quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O capitalismo americano



Por José Luís Fiori Valor 29/08


Years before the Declaration of Independence…Benjamin Franklin, George Washington and Thomas Jefferson, as well as a considerable ratio of New England's most proeminent Congregationalist ministers already talked of America reaching the Mississippi or even the Pacific to become the next century great empire. Kevin Phillips, "The Cousins' Wars", Basic Books, New York, 1999, p.116

A publicação, em 1894, do livro do economista inglês, John A. Hobson (1858-1940), "A Evolução do Capitalismo Moderno", transformou-se numa referência obrigatória para a interpretação do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. Depois de Hobson, vários historiadores e economistas retomaram sua tese sobre a originalidade radical do capitalismo americano, vis-á-vis o desenvolvimento europeu. Em particular, depois da Guerra de Secessão (1861-1865), com o surgimento das grandes corporações e do capital financeiro que teriam revolucionado a organização microeconômica, e mudado a face do capitalismo mundial. Do nosso ponto de vista, entretanto, estas transformações ajudam a entender o "milagre econômico" americano do início do século XX, mas não explicam as próprias transformações.

Os Estados Unidos foram o primeiro estado nacional que nasceu fora da Europa, mas não nasceu fora do sistema geopolítico e econômico europeu. Pode-se dizer, inclusive, que a "Guerra da Independência" americana foi, em grande parte, um capítulo da disputa entre a Inglaterra e a França pela supremacia mundial. E sua conquista definitiva ocorreu entre as duas grandes guerras ("Dos 7 Anos" e "Bonapartista") que definiram a hierarquia de poder internacional, e a supremacia inglesa, dentro e fora da Europa, a partir de 1815. Durante esse período de guerras, os Estados Unidos sempre se sentiram "cercados" e ameaçados - simultânea ou sucessivamente - pela Inglaterra, França e Espanha, e tiveram que negociar seu reconhecimento e suas fronteiras com o "núcleo duro" das Grandes Potências europeias.
Assim mesmo, os EUA acabaram se transformando no único estado nacional extra-europeu que nasceu de um império e de uma economia em plena expansão vitoriosa. Mais do que isto, durante a chamada "revolução industrial" que transformou os Estados Unidos - imediatamente - na primeira periferia "primário-exportadora" de sucesso da economia industrial inglesa. Situação econômica privilegiada que se consolidou e expandiu durante todo o século XIX, antes e depois da Guerra de Secessão, enquanto a Inglaterra abria espaços de expansão comercial para sua ex-colônia, e assumia a responsabilidade - em alguns momentos - por cerca de 60% do investimento direto dentro de todo o território americano, que passou a fazer parte de uma espécie de "zona de co-prosperidade" anglo-saxônica, ou mesmo, num caso "avant la lettre", de "desenvolvimento a convite", da Inglaterra.

Por outro lado, desde sua independência, os Estados Unidos foram governados por uma elite coesa e com um "intense commitment" imperial, e mantiveram um ritmo de expansão política e territorial contínua, por meio da guerra, da diplomacia e do comércio. Antes da Guerra Civil, foram 37 "guerras indígenas", e mais as Guerras do Texas e do México, em 1837 e 1846, responsáveis pela duplicação do território americano. Mais a frente, vieram a Guerra Civil e a Guerra Hispano-Americana, e uma sucessão de intervenções militares no Caribe, num movimento de expansão que se acelerou no século XX, alcançando Europa, Ásia, Oriente Médio e África.

De forma que nos cerca de 250 anos de história independente, os EUA iniciaram - em média- uma guerra a cada três anos, exatamente como a Inglaterra. Contando com a vantagem de ser "membro por nascimento" da pequena comunidade dos estados produtores da "ética internacional" que arbitram as "guerras justas" e o "livre-comércio". A história segue e é extensa, mas já se pode dizer que ela fornece fortes indícios de que:

1- o desenvolvimento econômico dos EUA não foi uma exceção, pelo contrário, foi uma parte essencial da expansão e das contradições do sistema inter-estatal e do capitalismo europeu;

2- o sucesso do capitalismo americano não foi puramente endógeno, nem foi apenas uma obra das grandes corporações e do capital financeiro que nasceram à sombra da Guerra Civil;

3- o "apoio externo" foi decisivo para o sucesso da economia americana, que foi sempre a principal "fronteira de expansão" do capital financeiro inglês;

4- a "guerra contínua" teve um papel estratégico no desenho das políticas industrial e agrícola, e no desenvolvimento científico e tecnológico dos EUA; e por fim, a expansão política, territorial e bélica dos EUA foi na frente do processo de internacionalização das grandes corporações, do capital financeiro e da moeda americana.

Uma história de desenvolvimento econômico como a das demais potências do sistema mundial, mas muito diferente da interpretação economicista de Hobson e seus discípulos.



José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

A última chance dos republicanos



Por Gideon Rachman - Valor 28/08

A história política mais significativa nos EUA neste ano nada tem a ver com a política. Veio em um artigo no "The New York Times" intitulado "Brancos representam menos de metade dos nascimentos nos EUA".

Parte do sentimento de medo e ira que muitos eleitores republicanos dirigem contra Barack Obama está certamente relacionada com a percepção de que o presidente representa "a outra América", os EUA não brancos que acabarão por constituir uma maioria na população do país.

É possível perceber a raiva no popular slogan "Quero meu país de volta". Podemos vê-la na cobrança, na convenção do partido, por políticas cada vez mais duras contra imigrantes ilegais. Podemos identificar traços dessa raiva nas denúncias de conotação racial contra o "Obamacare", que tem por objetivo proporcionar cobertura de saúde a 44 milhões de americanos não segurados.

As mudanças no perfil demográfico americano e as considerações políticas que as caracterizam colocam um grande dilema estratégico para os republicanos. Um importante estrategista partidário argumenta que a eleição presidencial de 2012 já se resume a uma batalha entre economia e demografia. Economia fraca e desemprego elevado favorecem os republicanos. Mas as tendências demográficas beneficiam os democratas. O crescimento do voto hispânico significa que três Estados onde George W. Bush venceu em 2004 - Nevada, Colorado e Novo México - estão se inclinando em favor de Obama.

A Califórnia, maior Estado do país e Estado natal de Richard Nixon e de Ronald Reagan, votou nos republicanos em todas as eleições presidenciais de 1968 a 1988. Mas os democratas lá ganharam desde 1992 e Obama está seguramente na dianteira, lá. Muitos analistas identificam a mudança na preferência estadual pelos republicanos aos "ataques" cada vez mais estridentes contra a imigração ilegal.

As pesquisas mais recentes ressaltam em que medida Mitt Romney vai mal entre os hispânicos. Uma pesquisa NBC-Wall Street Journal na semana passada mostrou que Obama lidera entre os hispânicos por 63% a 28%. O campo de Romney fala esperançosamente sobre ampliar sua participação para 38% do voto hispânico até o dia das eleições, mas é difícil acreditar nisso.

Havia rumores de que o candidato republicano poderia escolher o senador Marco Rúbio, da Flórida, um cubano-americano, como seu companheiro de chapa. Mas ele optou pelo congressista Paul Ryan - cuja escolha parece, segundo as pesquisas, ter efetivamente diminuído o apelo da chapa junto aos eleitores hispânicos.

A convenção do Partido Republicano em Tampa deverá adotar uma plataforma partidária de linha dura em questões cruciais para os eleitores hispânicos, em especial a imigração ilegal. Na convenção, será reivindicada a conclusão da construção de uma cerca com dupla camada, na fronteira com o México, e a adoção de um sistema eletrônico, chamado "E-Verify", exigindo que todos os empregadores confirmem o status legal de novos contratados. Até mesmo a maioria dos hispânicos, que têm todo o direito de viver nos EUA, tendem a se opor às políticas focadas nos ilegais ou que os ameacem com deportação.

Durante as primárias, Romney manifestou-se a favor de "autodeportação" - termo que empregou para indicar a adoção de leis trabalhistas tão rígidas que os imigrantes ilegais veriam-se na impossibilidade de encontrar trabalho e optariam por voltar para casa. Como suspira um estrategista republicano: "É difícil conseguir que as pessoas votem em você quando, para começo de conversa, elas acham que você não as quer no país".

A caminho da convenção, Romney tinha se igualado a Obama, segundo muitas pesquisas. Ele, claramente, tem uma boa chance de vitória. Mas, se perder, as chances de os republicanos reconquistaram a Casa Branca diminuirão a cada eleição - a menos que consigam um desempenho muito melhor entre os eleitores minoritários, em geral, e os eleitores hispânicos, em particular.

Neste momento, cerca de 63% da população americana é branca. Mas, por volta de 2040, o país provavelmente terá um perfil "maioria-minoria". Os hispânicos representam atualmente 16% da população americana. Mas 26% dos bebês nos EUA, no ano passado, nasceram em famílias hispânicas.

Os republicanos correm o risco de ficar aprisonados num círculo vicioso. Em razão de tantos eleitores participantes em suas primárias serem "anglos" idosos revoltados com as mudanças demográficas nos EUA, os candidatos à indicação pelos republicanos são mais ou menos obrigados a adotar posições radicais na questão da imigração, que provavelmente pesarão muito contra eles quando pedirem votos ao eleitorado hispânico na eleição geral.

Republicanos confortam-se imaginando que a filiação dos eleitores hispânicos poderá mudar ao longo do tempo. Muitos hispânicos têm posições socialmente conservadoras que poderão se encaixar bem no moderno Partido Republicano. Ted Cruz, candidato do partido ao Senado dos EUA pelo Texas, em novembro, é latino-americano e um queridinho do movimento Tea Party.

Candidatos como Cruz e Rubio mantêm acesa a esperança de criar um Partido Republicano que seja bem mais atraente aos eleitores hispânicos. No entanto, os republicanos não podem assumir que um grande número de hispânicos aderirão mais ao partido com o passar do tempo. As atitudes políticas que se formam nos duros anos iniciais, na esteira da chegada das pessoas aos EUA, podem ser muito duráveis. A grande maioria dos judeus ainda vota nos democratas.

A incapacidade de atrair os votos das minorias étnicas em geral e, em particular, dos hispânicos, é uma grande desvantagem para os republicanos nessa eleição, mas uma chapa Romney-Ryan ainda poderá superá-la. Em eleições futuras, ela poderá ser fatal. Romney enfrenta uma batalha muito difícil, nos próximos meses. Futuros candidatos republicanos poderão concluir que o trabalho dele foi fácil. (Tradução de Sergio Blum)



Gideon Rachman é o principal analista de assuntos internacionais no FT.

