas de ativos e consequentes crises financeiras: essas bolhas limitaram-se a alguns membros periféricos. Não há nenhuma boa razão para uma grande recessão e fraco crescimento subsequente. Apesar disso, o BCE permitiu que o PIB nominal e a oferta monetária (supostamente, o "segundo pilar" das suas políticas) estagnasse. No segundo trimestre de 2011, o PIB nominal da zona do euro foi apenas 1,4% maior do que três anos antes. A base monetária ampla cresceu a uma taxa anual acumulada pouco acima de 2% nos três anos até o fim de agosto. Mais uma vez, o núcleo da inflação - o único alvo relevante quando os preços das commodities mostram-se tão erráticos atingiu uma taxa acumulada de 1,4% ao ano nos três anos até setembro. Para qualquer observador sensato, tudo isso é fortíssima evidência de que a política do BCE foi muito apertada. Para que a zona do euro possa ter alguma esperança de ajuste com crescimento, isso precisa mudar, e já.

A zona do euro corre o risco de ser varrida por um tsunami de crises fiscais e bancárias. A Linha de Estabilidade Financeira Europeia não poderá detê-lo. Só o BCE pode. Como única instituição com jurisdição sobre toda a zona do euro, cabe ao BCE essa responsabilidade. E ele também tem poder para isso. Sinto muito, Mário. Mas você está diante uma escolha: agradar os falcões monetários ou salvar a economia da zona do euro. Opte pela segunda das alternativas. Explique sua opção. E lembre-se: a sorte favorece os audazes. Seu,

Martin

* Only a more active ECB can solve the euro crisis (apenas um BCE mais ativo pode resolver a crise do euro), Centre for European Policy Studies, 2011, www.ceps.be/book/only-more-active-ecb-can-solve-euro-crisis

(Tradução Sergio Blum)

Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

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