quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Os credores dependem dos devedores
Por Martin Wolf - Valor 03/11
Bem-aventurados os credores, pois eles herdarão a terra. Não é o Sermão da Montanha. Os credores, no entanto, parecem acreditar nisso: se todos fossem credores, não haveria dívidas sem pagar nem crises financeiras. Essa é a maneira de se comportar, acreditam os credores. Eles estão errados. Como o mundo não pode negociar com Marte, os credores estão intrinsecamente atados aos devedores. Os credores precisam acumular mais dívidas em cima dos devedores. Isso os coloca em uma armadilha que eles próprios armaram. Das quatro maiores economias do mundo, três são credoras, China, Alemanha e Japão: possuem superávits em conta corrente, tanto durante bons como maus momentos. Acreditam ter o direito de censurar publicamente os devedores por suas tolices. A China, uma superpotência ascendente, gosta de dar broncas nos Estados Unidos por sua imprudência. O Japão, aliado dos EUA, é mais discreto. As ambições da Alemanha são mais próximas da própria casa. Quer transformar os parceiros da região do euro em bons alemães.
Os credores, no entanto, estão vulneráveis. Suas economias têm uma capacidade para produzir bens e serviços desejados pelos devedores que é muito maior do que os próprios residentes poderiam alguma vez vir a comprar. As economias com déficits são a imagem disso refletida no espelho: sua capacidade para fornecer bens e serviços é menor do que sua demanda. Esses superávits e déficits estão incrustados nos dois tipos de economias.
Internamente, nos países credores, os produtores de bens e serviços negociáveis formam um lobby poderoso em favor da concessão de mais crédito aos devedores. O financiamento privado ficará congelado quando as instituições de crédito perceberem como os empréstimos concedidos foram ruins. As autoridades políticas e monetárias, então, veem-se no dilema entre despejar mais dinheiro "bom" em cima de créditos ruins ou tolerar um ajuste brutal à medida que seus mercados desaparecessem. Ao punir os captadores perdulários, também prejudicariam os próprios cidadãos.
Essa é a história por trás do que acontece no mundo. Está por trás da agenda dos encontros de cúpula europeu da semana passada e do G-20 deste fim de semana. Como declarou o presidente do Banco da Inglaterra, Mervyn King, em recente discurso, é a história por trás de todas as crises desde 2007: "Os superávits comerciais persistentes em alguns países e déficits em outros não refletem um fluxo de capital em direção a países com oportunidades de investimento rentáveis, mas a países que captaram para financiar o consumo ou perderam sua competitividade. O resultado foram níveis de consumo (seja público ou privado) insustentavelmente altos nos EUA, Reino Unido e em uma série de outras economias avançadas e níveis de consumo insustentavelmente baixos na China e em outras economias na Ásia e em algumas economias avançadas com superávits comerciais persistentes, como a Alemanha e Japão." Em resumo: todo mundo ajudou a criar a confusão e todo mundo tem de fazer algo para arrumá-la.
Como escreve o poeta A. E. Housman: "Para concluir que dois e dois são quatro/ e não cinco nem três/ Há muito o coração do homem sofre/ E muito ainda deverá sofrer". Não é possível manter seus superávits sem financiar o déficit dos outros, de uma forma ou de outra. Ainda assim, é isso o que a Alemanha tenta fazer. A Alemanha, na prática, controla o Banco Central Europeu (BCE). Também tem a melhor a avaliação de risco de crédito. Portanto, pode decidir como as linhas de crédito de socorro financeiro vão funcionar. Não muito bem, infelizmente, como argumentou Willem Buiter, do Citigroup, ao "Financial Times". Nem mesmo a França, no entanto, pode lamentar muito a respeito.
O país com crédito determina as regras. Os devedores precisam implorar, particularmente, quando há uma moeda fixa, sempre que precisam de financiamento para amortecer um ajuste imposto via deflação. Os credores também podem insistir em sua interpretação das causas da crise. A Alemanha declara que tudo é culpa de más políticas fiscais: corrijam isso e mantenham a política fiscal na linha para sempre; os virtuosos, então, herdarão a terra.
Essa visão de mundo tem três inconvenientes: é equivocada, é autodestrutiva e é desestabilizadora. É errada porque os países atingidos pela crise não foram todos palco de políticas fiscais irresponsáveis, longe disso. É autodestrutiva porque as tentativas de cada país-membro de tornar suas políticas fiscais mais rigorosas acabarão empobrecendo a todos, inclusive aos credores. A visão também é desestabilizadora porque a saída dessa armadilha seria via uma mudança nos superávits externos da região do euro. Resolver os desequilíbrios internos agravando os mundiais é má ideia.
A Alemanha busca tanto minimizar o financiamento como continuar a exibir imensos superávits externos. Isso não tem como funcionar. Alguns argumentarão que a Alemanha ajustou-se na década de 2000 para chegar aos superávits. Por que seus parceiros não podem fazer o mesmo agora? A Alemanha passou a ter superávits com países que voluntariamente tinham déficits. A Alemanha, porém, não deseja ter déficits.
Paralelamente, a região do euro parece ter decidido que precisa da ajuda chinesa. Por que pensam assim, é algo incompreensível. Há dinheiro disponível dentro da região do euro. O que falta é disposição de perda. Como escreveu o economista Yu Yongding ao "Financial Times", a China não assumirá esse risco. É tolice imaginar que o faria, a não ser por algo que tenha um custo econômico ou político proibitivo. Afinal, a China já administra seus próprios riscos de perdas maciças com as reservas cambiais - hoje em US$ 3,2 trilhões - que acumulou. Trata-se de um fluxo saída de capital público voltado a sustentar seus superávits comerciais. Mas em suas tentativas de administrar a relação cambial com os EUA, são os americanos os que controlam o banco central. A China pode reclamar à vontade, mas precisa comprar o dinheiro que os EUA criam para preservar competitividade, ou deixar de fazê-lo. Se comprar, despeja dinheiro bom em cima de dinheiro ruim. Se deixar de comprar, impõe um choque a si mesma.
Os credores mandam no mundo? Na verdade, não. No curto prazo, eles podem ameaçar fechar a torneira do crédito. Mas seus superávits dependem da disposição dos outros países em manter déficits. Seria mais sensato admitir que houve captações em excesso pelos perdulários, porque houve muita concessão de empréstimos pelos prudentes. Uma vez que se entenda que ambos são culpados, ambos precisam ajustar-se. Impor um ajuste apenas em um lado, o dos devedores, não funcionará. Como a pequena Grécia está prestes a provar, os devedores podem infligir muitos danos a todos - como os EUA descobriram na Grande Depressão. Seria uma boa ideia redescobrir esse interesse recíproco, imediatamente. Os credores não vendem a ninguém em Marte. Estamos todos no mesmo planeta. Cheguem a um acordo para arrumar as confusões de nosso planeta, imediatamente. (Tradução Sabino Ahumada)
Martin Wolf é editor e principal comentarista de economia do FT.
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