O problema brasileiro


Por Antonio Delfim Netto - Valor 28/08

É impossível chegar a um consenso sobre o Brasil que gostaríamos de legar à geração que amadurecerá em 2030. Há fatos demográficos já inscritos que, com toda a probabilidade, se realizarão, a não ser que sejamos atropelados por uma improvável invasão marciana.

Graças ao processo civilizatório, que, felizmente, foi introjetado pela mulher brasileira, que hoje estuda mais, gera menos filhos (e um pouco mais tarde) e aumenta a participação na força de trabalho, vivemos uma revolução demográfica e econômica. Há menos de quatro décadas, temia-se que o Brasil, com sua então fantástica taxa de fecundidade, estaria condenado a ser um país miserável. A tabela abaixo dá alguns números que revelam a preocupação então existente.
É preciso fazer justiça a alguns economistas e aos demógrafos mais recatados, que nunca aceitaram aquele crescimento exponencial. Seus modelos eram um pouco sofisticados. Implicavam a aceitação de uma função logística com assíntotas precariamente determinadas. De qualquer forma, a situação parecia mesmo muito preocupante. Na década de 60 do século passado, a média de filhos por mulher era de 6,3!

Não foi, sem alguma razão, que naquele momento o Brasil namorou com um processo de "controle da natalidade", que sofreu forte oposição do Vaticano. Pois bem. Foi o processo civilizatório da mulher brasileira que reduziu em menos de duas gerações a sua taxa de fecundidade para 1,94, abaixo da taxa de reposição populacional de 2,1 filhos.

Qual o seu resultado? O Censo de 2010 revelou que a população brasileira era de 191 milhões, praticamente 65% do propalado terrorismo demográfico dos anos 60! O Brasil é hoje um país com pequeno crescimento populacional e com aumento significativo da expectativa de vida ao nascer. Esses fatos estão registrados no gráfico 1, abaixo.

Como se vê, vamos passar por um máximo populacional em 2040, acompanhado de um envelhecimento significativo. A pirâmide etária, revelada no gráfico 2, mostra que o aumento da população não será apenas quantitativo, mas também, e principalmente, qualitativo, com uma mudança profunda na estrutura da demanda de bens e serviços: menos crianças para serem educadas e mais idosos para serem cuidados...

É esse fato demográfico insuperável que coloca, na minha opinião, o mais importante problema que temos de deixar solucionado para a próxima geração. Hoje, temos 130 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos. Em 2030, teremos 150 milhões: cidadãos mais velhos, mais educados e, tudo sugere, mais exigentes com relação à administração do país.

O mais importante problema nacional é este: como vamos organizar a sociedade brasileira para propiciar empregos, de boa qualidade e salários adequados, a 150 milhões de pessoas que constituirão a população em idade ativa em 2030? A resposta não é simples, nem clara.

O que é simples e claro é que isso não se fará simplesmente aprofundando a estrutura produtiva atual, apoiada na sofisticadíssima e produtiva agroindústria nacional, que agrega mais valor do que em geral se quer admitir, mas que é poupadora de mão de obra. E muito menos com a exploração mineral (inclusive o petróleo), atividades altamente capital-intensivas, com altíssima tecnologia e trabalho superespecializado.

Se quisermos ter em 2030 algo parecido com o nível de renda per capita em paridade de poder de compra de Portugal de hoje, temos de crescer em torno de 5% ao ano (mais ou menos 4% do PIB per capita), em média, nos próximos 18 anos. Isso pedirá cuidadosa e rigorosa política fiscal, capaz de sustentar a política monetária (que produzirá o equilíbrio interno), e adequada política cambial (que produzirá o equilíbrio externo).

Nas condições atuais de pressão e temperatura, isso exigirá um investimento bruto anual, até 2030, da ordem de 25% do PIB (com talvez um déficit em conta corrente de não mais do que 1,5% ao ano). O nosso Estado forte, constitucionalmente controlado, precisa cooptar, com regulação segura e amigável, o nosso eficiente setor privado!

É preciso superar a desconfiança mútua, ainda existente entre eles, com a transferência - por concessão ou parcerias - do investimento em infraestrutura para o setor privado, através de leilões bem projetados, que determinem as justas taxas de retorno para garantirem a quantidade e a qualidade dos serviços no presente e no futuro.



Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A perda de alimentos amplia o "Custo Brasil"



Por Adalberto Luis Val - Valor 27/08

O Brasil está há pelo menos meia década em franca expansão econômica. Mas uma questão que ainda emperra o desenvolvimento e o crescimento é o chamado custo Brasil. Entre as questões colocadas por um investidor antes de aplicar o seu capital no país estão: os impostos são reduzidos? A mão de obra é barata? Os juros são baixos? Existe uma boa infraestrutura de transportes? A energia é abundante? Há informação científica robusta disponível? Há suporte técnico-científico para as atividades planejadas?

Porém, há um aspecto que também afeta a conta final do custo Brasil mas que é pouco abordado. É a questão da fome e do desperdício de alimentos. O Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam comida no mundo. Se reduzisse essas perdas, o país poderia oferecer mais produtos para o mercado interno, barateando os preços, e também exportar mais. Ou seja, o mercado consumidor se beneficiaria de preços mais baixos, entrariam divisas e o gasto governamental com todo o sistema seria menor, podendo-se investir em outros setores, como educação, ciência, tecnologia, inovação e infraestrutura. Boa parcela do chamado custo Brasil poderia ser equacionada.

Órgãos governamentais e pesquisadores de entidades públicas e privadas se debruçam sobre o problema diariamente, com o intuito de encontrar soluções para os diversos gargalos que o circuito dos alimentos enfrenta no Brasil. E o esforço para vencê-los precisará ser grande. Cerca de 35% de toda a produção agrícola vai para o lixo. Pesquisas apontam que é na fase de colheita que ocorrem as maiores perdas e os motivos são diversos. Um exemplo é a falta de regulação, operação e manutenção adequadas das colheitadeiras ou equívocos na identificação do grau de maturação do produto. As dificuldades se repetem na pós-colheita. Falta infraestrutura na rede de armazenagem e no transporte da produção brasileira. Nessa fase, os estragos podem ocorrer tanto do ponto de vista físico como da qualidade do produto.

Na prática, isso significa que mais de 10 milhões de toneladas de alimentos poderiam estar na mesa de milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. Do total de desperdício no país, 10% ocorrem durante a colheita, 50% no manuseio e no transporte dos alimentos, 30% nas centrais de abastecimento e os últimos 10% ficam diluídos entre supermercados e consumidores. Por exemplo, segundo o IBGE, a estimativa é de que 67% das cargas brasileiras sejam deslocadas pelo modal rodoviário, o menos vantajoso para longas distâncias.
Entre os consumidores, os números também são alarmantes. Uma família brasileira desperdiça, em média, 20% dos alimentos que compra no período de uma semana. Em valores, isso representa US$ 1 bilhão, dinheiro suficiente para alimentar 500 mil famílias. Na mesa do consumidor, a situação não é melhor. A Embrapa Agroindústria de Alimentos realizou uma pesquisa em que demonstra que o brasileiro joga fora mais alimentos do que efetivamente leva à mesa. Nas 10 principais capitais do país, o consumo anual de vegetais é de 35 quilos por habitante. No entanto, o desperdício chega a 37 quilos por habitante ao ano, parte do qual relacionado à qualidade inicial do produto e parte relacionada a armazenamento inadequado.

Levantamento da Secretaria de Abastecimento e Agricultura do Estado de São Paulo, no final da década passada, mostra que todos os alimentos não aproveitados ao longo da cadeia produtiva representam 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, um rombo de R$ 17,25 bilhões no faturamento do setor agropecuário. De acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), o Brasil deverá atingir a meta da Organização das Nações Unidas (ONU) de reduzir pela metade o número de famintos no país até 2015, de 13 milhões para 7 milhões. Sem dúvida, a redução do desperdício com uso otimizado dos produtos pode contribuir para que se atinja efetivamente essa meta.

Por outro lado, o país está ciente de que "ampliar a produção agrícola" não é o único fator da equação, e que segurança alimentar e nutricional é uma meta transversal, que envolve esforços múltiplos no campo da economia (enfrentar crises financeiras e flutuação de preços dos alimentos, por exemplo), da saúde (disseminar conhecimento sobre produção e consumo saudável), dos transportes e infraestrutura (melhorar a logística de distribuição) e da política (reduzir desequilíbrios sociais e regionais), entre outros. Cabe a todos nós fazermos a nossa parte.

Um esforço louvável no campo institucional é a criação, nos estados, de Observatórios Socioambientais em Segurança Alimentar e Nutricional. No Piauí, por exemplo, a Universidade Estadual, com apoio do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea-PI), deverá criar nos próximos meses este instrumento. Mas o projeto, no âmbito nacional, conta com a participação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Os observatórios socioambientais realizarão um monitoramento das políticas públicas e avaliarão a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) em todo o país.

A ideia é que todos os estados tenham um polo para gerir cada observatório de forma autônoma. A coordenação geral do projeto de implantação dos observatórios está a cargo Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estado cuja experiência de implantação servirá de base para a implantação da Rede de Observatórios nos demais estados.

Esse monitoramento vai gerar uma coleta de dados dos municípios que informam indicadores de produção e disponibilidade de alimentos; renda e condições de vida; acesso à alimentação adequada e saudável; saúde, nutrição e acesso a serviços relacionados; educação, programas e ações relacionadas a segurança alimentar e nutricional.



Adalberto Luis Val é diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA/MCTI) e membro do Conselho de Administração da Fundação Bunge.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Selic cai há um ano, sem reação



Por Lucinda Pinto, Conrado Mazzoni, Fernando Travaglini e Flavia Lima - Valor 24/08
De São Paulo


Em 31 de agosto de 2011, o Banco Central iniciou um inesperado ciclo de alívio monetário, que testaria níveis históricos da taxa básica de juros. Sem intervalo ou aviso prévio, a autoridade monetária interrompeu a trajetória de alta da taxa, então fixada em 12,5%, e anunciou um corte de 0,5 ponto percentual, surpreendendo a expectativa unânime dos especialistas de que a Selic ficaria estável.

Como os mercados não gostam de surpresas, sobraram críticas ao Copom, acusado de agir precipitadamente, já que as projeções de inflação não apontavam para a meta; de não se comunicar adequadamente, como prevê o sistema de metas de inflação; e de colocar em risco a credibilidade conquistada a duras penas ao longo de anos.

Passado um ano da fatídica reunião, o mercado parece ter se rendido ao fato de que o BC enxergou antes a deterioração das condições econômicas globais que estaria por vir. E agiu antecipadamente à consolidação do quadro de retração mundial, que atinge até mesmo a China, até então o motor da recuperação. A credibilidade da autoridade monetária ganhou pontos, embora os benefícios colhidos pela estratégia não sejam ainda completamente percebidos. "Claro que ninguém sabe o que estaria acontecendo se os juros não tivessem caído", pondera Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC.

O que parece certo é que houve uma radical mudança de política econômica, que alterou os pontos de equilíbrio a serem observados, tanto no câmbio quanto na inflação e na atividade. "A economia brasileira vive uma situação extraordinária, que eu nunca vivi, nem quando estava no BC, nem fora dele", afirma o ex-diretor do BC e estrategista da Tandem Global Partners, Paulo Vieira da Cunha.

"A queda dos juros em curso não é uma decisão normal de politica monetária, mas de politica econômica mais ampla. Eles estão tentando colocar um novo regime econômico. Se der certo, será ótimo, mas só saberemos disso daqui a cinco anos", diz ele.

O economista lembra que o BC sempre buscou uma oportunidade para fazer um "choque" na economia capaz de corrigir o nível do juro, considerado uma anomalia. Agora, o governo, em uma ação coordenada, parece aproveitar a situação global de juros baixos, perto de zero nas economias desenvolvidas, para fazer o ajuste. "Mas é um desejo, mais do que qualquer coisa, da presidente Dilma."

O principal desejo do governo, o crescimento econômico, ainda não veio. Apesar dos primeiros sinais de recuperação, a atividade deve ter uma expansão inferior a 2% neste ano e a velocidade registrada no último trimestre deve ser determinante para o que ocorrerá em 2013, diz David Beker, chefe de economia e estratégia do Bank of America Merrill Lynch.

Efeitos da redução da Selic ainda são tímidos

Na próxima semana completa-se um ano da já famosa reunião de 31 agosto de 2011, quando o Banco Central iniciou o atual ciclo de corte de juros com uma redução de 0,5 da Selic, surpreendendo quase todo o mercado. O primeiro efeito esperado, de evitar uma depressão da economia brasileira em meio ao agravamento da crise na Europa foi atingido e o BC ganhou pontos de credibilidade por ter acertado em cheio no diagnóstico.

Até agora, no entanto, a aceleração da atividade não veio. O que se vê é uma resposta ainda tímida, restrita ao consumo. Para a indústria, a resposta é pouco efetiva e, quando existe, está mais relacionada a desonerações tributárias. No primeiro trimestre do ano, a economia brasileira cresceu 0,2% em relação aos últimos três meses de 2011. Nessa base de comparação, enquanto o consumo das famílias e do governo cresceu 2,5% e 3,4%, respectivamente, o investimento em máquinas e equipamentos caiu 2,1%. E a expectativa é que tenha apresentado expansão entre 0,4% e 0,5% no segundo trimestre, mesmo com o governo alardeando que o PIB reagiria.
Maurício Molan, economista-chefe do Santander, pondera que o atual ciclo de queda de juros só se tornou de fato um afrouxamento no começo deste ano. Entre agosto e dezembro, o BC reduziu 1,5 ponto percentual, mas o juro real ainda se mantinha acima de 5%, próximo, portanto, da média dos últimos três anos. Somente em abril, o juro real veio para a casa dos 3%. "Houve uma defasagem maior para a resposta da política monetária, que só passou a ser expansionistas no começo deste ano", diz Molan.

Para o ex-diretor do BC e estrategista da Tandem Global Partners, Paulo Vieira da Cunha, o presidente do BC, Alexandre Tombini, tem razão ao prever um crescimento anualizado de 4% no quarto trimestre, mas teme uma desaceleração do PIB à frente. "Meu medo é que, quando isso acontecer, o governo resolver dar ainda mais estímulos."

Essa é uma das críticas mais fortes que decorreram da decisão de agosto de 2011, a de que o BC passou a priorizar o crescimento em detrimento de um controle estrito da inflação. A avaliação é de que o BC passou a trabalhar com um objetivo de inflação mais ousado, perto de 6%. "É uma mudança não assumida, mas percebida, de que o limite para a inflação passou a ser 6%", diz Vieira da Cunha.

"Estamos diante de um Banco Central que não está disposto a sacrificar crescimento desde que você tenha inflação dentro das bandas. Foi isso o que aprendemos ao longo de todos esses meses", afirma Marcelo Salomon, economista-chefe para o Brasil do Barclays.

Salomon projeta inflação de 5% em 2012 e de 5,9% em 2013. "Então, não é um cenário de convergência de volta para as metas, mas é um cenário em que o BC não está disposto a sacrificar crescimento - mantendo a possibilidade de promover uma retomada mais incisiva o mais rápido possível - desde que você não comprometa o teto da meta porque o mundo ainda está muito incerto", afirma.

Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do BC acredita que o objetivo de inflação de até 6,5%. E isso explica o fato de as projeções estarem tão distantes do centro da meta, de 4,5% - as projeções para o IPCA se situam em 5,12% para este ano e em 5,5% para 2013.

Mesmo com a maior leniência com os preços, os benefícios da queda dos juros não foram percebidos claramente na atividade por causa de um diagnóstico errado, acredita Schwartsman. "A economia não está indo bem porque o BC tenta adotar a mesma receita de 2008 agora, sendo que as condições são completamente diferentes", afirma.

Schwartsman diz que, há quatro anos, a economia tinha um grau de ociosidade importante, tanto no emprego quanto na produção e no crédito, que explica a resposta rápida obtida com as medidas de estímulo adotadas naquele momento. "Agora, com o país em pleno emprego, o conjunto de política econômica parece não funcionar."

O economista Winston Fritsch, um dos integrantes do time que criou o Plano Real (1993-1994), não vê o BC mirando o ritmo de atividade da economia em detrimento do nível geral de preços. Para ele, o Copom "ganhou" do mercado ao notar antes dos agentes econômicos uma oportunidade única de reduzir a taxa básica de juro da economia brasileira, e estabelecer um novo padrão. "Eu acho que o BC não abandonou a meta de inflação. O impacto de contração da atividade foi muito rápido. Um choque de esfriamento que criou espaço para reduzir os juros sem contrapor a meta."

Fritsch pondera, no entanto, que a condição propícia à flexibilização do juro não é eterna e o ritmo de corte da taxa Selic, que foi reduzida até agora em 4,5 pontos percentuais, 8% ao ano, tende a ficar mais contido nos próximos meses. "Chegamos a um ponto para testar e ver o que acontece. Ninguém pode dizer que o BC está fora da meta."

A expectativa para a próxima reunião do Copom, que ocorre na semana que vem, é de novo corte de 0,5 ponto, seguida por nova redução em outubro, talvez de menor magnitude, especula o mercado. A partir daí, os especialistas se dividem entre uma estabilidade ao longo de 2013 ou uma leve alta dos juros. Todos estão de olho no atual repique inflacionário, fruto da alta dos preços das commodities (especialmente alimentos) no exterior e no aquecimento da economia doméstica.

De toda forma, há um novo equilíbrio macroeconômico defendido pelo BC: juro real baixo com câmbio depreciado. Para que isso se torne uma mudança estrutural, é necessário que se mantenha o atual rigor fiscal, além de depender ainda do desempenho da economia internacional, avalia David Beker, chefe de economia e estratégia do Bank of America Merrill Lynch para o Brasil.

"O mix da política monetária de fato mudou e a depreciação da moeda brasileira é permanente. Mas a âncora desse novo modelo é a manutenção de um rigor fiscal razoável", diz Beker.

Mesmo com o alívio provocado pela queda do juro básico no perfil da dívida pública brasileira, as estimativas para o superávit primário estão menores do que o resultado consolidado no ano passado. As projeções indicam 2,8% para este ano e para 2013. Em 2011, o superávit primário foi de 3,11%.

No ambiente externo, Beker acredita que o cenário de baixo crescimento e juros próximos de zero se manterá por dois ou três anos, o que deve permitir que se mantenha a taxa de juro real brasileira em patamares historicamente baixos. "Ainda é cedo para dizer se a mudança no patamar da Selic é estrutural, mas mesmo que seja apenas conjuntural não necessariamente será de curto prazo".

Passado um ano das turbulências entre o mercado e o BC, os especialistas hoje já se acostumaram com a nova função de reação da autoridade monetária e sabem ler melhor os sinais dessa nova autoridade monetária. Antes, o BC não reduziria os juros quando a projeção de inflação se mostrava acima da meta. Hoje, a expectativa está acima de 5% e o BC continua cortando a Selic, lembra Molan, do Santander.

Outra mudança está no câmbio. Analistas que antes olhavam os fundamentos econômico como o preço das commodities e o movimento do dólar no mercado externo para estimar o valor da moeda americana no Brasil, estão mais atentos agora aos discursos do governo, seja via Ministério da Fazenda, seja via BC.

Mas condições para o processo de ajuste das taxas de juros para padrões internacionais não estão dadas, na opinião de Vieira da Cunha, uma vez que o peso do governo no sistema financeiro só faz crescer e o ajuste fiscal está focado na arrecadação, e não no gasto. E isso ajuda a explicar o resultado prático ainda limitado dessa medida. "Por enquanto, estamos pagando para ver."

O conservadorismo fiscal dos EUA



Por Simon Johnson - Valor 24/08

Na maioria dos países, ser "fiscalmente conservador" significa preocupar-se muito com o déficit orçamentário e a dívida pública - e pressionar para que essas questões sejam levadas ao topo da agenda de políticas governamentais. Em muitos países da zona euro, hoje, os "conservadores fiscais" são um grupo poderoso que insiste na necessidade de aumentar a receita dos governos e colocar os gastos sob controle. No Reino Unido, também, importantes conservadores recentemente mostravam-se dispostos a aumentar os impostos e tentaram limitar gastos futuros.

Os EUA são muito diferentes, a esse respeito. Lá, os líderes políticos que optam por denominar-se "conservadores fiscais" - como Paul Ryan, agora presumível candidato do Partido Republicano à vice-presidência ao lado do candidato presidencial Mitt Romney na disputa em novembro - preocupam-se mais com cortes de impostos, independentemente do efeito sobre o déficit federal e a dívida total. Por que os conservadores fiscais americanos importam-se tão pouco com a dívida pública, em comparação com seus colegas de outros países?

Não foi sempre assim. Por exemplo, em 1960, os assessores do presidente Dwight D. Eisenhower sugeriram que ele deveria cortar impostos com o objetivo de preparar o caminho para seu vice-presidente, Richard Nixon, ser eleito para a presidência. Eisenhower não o fez, em parte porque ele particularmente não gostava nem confiava em Nixon, mas principalmente por que ele acreditava ser importante entregar um orçamento mais quase equilibrado a seu sucessor.
O arcabouço da política macroeconômica americana mudou drasticamente quando o sistema monetário internacional quebrou em 1971. Os EUA já não podiam manter um câmbio fixo entre o dólar e o ouro - a pedra angular do sistema de Bretton Woods, implementado no pós-guerra. O esquema entrou em colapso porque os EUA não quiseram apertar a política monetária e executar uma política fiscal mais restritiva - manter os eleitores americanos felizes era, compreensivelmente, mais importante, para o presidente Nixon, do que a manutenção de um sistema mundial de câmbio fixo.

Ironicamente, porém, em vez de minar o papel internacional predominante do dólar, o fim de Bretton Woods, na realidade, impulsionou o uso da moeda americana em todo o mundo. Muito tem sido escrito, e muita preocupação tem sido manifestada, sobre o declínio do dólar nas últimas quatro décadas, mas a verdade é que os volumes de ativos denominados em dólares americanos em poder de estrangeiros, hoje, são muito maiores do que em 1971.

Isso acaba por ser uma faca de dois gumes, porque permitiu que os EUA se tornassem menos cuidadosos com suas contas fiscais. Estrangeiros já detêm cerca de metade de toda a dívida do governo federal dos EUA, e estão dispostos a mantê-la (em suas reservas) apesar de proporcionar um retorno muito baixo em dólares (e até mesmo quando o dólar se desvaloriza).

Na realidade, sempre que o mundo parece instável, os investidores querem manter mais ativos em dólares em seu poder - mesmo quando os EUA são a causa da instabilidade. Quando grandes bancos americanos estão em apuros ou quando os americanos envolvem-se em mais um debilitante embate político sobre suas finanças públicas, os investidores em todo o mundo disputam a posse de títulos do Tesouro americano. O embate parlamentar no ano passado sobre o teto da dívida federal pode ter custado aos EUA sua classificação AAA de dívida soberana atribuída pela Standard & Poor's, mas os custos de financiamento do governo federal estão na realidade mais baixos, agora, do que então.

O que fizeram os EUA com essa oportunidade: possivelmente o mais baixo custo de financiamento na história da humanidade? Não muito, em termos de investimento produtivo, de fortalecimento da educação ou de manutenção da infraestrutura essencial. Mas os EUA têm feito muita coisa em termos de adoção de cortes de impostos que aquecem o consumo em relação à renda e reduzem as receitas do governo em relação à despesa. Esse é o legado duradouro dos cortes "temporários" de impostos adotados pelo governo de George W. Bush no início de 2000.

E os americanos mudaram bastante, em termos de filosofias políticas - tanto à direita como à esquerda - que consideram a dívida pública apenas como um detalhe desimportante. Ou, como disse o ex-vice-presidente Dick Cheney, "Reagan nos ensinou que os déficits não importam" - querendo dizer que Ronald Reagan cortou impostos, incorreu em déficits maiores e não sofreu quaisquer consequências políticas adversas.

Ryan e membros da ala "Tea Party" do Partido Republicano sem dúvida querem reduzir o tamanho do governo federal, e eles têm planos articulados para fazer isso ao longo de várias décadas. Mas no curto prazo, o que prometem são, principalmente, cortes de impostos: seu programa inteiro, do ponto de vista prático, é carregado, em curto-prazo, nessa direção. O cálculo político é que isso se revelará popular (o que é, provavelmente, verdadeiro), ao mesmo tempo em que facilitará implementar cortes de gastos mais à frente (o que é menos evidente). A vulnerabilidade criada pelo aumento da dívida pública ao longo das próximas décadas é simplesmente ignorada.

Por exemplo, Ryan apoiou farra de gastos de George W. Bush. Ele também defende a manutenção dos gastos com a defesa em, ou perto de, seu nível atual - resistindo aos cortes que foram postos em vigor pela Lei de Controle do Orçamento de 2011.

O pressuposto aqui - não declarado e altamente questionável - é que os EUA serão capazes de vender uma quantidade ilimitada de dívida pública a juros baixos num futuro previsível. Não há nenhum outro país no mundo onde os conservadores fiscais gostariam de se verem associados a uma aposta de tão alto risco. (Tradução de Sergio Blum)



Simon Johnson foi economista-chefe do FMI e é cofundador do blog sobre economia www.BaselineScenario.com, professor da MIT Sloan, membro sênior do Instituto Peterson para Economia Internacional e coautor de "White House Burning: The Founding Fathers, Our National Debt, and Why It Matters to You" (Casa Branca em chamas: os pais fundadores, nossa dívida nacional e por que isso é importante para você, em inglês), com James Kwak. Copyright: Project Syndicate, 2012.



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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

'Sal na ferida', seca nos EUA ainda promete mais danos



Por Ian Berry e Owen Fletcher
The Wall Street Journal, de Wausa, Nebraska

Um grupo de profissionais do setor agrícola marchava através de um milharal dizimado pela seca nesta cidade no centro produtivo dos Estados Unidos na segunda-feira, esmagando folhas e talos ressequidos pelo caminho.

A fazenda era uma das primeiras paradas em uma viagem de quatro dias pelos campos agrícolas do país. O evento anual, com a presença de dezenas de analistas e investidores de commodities, além de alguns agricultores, é usado para avaliar o estado da safra mais recente. Este ano, entretanto, não há muito que ver.

"Você não tem que ter medo de se perder neste campo", disse Marty Tegtmeier, um agricultor do Estado de Iowa que se integrou à turnê, enquanto observava a paisagem.

Embora a pior seca em décadas venha golpeando grande parte do cinturão agrícola americano durante meses, muitos na turnê disseram que foram surpreendidos pelo péssimo estado das culturas. A notícia triste tem sido relatada aos operadores e investidores de commodities em Chicago via celular e até pelo Twitter - provocando saltos nas cotações do milho e da soja.

Na terça-feira, o preço do milho fechou com um recorde de US$ 8,3125 por bushel (contrato com vencimento em setembro) e a soja ficou perto de um recorde, a US$ 17,5350 por bushel, na bolsa de Chicago. Ontem, ambos recuaram um pouco. O milho fechou a US$ 8,3025 e a soja, a US$ 17,48 (papeis para setembro).

Além de Wausa, Estado de Nebraska, a turnê, organizada pela empresa de consultoria Pro Farmer, visitará lavouras em sete Estados.

Alguns campos irrigados pareciam imunes à seca, com rendimentos estimados em 15,7 mil quilos por hectare em partes de Nebraska. O grupo também espera ainda encontrar lavouras saudáveis em áreas de plantio de Minnesota no último dia da turnê.

Mas os observadores tiveram dificuldades para encontrar campos de milho que ainda não tivessem sido transformados em alimento de gado no sudeste de Dakota do Sul e no nordeste de Nebraska, um sinal de que os agricultores tinham desistido de uma cultura que não seria capaz de produzir nenhum grão.

Em uma fazenda no leste do Illinois na terça-feira, Brian Grete, analista da Pro Farmer, disse que podia colocar sua mão inteira numa rachadura no solo que se formou devido à grave seca - antes de chuvas recentes tornarem o solo pegajoso. "É quase como esfregar sal na ferida o fato de que as chuvas vieram tarde demais para esta área", disse ele.

Nos campos em que ainda havia pés de milho, muitas vezes as plantas não tinha nenhuma espiga.

Apesar de a terra irrigada mostrar mais potencial, os observadores disseram que alguns desses campos também estavam sem brilho, notando que o calor extremo tinha parcialmente eliminado os benefícios da irrigação.

"Foi difícil [para a irrigação] manter o ritmo este ano", afirmou Jeff Mueller, um agrônomo da DuPont Pioneer, o braço agrícola da multinacional DuPont Co.

A turnê vai terminar hoje em Owatonna, Estado de Minnesota. Amanhã, a Pro Farmer vai lançar sua previsão para o rendimento médio de milho e de soja dos EUA na atual safra, com base, em parte, nos resultados das visitas.

Leituras iniciais em Dakota do Sul e em Ohio têm sido decepcionantes. Os organizadores das visitas relataram na segunda-feira um rendimento médio estimado das lavouras de milho em Ohio de 6,9 mil quilos por hectare, uma retração de 29% em comparação com o ano passado. As previsões para a soja ficaram em uma média de 1.033,7 vagens em uma área de menos de um metro quadrado, 17,5% abaixo do que no ano passado.

Em Dakota do Sul, os observadores esperam um rendimento médio 47% inferior que o registrado no ano passado, tanto para a soja quanto para o milho.

As estimativas do grupo para a produção de milho e soja em Ohio e em Dakota do Sul são substancialmente inferiores às feitas pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) no início deste mês, informou o diretor da turnê, Chip Flory.

De volta a Chicago, operadores e analistas disseram que estão monitorando o Twitter ou telefonando para amigos e colegas no grupo de observadores para coletar as últimas informações.

Incerteza não é emergência



Por José Graziano da Silva - Valor 23/08

É grande a probabilidade de que as três décadas encerradas na crise de 2007/2008 passem à história como o último ciclo longo de estabilidade dos preços dos alimentos.

Desde o início deste século a tendência declinante mudou; os preços passaram a subir e a volatilidade fez-se senhora dos mercados. As commodities agrícolas dispararam em 2008 e 2010 e voltaram a subir agora em 2012.

O Índice de Preços de Alimentos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) de agosto aumentou 6% em relação ao mês anterior, alcançando 213 pontos, mas ainda abaixo dos 224 pontos de junho de 2008 e o recorde de 238 pontos de fevereiro de 2011.

A alavanca desta vez foram as cotações do milho, do trigo e do açúcar. A nova alta reafirma um tempo de preços erráticos que veio para ficar. No entanto, não configura uma explosão equivalente à de 2008.

O que aconteceu ali foi uma desastrosa espiral de preços que poderia ter sido evitada com um grau maior de coordenação internacional das políticas de importação e exportação, hoje possível.

Quebras de safras e demanda aquecida foram respondidas então com a suspensão de embarques de alguns países exportadores e muitas nações procuraram se defender da escalada dos preços elevando suas reservas internas.

A incerteza alimentou o pânico e fomentou a especulação descolada da função benigna de proteger produtores e compradores. Investir em mercados futuros de commodities mostrou-se a melhor aplicação financeira dos últimos cinco anos: rendeu 144% contra 143% do ouro, segundo cálculos do Deutsche Bank.

Hoje, a realidade é outra. Não estamos em crise e podemos evitar que ela ocorra.

Em 2008, o crescimento econômico empurrava a demanda. Hoje, a recessão na Europa e o desaquecimento na Ásia, associados ao baixo crescimento nos Estados Unidos, exercem um freio na demanda e na especulação nociva.

Agora, a seca no meio-oeste norte-americano atingiu um produto essencial da cadeia alimentar, o milho; mas os índices de preços dos derivados de leite e os do arroz permanecem estáveis; os da carne caíram. De modo geral, estoques disponíveis de trigo e, especialmente, de arroz são maiores que há quatro anos e seus mercados mostram-se relativamente equilibrados até agora.

O horizonte de instabilidade anunciado em 2008, porém, não se dissipou. A regulação financeira ainda engatinha; a equação do desequilíbrio climático é um enredo à espera de atores.

Com ou sem crise, a incerteza caracteriza a época em que vivemos e não pode mais ser respondida apenas com a emergência.

Informação e políticas coordenadas são essenciais para subtrair espaços à lógica da instabilidade.

O Sistema de Informações de Mercado Agrícola (AMIS, na sua sigla em inglês), criado pelo G20 após a última crise e coordenado pela FAO, aprimorou o acompanhamento das tendências de oferta e demanda. O AMIS inclui um Foro de Resposta Rápida, que dá aos países maior espaço para trocar informações e coordenar políticas com a velocidade necessária para responder a movimentos de preços como o atual. Integram esse sistema as nações que compõem o G20 e outros oito grande produtores e consumidores de alimentos.

No âmbito nacional, políticas de fomento agrícola para garantir o abastecimento doméstico figuram como o grande anteparo estrutural ao horizonte de incerteza que forma a nova regularidade do mundo.

A educação alimentar é parte indissociável dessa blindagem. Dados da FAO mostram que a substituição de alimentos é uma das principais respostas dos consumidores pobres à alta de preços. A educação alimentar e nutricional ajuda a manter a qualidade da dieta mesmo em momentos de flutuação da oferta. É papel do Estado democratizar o uso dessa ferramenta na sociedade.

Fortalecer as redes de proteção social, com a implantação e ampliação dos programas de transferências de renda, reafirma-se como outro imperativo incontornável de política pública.

Não se deve desperdiçar a dimensão regeneradora dos mercados, que também requerem políticas públicas para serem universalizadas. Preços altos são um estímulo ao plantio. A quebra na oferta do hemisfério norte incentiva a semeadura que começa agora em setembro em muitas lavouras do hemisfério sul.

Crucial, porém, é estender o alcance desse incentivo à agricultura familiar. 70% da população miserável do planeta vive em zonas rurais dos países em desenvolvimento.

A atenção à agricultura familiar não constitui apenas um requisito para combater a pobreza e prevenir a fome. Sua pertinência estende-se também à busca de respostas para eventos extremos, que vão se repetir com maior frequência e intensidade em função da mudança climática.

E, muitas vezes, sem qualquer anúncio. A seca no corn-belt norte-americano, a pior do último meio século, irrompeu um mês depois que as previsões meteorológicas e as de mercado indicavam uma colheita recorde.

Paradoxalmente, não foi um ponto fora da curva. A falta de água afetou também vários países da Europa do Leste e regiões da Índia. O comportamento anormal das chuvas reduziu a safra russa de trigo na Sibéria.

Desconcentrar a geografia da produção, estimulando os mercados locais de produtos não transáveis, é a melhor forma de prevenir os revezes do clima sobre a oferta. Políticas de desenvolvimento da agricultura familiar compõem, assim, um pedaço cada vez mais importante da resposta à insegurança alimentar em nosso tempo.



José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Cambio - Banco Central defende banda informal



Por Eduardo Campos e José de Castro - Valor 22/08
De São Paulo

Se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre a existência de um "piso informal" para a taxa de câmbio, agora não tem mais.

Depois de 35 pregões sem atuar, o Banco Central (BC) veio a mercado na terça-feira para adquirir moeda via "swap cambial reverso" (que equivale à compra de dólar futuro).
O regime oficial de câmbio é o flutuante, mas na prática o que se tem desde o fim de fevereiro é uma espécie de regime de banda administrada. Primeiro, o BC atuou na compra, quando o dólar ameaçava perder o patamar de R$ 1,70. Isso durou até o fim de abril. Pouco depois, em 18 de maio, virou a mão e começou a atuar na venda, já que o dólar ameaçava passar de R$ 2,10.

Além das atuações de fato, BC e governo também manobraram a taxa de câmbio com discursos.

O Ministro da Fazenda, Guido Mantega, não perdeu uma oportunidade de fala pública para ressaltar a ideia de que o real desvalorizado veio para ficar, pois dá melhor competitividade à indústria.
A atuação verbal mais marcante do BC foi feita pelo seu diretor de política monetária, Aldo Mendes, que no dia 3 de julho disse que o BC poderia voltar a comprar dólares e, fazendo sintonia com Mantega, também afirmou que taxa de câmbio abaixo de R$ 2,0 não seria interessante para a indústria. A fala aconteceu um dia depois de o dólar perder os R$ 2,0, algo que não acontecia desde o fim de maio.

O mercado entendeu o recado e desde as declarações de Mendes não ameaçou os R$ 2,0, não importando o comportamento de outras moedas emergentes, bolsas de valores, crise na Europa ou qualquer outro motivo.
O que se seguiu foi um período sem precedentes de apatia cambial. A volatilidade do mercado caiu para cerca de 5%, contra uma média histórica de 17%. Os volume negociados caíram cerca de 18% no interbancário.

Com a retomada das compras, tudo indica que esse marasmo deve continuar. Apesar do incentivo à venda, o mercado não deve querer testar a vontade do BC e do governo. Além da possibilidade de atuação, cabe lembrar que a venda de dólar no mercado futuro parte "devendo" 1% de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Com a melhora de tom nos mercados externos, também não cabe sair comprando moeda.

Por ora, tudo indica que a "banda cambial" com piso em R$ 2,0 e teto em R$ 2,10 seguirá valendo.

Para um gestor, no entanto, ainda não dá para afirmar isso categoricamente. Não é possível saber se o BC está apenas "zerando" os swaps tradicionais (que equivalem à venda de dólar futuro) que vencem em 3 de setembro ou se ele vai, mesmo, segurar os R$ 2,0 a qualquer preço.

"Tipicamente, o BC marca os pontos que vai defender atuando no mercado à vista. E isso ainda não aconteceu", diz.

O gestor avalia que o BC poderia deixar o dólar cair um pouco abaixo de R$ 2,0 antes de retomar as compras. Assim, a sinalização dada seria outra, pois se ele começar a defender e depois "largar a mão", o mercado vem para cima dele na venda.

Mas entre essa estratégia e a realidade a distância é grande. O gestor acredita que a atuação no câmbio é guiada mais por considerações políticas do que práticas.

"O governo parece querer mesmo um câmbio parado. A taxa não sobe para não prejudicar a inflação e o balanço da Petrobras e não cai para não prejudicar a indústria", conclui.

Para o estrategista-chefe do WestLB, Luciano Rostagno, o modesto volume da oferta de swaps reversos sugere que o mercado evita assumir uma posição clara no câmbio.

O BC ofertou 50 mil contratos de swap, ou US$ 2,5 bilhões, mas colocou apenas 7 mil contratos, que equivalem a US$ 350 milhões.

"O movimento do pregão deu uma boa pista disso. O mercado vendeu pouco dólar para o BC, porque ainda existe um receio de alta, mas também tem testado a cotação perto dos R$ 2,0 porque as indicações são de que a situação internacional, principalmente na Europa, está menos preocupante", afirma Rostagno.

Esse "jogo de forças", segundo o profissional, acaba deixando o dólar "travado".

O que pode tirar a cotação do intervalo entre R$ 2,00 e R$ 2,10 é o anúncio, até o fim do ano, de uma terceira rodada de estímulo pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

Por conta disso, o estrategista prevê que o dólar feche o ano a R$ 1,90. Para 2013, a estimativa é que a moeda caia ainda mais, para R$ 1,80. "Mas, no próximo ano, o que vai determinar isso é uma piora da inflação", diz.

Os economistas da Nomura Securities também acreditam que a inflação deve mudar a postura do governo com o câmbio.

Em 2013, o governo pode permitir uma apreciação do real visando evitar puxadas de alta na Selic. Ontem, o dólar chegou a bater em R$ 2,024, mas perdeu força para fechar a R$ 2,018, alta de 0,10%.

Piso para o câmbio


22 de agosto de 2012
3h 08

Celso Ming - O Estado de S.Paulo

O Banco Central voltou ontem a comprar moeda estrangeira no mercado futuro porque as cotações ameaçavam resvalar para abaixo de R$ 2 por dólar.

Aparentemente, a operação não foi o sucesso esperado. Dos 50 mil contratos oferecidos ao mercado, só foram fechados 7 mil e, logo em seguida, os preços do dólar voltaram a cair. Mas o que importa aí não é o vaivém das cotações; é a atitude do Banco Central e suas consequências.

Desde maio deste ano, sempre que a oferta de moeda estrangeira no câmbio interno tende a empurrar as cotações para abaixo dos R$ 2, o Banco Central intervém ou por meio de compras de moeda estrangeira no mercado à vista ou no mercado futuro, como ontem, para impedir nova valorização do real.

O que ontem pela manhã firmara tendência de baixa do câmbio não foi nem sequer uma grande entrada de dólares no País. Foi somente a percepção de que a economia mundial pode ser beneficiada nas próximas semanas com novas injeções de euros nos mercados em consequência de emissões realizadas pelo Banco Central Europeu (BCE). Também se reforçou a aposta de que, apesar dos desmentidos, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) opte por novas recompras de títulos do Tesouro dos Estados Unidos com o objetivo de reativar a economia.

Há 16 dias, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, observou que a principal medida de política cambial tomada pelo governo Dilma para desvalorizar o real (aumentar a cotação do dólar para devolver competitividade à indústria) foi de natureza monetária; foi a derrubada dos juros promovida desde agosto de 2011 pelo Banco Central.

Com isso, Mantega avisou que a política de juros do Banco Central não vem sendo usada apenas para empurrar a inflação para dentro da meta (de 4,5% neste ano), mas, principalmente, para evitar as chamadas operações de arbitragem feitas pelos especuladores que tomam dólares emprestados no mercado internacional, trazem os recursos para o Brasil e aqui ganham com a diferença de juros e, nesse jogo, derrubam as cotações no câmbio.

Se a política de juros fosse suficiente para manter afastados os especuladores e segurar o dólar à altura dos R$ 2, o Banco Central não precisaria intervir. Mas interveio.

E, no entanto, nada de especialmente novo aconteceu ontem nos mercados cambiais que repetisse o tsunami monetário de que a presidente Dilma tanto se queixou há alguns meses.

O que tem de ser levado em conta é que, apesar do desestímulo às operações de arbitragem com juros e da sistemática intervenção do Banco Central, a tendência do câmbio continua sendo de valorização do real (baixa do dólar). Para isso, não é preciso nem sequer que esteja a caminho uma solução definitiva para a crise. Basta que os mercados fiquem mais otimistas em relação à evolução da economia global.

A longo prazo, o Banco Central não pode alterar uma tendência firme do câmbio. Para garantir competitividade ao setor produtivo, a economia brasileira não poderá contar só com redução dos juros e com intervenções do Banco Central. É necessário aprofundar o que a presidente Dilma começou a fazer: derrubar os custos de produção no Brasil.


Negociando com ódio



Por Jagdish Bhagwati - Valor 22/08

O massacre na Noruega em julho de 2011 e o recente ataque a um templo sikh em Oak Creek, Wisconsin, foram obras de extremistas de direita empenhados em refazer o mundo à sua imagem neonazista. Da mesma forma, os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 foram obra de extremistas islâmicos que veem outras religiões e culturas como ameaça. Mas seria simplista pensar que os nossos governantes não lançam combustível no fogo do ódio, ainda que seu chauvinismo assuma uma forma mais "civilizada".

Basta perguntar aos japoneses, continuamente denunciados, nos anos 1980, como exportadores perversos. Ou considere o refrão incessante contra a terceirização que hoje demonizou a Índia.
Isso não é novo. O pesado fardo de atrocidades japonesas durante a Segunda Guerra Mundial apagou efetivamente da memória popular americana a Lei de Imigração de 1924 e outras leis federais destinadas a excluir os japoneses e os chineses dos EUA, bem como as leis racistas estaduais, como Lei (coibindo a propriedade) de Terras (a estrangeiros) da Califórnia em 1913. Ao irromper a guerra, os americanos de origem japonesa foram expropriados e levados para campos de concentração. Earl Warren, procurador-geral da Califórnia, defendeu as medidas - o mesmo Earl Warren, que, uma década mais tarde, como presidente da Suprema Corte dos EUA, supervisionou a rejeição da doutrina "separados, mas iguais", base da segregação americana de seus cidadãos negros.

A histeria antijaponesa da década de 1980 caiu em solo fértil. Muita gente, nos EUA, temia que, assim como o século XIX tinha sido britânico e o século XX havia sido americano, o século XXI seria japonês. Mas, ao contrário dos britânicos ou americanos, os japoneses estavam, supostamente, ganhando terreno de forma nefasta, exportando para os EUA de forma agressiva e injusta, e excluindo as exportações americanas de seu mercado interno.
Praticamente toda a política comercial japonesa foi interpretada sob a pior luz possível. A propaganda foi bipartidária nos EUA, e com poucas exceções notáveis foi amplamente divulgada pela imprensa acrítica e pseudopatriótica do país. Recordo-me de Paul Samuelson, um agraciado com o prêmio Nobel - ao lado de John Maynard Keynes, sem dúvida o maior economista de seu tempo - comentando que a propaganda antijaponesa tinha ido tão longe que os críticos do Japão argumentavam que os japoneses curvam-se ao saudar os ocidentais para facilitar cortá-los na altura dos joelhos.
O efeito, sobretudo tendo em conta uma longa história de sentimento antijaponês, foi uma previsível onda de violência racista, inclusive a destruição de carros japoneses. O assassinato (a golpes de bastão de beisebol) de Vincent Chin, um chinês-americano confundido com um japonês, também repercutiu historicamente, ao lembrar um artigo pseudocientífico sobre como distinguir chineses de japoneses, que a revista "Life" publicou em dezembro de 1941.

A situação indiana nos EUA, hoje, é diferente, não há nenhuma bagagem de lembranças desagradáveis nas quais preconceito e violência possam prosperar. No entanto, como um cacto no deserto, o ódio pode prosperar com muito pouco.
Infelizmente, o governo do presidente dos EUA, Barack Obama, tem continuamente martelado o argumento da terceirização para a Índia como causa de perda de empregos americanos. Da mesma forma, o senador Charles Schumer, de Nova York, entregou-se à atividade de desancar o Japão, a China e a Índia - uma prática singularmente exemplar de truculência e ignorância em economia - ao passo que a senadora Barbara Boxer, da Califórnia, atacou sua mais recente adversária eleitoral, Carly Fiorina, por ter eliminado 30 mil postos de trabalho na Hewlett-Packard durante sua gestão da empresa. Na realidade, em um mundo altamente competitivo, a Hewlett-Packard conseguiu salvar 150 mil empregos, ao sacrificar 30 mil.

Na atual campanha eleitoral presidencial, o Partido Democrata está atacando o adversário republicano de Obama, Mitt Romney, pelos mesmos motivos capciosos, e uma mídia complacente avaliza o ataque sistemático dos democratas contra a Índia.

O resultado disso tem sido o de alimentar ressentimentos contra a Índia, que transbordam em violência ocasional. Grupos que se autodenominam "dot-busters" ("dot", em alusão às empresas dotcom, ou pontocom) atacaram mulheres indianas. Quando escrevi a favor de um comércio mais livre e liberdade para a imigração, fui denunciado como sendo um "nigger curry" ("negro" curry [tempero indiano]).

Aliás, o governo Obama "ajudou", nesse aspecto, por atribuir à Índia a culpa pelo fracasso da Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais. Fora dos EUA, é bem sabido que o próprio Obama liquidou com Doha. A noção de que "nós estamos abertos e os outros estão fechados", uma crença acalentado pelos políticos e pela mídia americana - um artigo de fé do atual governo americano - também alimenta a noção de que países como a Índia são maus comerciantes internacionais, assim como os japoneses em 1980.

Grande parte do mundo esperava um comportamento mais sofisticado por parte de Obama. Infelizmente, ele baixou o nível muito mais do que o esperado. (Tradução de Sergio Blum)



Jagdish Bhagwati é professor de economia e direito na Columbia University e membro associado em questões de economia internacional do Council on Foreign Relations. Foi copresidente do Grupo de Especialistas de Alto Nível em Comércio Exterior, indicado pelos governos do Reino Unido, Alemanha, Indonésia e Turquia. Copyright: Project Syndicate, 2012.



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terça-feira, 21 de agosto de 2012

A próxima transformação da China



Por Andrew Sheng e Xiao Geng - Valor 21/08

Durante três décadas de condições econômicas favoráveis no mundo, a China criou um sistema de produção integrado e mundial sem precedentes em escala e complexidade. Mas agora seus dirigentes têm de lidar com um triplo desafio: os desdobramentos da crise da dívida europeia, a lenta recuperação nos EUA e uma desaceleração do crescimento chinês. Os três problemas são interligados e erros de quaisquer das partes poderão mergulhar a economia mundial em nova recessão. Para avaliar os riscos e opções à China e ao mundo, precisamos compreender o sistema de produção "Made in the World" chinês, que se apoia em quatro pilares distintos, mas mutuamente dependentes.

O primeiro desses pilares, a "fábrica mundial" baseada na China, foi em larga medida criada por empresas multinacionais estrangeiras e seus fornecedores, e subcontratados com emprego intensivo de mão de obra e de linhas de montagem implementadas por empresas de pequeno e médio porte com acesso direto aos mercados em todo o mundo por meio de uma complexa rede de contratos. Começando modestamente em áreas costeiras e Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), a cadeia de suprimentos da "fábrica do mundo" alastrou-se por toda a China, produzindo de tudo: de animais empalhados a iPads.

A "fábrica do mundo" não teria sido construída sem o segundo pilar: a "rede de infraestrutura chinesa", instalada e operada predominantemente pela integração vertical de empresas estatais nas áreas de logística, energia, estradas, telecomunicações, transporte e portos. Esse pilar baseia-se fortemente em planejamento, investimento fixo em larga escala e controles administrativos, e sua qualidade, escala e eficiência relativas foram estratégicas para a competitividade e produtividade chinesas.

O terceiro pilar é a "cadeia de suprimento financeiro chinesa", que disponibilizou o financiamento para construir e manter a rede de infraestrutura. Essa cadeia de suprimento é caracterizada pela predominância de bancos estatais, poupança interna elevada, mercados financeiros relativamente subdesenvolvidos e uma conta de capital fechada (NT: o governo não permite, pelos seus cidadãos apliquem seu dinheiro no exterior).

O último pilar é a "cadeia de suprimento de serviços governamentais". Os funcionários dos governos locais e central afetam todos os elos da cadeia de produção, de logística e das redes financeiras mediante regulamentos, impostos ou alvarás. A maioria dos observadores estrangeiros não se dão conta da escala e profundidade de inovação institucional e de processos na cadeia de suprimento que conseguiu (na maioria dos casos) proteger os direitos de propriedade, reduzir custos de transações e minimizar riscos, alinhando os serviços governamentais com interesses do mercado. Por exemplo, os governos locais chineses tornaram-se altamente hábeis em atrair o investimento estrangeiro direto (IED), disponibilizando infraestrutura e serviços de apoio que facilitam a expansão de cadeias de produção em âmbito mundial.

Com o início da atual crise mundial, e em vista das mudanças em mídia social, demografia, urbanização e escassez de recursos naturais, os quatro pilares estão agora estressados. As cadeias produtivas estão sofrendo escassez de mão de obra, aumento de salários e ameaças de relocalização em países onde é possível operar a baixo custo. Por outro lado, os investidores mundiais estão questionando a solvência dos governos locais.

Especialistas chineses agora estão debatendo uma questão chave de governança: que nível de arquitetura permitiria ao país adotar as reformas necessárias para atender as pressões mundial e nacional? Os investidores estão preocupados com o desempenho irregular das ações de empresas chinesas, riscos inerentes a regulamentação e surpresas políticas, assim como incertezas decorrentes de maior volatilidade nos preços dos ativos, como preços dos imóveis, taxas de juro e taxa de câmbio. O que torna mais difícil analisar a economia chinesa é a interação cada vez mais complexa dos quatro componentes de seu sistema de produção - entre si e com o restante do mundo.
Primeiro, as condições favoráveis para o crescimento da "fábrica do mundo" começaram a se dissipar. Os custos de produção (mão de obra, recursos naturais, regulamentação e infraestrutura) estão em alta no mercado interno, ao passo que, no Ocidente, estouraram as bolhas de consumo.

Em segundo lugar, o sucesso inicial da "infraestrutura chinesa" baseou-se em terrenos, capital e mão de obra baratos. Mas apesar de sua moderna infraestrutura, os custos logísticos na China representam 18% dos custos de produção - nos EUA são 10% -, devido às ineficiências internas.

Em terceiro lugar, o sucesso do sistema financeiro chinês foi construído com base em financiamento, por bancos estatais, de grandes projetos de infraestrutura e financiamento estrangeiro da produção para exportação por meio de IED e comércio. O sistema financeiro ainda não enfrentou os problemas de inclusão financeira, especialmente o financiamento das pequenas e médias empresas e das áreas rurais, e a exposição a excesso de capacidade em alguns setores.

Por último, os três pilares não teriam se mantido sem a âncora proporcionada pelo quarto. Seu êxito foi baseado em concorrência positiva entre governos locais e diferentes ministérios, aferida por indicadores de desempenho, como PIB e receitas fiscais. Infelizmente, isso gerou problemas de equidade social e sustentabilidade ambiental, o que exige uma complexa coordenação de "silos burocráticos" para superar a resistência de interesses enraizados.

Há um consenso de que o caminho de reformas exige uma reengenharia nos quatro pilares. Primeiro, a cadeia de produção precisa abandonar sua dependência externa e focar no consumo interno. Realinhar a infraestrutura chinesa significa privilegiar qualidade sobre quantidade e reduzir a participação estatal e preços controlados em favor das forças de mercado. A orquestração estatal deveria concentrar-se na luta contra a corrupção, reduzindo os custos das transações e as barreiras a entradas, promovendo a concorrência e eliminando excessos de capacidade.

Para a cadeia de suprimento financeiro, é crucial atacar os riscos sistêmicos e realinhar os incentivos para induzir os investidores a apoiar os motores do crescimento da economia, em vez da criação de bolhas de ativos.

O milagre chinês foi engendrado por inovação institucional e de processos em todos os níveis da cadeia de suprimento de serviços governamentais. A China necessita de outra reengenharia radical para tornar-se uma economia mais equilibrada, socialmente justa e sustentável. Esse processo já começou com outra rodada de experimentações em três novas ZEEs (em Hengqin, Qianhai e Nansha) para comandar o surgimento de uma economia de serviços criativa baseada em conhecimento.

Uma economia assim depende fundamentalmente da qualidade de sua governança. O desafio, para as autoridades, é equilibrar criatividade e inovação institucional com ordem, garantindo a integridade dos quatro pilares de sua economia. (Tradução de Sergio Blum)



Andrew Sheng é presidente do Fung Global Institute, foi presidente da Hong Kong Securities and Futures Commission e é professor adjunto da Universidade de Tsinghua, em Pequim.



Xiao Geng é diretor de pesquisas no Fung Global Institute.

Brasil se afasta de países avançados, diz estudo



Por Sergio Lamucci - Valor 21/08
De São Paulo

O Brasil entrou num processo de desindustrialização precoce e de distanciamento em relação às economias avançadas, sobretudo as que estão hoje na fronteira do desenvolvimento tecnológico, segundo estudo dos economistas André Nassif, do BNDES e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carmem Feijó, da UFF, da Eliane Araújo, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). A queda da fatia da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB), a elevação do déficit comercial nos setores mais intensivos em tecnologia e o aumento da distância da produtividade do trabalho na indústria brasileira em relação à americana apontam nessa direção, dizem os autores.

Outro problema, de acordo com eles, é que as importações mostram uma "elasticidade-renda" muito maior que a das exportações - ou seja, o aumento de 1% do PIB brasileiro provoca uma alta bem mais forte das importações - de 3,36% entre 1999 e 2010 - do que o efeito do avanço de 1% do PIB global sobre as exportações - de 1,33% no mesmo período. "Isso indica que o Brasil tem restrições externas ao crescimento no longo prazo", diz Nassif. Os autores acreditam, porém, que essa situação ainda é reversível, embora seja preciso agir rápido. É importante haver a coordenação entre políticas de longo prazo - industriais, tecnológicas, de educação e de infraestrutura - com políticas macroeconômicas de curto prazo nos fronts monetário, fiscal e, principalmente, cambial.

Um dos pilares do estudo são as ideias de Nicholas Kaldor (1908-1986), professor da Universidade de Cambridge (Reino Unido), acerca da importância do setor manufatureiro. Por operar em condições de economias de escala, o setor como um todo tem a maior capacidade de disseminar os seus ganhos de produtividade para a economia inteira - daí a preocupação com um eventual processo de desindustrialização precoce. O encolhimento da fatia da indústria de transformação no valor adicionado na economia confirmaria esse processo. Essa participação caiu de 31,3% em 1980 para 17,2% em 2000, atingindo 14,6% em 2011.

Para não se limitar a esse indicador, os autores analisam também a evolução a participação de cada setor de atividade no emprego no Brasil. Entre 2000 e 2009, a fatia da indústria de transformação no total passou de 12% para 12,7%, após atingir 12,8% em 2005 e 2007 - desempenho que não apontaria na direção da desindustrialização.

Outra análise é a do comportamento do emprego da própria indústria manufatureira de acordo com os setores por intensidade tecnológica. Nesse caso, o quadro também não é negativo. Em 2000, os segmentos mais intensivos em ciência, engenharia e conhecimento respondiam por 26,2% do emprego na indústria de transformação, fatia que pulou para 31,2% em 2008 (ano dos últimos dados disponíveis). Nesse período, a participação dos intensivos em trabalho caiu de 40,3% para 33,8%, enquanto a dos intensivos em recursos naturais subiu de 34,2% para 35%. Em suma, aumentou a participação no emprego na indústria de transformação dos segmentos mais intensivos em tecnologia.

No entanto, um critério essencial para diagnosticar a desindustrialização precoce nos países ainda em desenvolvimento é analisar a posição relativa em relação a outras economias, diz Nassif, que ressalta falar em nome pessoal, e não do BNDES. Por esse aspecto, o quadro é preocupante, afirma ele.

Em 2008, a produtividade do trabalho na indústria de transformação brasileira equivalia a pouco menos de 16% da dos EUA, mostrando uma queda significativa nos últimos 40 anos. Nos anos 70, o percentual oscilou entre 36,7% a 41,7%, caindo para a casa de 25% no fim dos anos 80, recuperando-se para a casa dos 30% em 1996 e 1997, para então voltar a recuar nos anos seguintes. O comportamento é parecido em todos os setores por intensidade tecnológica.

"Há também um aumento dramático dos déficits comerciais do grupo de produtos industrializados intensivos em engenharia, ciência e conhecimento a partir de 2006", diz Nassif. "São evidências de desindustrialização precoce."

O estudo estima econometricamente a elasticidade-renda das exportações e importações entre 1980 e 2010, para verificar se há restrições externas à capacidade de crescimento do país no longo prazo. O resultado mostra que, entre 1980 e 1998, o aumento de 1% do PIB brasileiro causava um aumento de 1,97% das importações, número que pulou para 3,36% de 1999 a 2010. No caso das exportações, houve um pequeno recuo. Entre 1980 e 1998, o aumento de 1% da economia global elevava em 1,36% as exportações; entre 1999 e 2010, o número caiu para 1,33%.

"Como o ideal é que a elasticidade-renda das exportações supere, ao longo do tempo, a das importações, esses resultados mostram que o Brasil se defrontará com problemas de balanço de pagamentos para financiar o crescimento de sua economia no longo prazo, caso não haja uma inversão dessa tendência", diz Nassif. "Para isso, no entanto, será necessário fazer um enorme esforço para melhorar o conteúdo tecnológico de nossas exportações." Os elevados preços de commodities evitam hoje esse problema, por garantir superávits comerciais elevados, mas esse quadro pode mudar se as cotações desse bens ficarem num patamar menos favorável do que nos últimos anos.

No estudo, os autores também fizeram exercícios para verificar se a indústria manufatureira do país está ou não sujeita a economias dinâmicas de escala. Se confirmado, isso indica que o setor tem capacidade, ao longo do tempo, de reduzir os seus custos e aumentar a sua competitividade, à medida que acumula inovação, conhecimento e experiência. "Os resultados nesse sentido foram surpreendentemente positivos", diz Nassif.

De acordo com o modelo, entre 1970 e 1989, o aumento de 1% da produção industrial elevava em 0,39% a produtividade do trabalho. Entre 1990 e 2010, houve um aumento do coeficiente, que pulou para 0,52%. "Isso indica que a indústria manufatureira do país ainda opera sujeita a substanciais economias dinâmicas de escala. Em outras palavras, em princípio, ela tem potencial para impulsionar a produtividade do trabalho e, em consequência, o crescimento econômico no longo prazo", escrevem os autores. Nassif diz que o resultado mostra o fôlego da indústria brasileira, como dizia o professor Antônio Barros de Castro, ex-presidente do BNDES, morto no ano passado. Ela resiste mesmo enfrentando problemas sucessivos, como a liberalização comercial relativamente rápida, a inflação alta e a valorização persistente do câmbio.

Para Nassif, porém, é preciso agir rápido para deter o processo de desindustrialização e distanciamento das economias desenvolvidas. "Políticas industriais e tecnológicas são bem-vindas para induzir mudanças estruturais, mas não são suficientes", diz ele, ressaltando ser fundamental a manutenção de um ambiente de juros baixos e câmbio competitivo, com coordenação entre as políticas monetária, fiscal e cambial. É importante, segundo ele, evitar uma nova valorização do câmbio, que hoje se encontra num nível um pouco mais favorável à indústria.

O estudo será apresentado na quinta-feira, no 5 º Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira (AKB), a ser realizado na Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo.

O aumento do investimento



Por Antonio Delfim Netto - Valor 21/08

Gostemos ou não, a organização social ("simplisticamente" chamada de capitalismo) que o homem encontrou no desenrolar de sua história através de uma seleção quase natural é, até agora, a única que permitiu conciliar, numa medida imperfeita, a liberdade de iniciativa dos indivíduos com uma relativa eficiência produtiva. Ela dá resposta aos crescentes desejos de consumo criados pelo aumento constante da própria liberdade.

Trata-se de um movimento que depende basicamente da construção de um Estado forte, constitucionalmente controlado, capaz de assegurar o bom funcionamento de quantos mercados forem necessários para a manifestação da liberdade de iniciativa e assegurar que os benefícios dela decorrentes possam ser apropriados pelos agentes que a promovem. É por isso que a propriedade privada e a segurança jurídica são condições necessárias, mas não suficientes, para que o ciclo se complete continuamente, cada vez num nível produtivo mais elevado.

Nos casos dos países emergentes com contingente demográfico significativo, que pretendem ser repúblicas e democracias, o processo se repete: começam importando os padrões de consumo e a tecnologia dos mais avançados antes de criarem a sua. Diante desse quadro, é evidente que a antinomia Estado versus mercado é imprópria e prejudicial: não há administração estatal eficiente sem utilizar os mecanismos de mercado, e não há mecanismo de mercado que possa funcionar sem as garantias de um Estado suficientemente forte para controlá-lo.

Neste momento, o excesso de pessimismo que se abateu sobre a economia nacional - em parte consequência da mundial, e em parte resultado de entendimento defeituoso do mercado financeiro com relação aos objetivos da política econômica do governo -, parece começar a ceder e dar lugar a uma pequena recuperação da atividade. Nada mais oportuno e importante para acelerá-la do que o amplo programa de cooptação do setor privado anunciado pela presidenta Dilma Rousseff para a ampliação dos investimentos em infraestrutura.

Trata-se de um programa ambicioso, que revela uma nova postura do governo federal: 1) declara definitivamente superada a desconfiança mútua (sempre negada explicitamente) entre ele e o setor privado, mais dinâmico e melhor apetrechado de técnica e recursos; e 2) devolve aos programas do governo uma visão logística estratégica, que incorpora e integra as rodovias com as ferrovias, com os portos e a geração de energia.

A criação da Empresa de Planejamento Logístico (EPL) recupera e amplia o velho Grupo Executivo de Integração da Política de Transporte (Geipot) criado em 1965, transformado em empresa em 1973, extinta pela irresponsável "reforma" do Estado de 1990. A partir daí, destruiu-se a coordenação logística do governo. Lentamente ela foi sendo entregue à sanha dos partidos que apoiam o "presidencialismo de coalizão de plantão".

O resultado foi o caos temperado com uma boa dose de corrupção, como mostra, exemplarmente, o caso da Valec. Um ponto importante é que a EPL será dirigida por um técnico de reconhecida probidade e competência, Bernardo Figueiredo.

Outro aspecto significativo do novo programa foi a autorização para o aumento das dívidas de 17 Estados, cujas condições financeiras e administrativas são adequadas para acelerar suas próprias obras de infraestrutura: mobilidade urbana em suas capitais, estradas, saneamento básico e habitação, importante não apenas para ajudar a estimular o crescimento econômico mas, também, melhorar as condições objetivas de vida de suas populações.

O papel do governo federal é de integrador do território nacional, mas a vida de cada cidadão depende de condições locais, dos Estados e municípios. O montante de endividamento autorizado é razoável: da ordem de R$ 42 bilhões. Depois dos imensos abusos que destruíram a credibilidade de Estados e municípios e foram corrigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, é saudável a mudança do entendimento (até agora vigente), que todo e qualquer endividamento é um pecado capital.

Entre o programa e o começo da sua efetiva execução será preciso pelo menos 12 meses, se houver a colaboração dos órgãos de controle ambiental e entendimento adequado do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União, sem esquecer o apoio rápido e decisivo do BNDES pelo seu departamento de infraestrutura, hoje dirigido pelo excelente economista Guilherme Lacerda.

Certamente haverá um efeito antecipado sobre o ânimo da sociedade, que começa a ver uma pequena retomada econômica em resposta às medidas fiscais, monetárias e cambiais executadas até agora. A redução da desconfiança mútua entre o setor privado e o governo vai melhorar o ambiente de negócios em todos os setores. O primeiro não quer e não precisa de benesses ou subsídios. Precisa: 1) de condições isonômicas para competir; e 2) de leilões bem projetados, não apenas para atender o presente, mas, principalmente, sustentar investimentos futuros que garantam a melhoria permanente da qualidade dos serviços.

Caiu a ficha! Quando a incerteza sobre o futuro é absoluta, quando o passado não contém informação sobre o futuro, só uma ação decidida e forte do Estado, como a que estamos vendo, pode pôr em marcha o setor privado e a economia. Essa ação, correta e crível, é capaz de antecipar a esperança...



Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Estratégia para internacionalização



Por Fabrizio Sardelli Panzini - Valor 20/08

Há duas décadas a atividade de internacionalização de empresas vem ganhando novos contornos, com a entrada de relevantes atores provenientes de nações em desenvolvimento. O maior protagonismo das transnacionais desse grupo de países não ocorre, contudo, de forma homogênea em termos regionais. Ao contrário, é concentrada em poucos países do continente asiático, a saber, Cingapura, Malásia, Coreia do Sul e, principalmente, China (incluindo Hong Kong e Taiwan).

O caso chinês merece especial destaque. O fomento ao investimento das empresas no exterior caracterizou-se pelo forte comando estatal, e muitos defendem que as suas motivações superam razões meramente econômicas. O crescimento das corporações do país é evidente em ao menos duas publicações internacionais: na Lista Forbes das 50 maiores empresas de capital aberto do mundo, em que o país detém 12% das corporações, e na lista Unctad das 100 mais internacionalizadas do mundo em desenvolvimento, onde 40% são chinesas, muitas delas, inclusive, grandes players de setores de alta tecnologia.

As multinacionais brasileiras, por sua vez, cresceram em número e importância na última década, mas, em termos mundiais, mantêm uma participação tímida nesse processo. Prova disso é que, a despeito de o Brasil ser a segunda maior economia do mundo emergente, possui apenas 3% do total das mais importantes transnacionais do grupo, classificadas também pela lista da Unctad. Número pouco significativo e que representa menos da metade das empresas de países como Índia, Rússia, Cingapura ou mesmo da África do Sul.

Em adição, a pesquisa mais ampla conduzida no Brasil sobre as transnacionais do país - de autoria da Sobeet - indicou que quase metade das corporações respondentes exibiu índices de internacionalização inferiores a 10% e que 70% das empresas da amostra possuem índices inferiores a 20%.

Esses números preocupam não somente pelo fato de que as multinacionais brasileiras dependem intensamente do mercado doméstico. Mas, em especial, porque um grande número de estudos conduzidos para países desenvolvidos e em desenvolvimento (inclusive no caso do Brasil) apontou para uma mesma direção: de que a atividade de investimento no exterior está relacionada ao aumento da produtividade das empresas e da mão de obra contratada, à expansão e diversificação das exportações, ao número maior de empregados qualificados, à participação ativa em cadeias globais de produção de alto valor agregado, ao acesso a novas tecnologias e a maior propensão das empresas a inovar.

Governos dos principais países emergentes, como China, Coreia do Sul e Malásia, compreenderam esses benefícios e desenharam estratégias de políticas públicas específicas para internacionalização, marcadas pela coerência com suas políticas industriais. E, em que pese à alta competitividade em mercados maduros, o apoio governamental rendeu notáveis conquistas para essas nações, como a ampliação das exportações e das vendas de partes e peças de bens de maior conteúdo tecnológico, o fortalecimento de suas marcas e produtos no exterior e a absorção de ativos intangíveis que alavancam a competitividade global das empresas e transbordam para a economia de seus países de origem.

É preciso reconhecer que o Brasil também possui instrumentos de facilitação e apoio público ao investimento externo, porém, eles são praticamente restritos aos empréstimos do BNDES e aos aportes do BNDES Participações.
Na verdade, faltam ao país um número maior de ações e a definição de uma estratégia de estímulo ao investimento no exterior, setorial e regional, e coordenada entre os órgãos públicos. Os exemplos de políticas públicas aplicadas por países de sucesso nessa empreitada são vastos e podem ser replicados pelo Brasil em ao menos três frentes principais de trabalho: 1- a mitigação dos riscos políticos, 2- o apoio informacional e 3- as políticas tributárias específicas.

Na primeira categoria, enquadram-se a criação de serviços de seguro de crédito contra riscos políticos e a celebração de acordos de proteção dos investimentos, em especial para aqueles direcionados a países da América Latina e do continente africano. No segundo caso, modificações e atuação conjunta entre áreas distintas do setor público (Embaixadas e Centros de Negócios da Apex-Brasil, que poderia contar com multidisciplinaridade de analistas) seriam capazes de oferecer às transnacionais brasileiras informações estratégicas sobre o país de destino do investimento, em temas como o ambiente regulatório setorial. Na última frente de trabalho, a flexibilização da posição do país em negociações de acordos para evitar a bitributação e a criação de um programa de deduções fiscais, a depender da motivação do investimento, além de impulsionar a atividade das multinacionais constituiria ferramenta auxiliar para gerar desenvolvimento à economia do Brasil.

Cabe lembrar que um dos pilares fundamentais de experiências bem-sucedidas, ao redor do mundo, de apoio governamental à internacionalização foi a adoção de critérios de cobrança de desempenho das empresas. No caso brasileiro, defende-se que a definição da estratégia de promoção ao Investimento Externo Direto (IED) - especialmente quando envolver crédito público e renúncias fiscais - deve contar com metas e prever o aumento da competitividade das empresas (com a incorporação de tecnologia e inovações gerenciais) e a expansão das exportações manufatureiras como contrapartidas.

Para encerrar, a decisão de lançar mão de financiamentos públicos e renúncias fiscais demanda que o governo esteja ciente dos benefícios da atividade à economia do país. O mais importante é o conteúdo e a coordenação dessas políticas, para que não seja uma internacionalização apenas pela internacionalização, mas que esteja inserida no contexto de desenvolvimento produtivo do país.



Fabrizio Sardelli Panzini é mestre em economia política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).