terça-feira, 5 de junho de 2012
As pernas quebradas do comércio
Por Jagdish Bhagwati - Valor 05/06
A Rodada Doha, a mais recente série de negociações multilaterais de comércio exterior, fracassou em novembro de 2011, depois de dez anos de conversas, apesar dos esforços oficiais de muitos países, incluindo o Reino Unido e Alemanha, e de quase todos os estudiosos especializados em comércio. Embora o fracasso das negociações anteriores, em Cancún, em 2003, tenha sido atribuído, por representantes de comércio dos Estados Unidos e União Europeia (UE), às exigências excessivas dos países em desenvolvimento do G-22, desta vez há consenso de que foram as demandas dos EUA, injustificadas (e inflexíveis), que derrubaram as conversas. E agora?
O fracasso em obter uma liberalização multilateral do comércio exterior via Rodada Doha significa que o mundo deixou de ganhar todas as vantagens decorrentes do comércio que um tratado bem-sucedido teria proporcionado. Isso, no entanto, está longe de ser o fim do problema: o fracasso de Doha praticamente paralisará o processo de liberalização do comércio multilateral por vários anos.
As negociações multilaterais de comércio, naturalmente, são apenas uma das três pernas nas quais a Organização Mundial do Comércio (OMC) se sustenta. Quebrar essa perna, no entanto, afeta negativamente o funcionamento das outras duas: o mecanismo de resolução de disputas comerciais e sua autoridade de formular leis. Aqui, os custos também podem ser grandes.
Até agora, os Acordos de Comércio Preferencial (ACPs) entre pequenos grupos de países coexistiam com as rodadas não discriminatórias de liberalização comercial multilaterais. Como resultado, as regras que regem o comércio exterior, como os impostos antidumping e os direitos compensatórios como forma de contrabalançar subsídios ilegais, estavam dentro da esfera de domínio tanto dos ACPs como da OMC. Quando havia algum conflito, no entanto, prevaleciam as regras da OMC, pois conferiam direitos aplicáveis a todos os países-membros da OMC, enquanto as dos ACPs valiam apenas para os poucos integrantes de tal tratado.
Dessa forma, enquanto países poderosos e "hegemônicos", como os EUA conseguiram impor suas próprias regras em parceiros mais fracos nos ACPs que ajudaram a disseminar, grandes economias emergentes, como Índia, Brasil, China e África do Sul insistiram em rejeitar tais exigências quando eram apresentadas como parte de rodadas multilaterais de comércio como a de Doha.
Agora, no entanto, com a era das rodadas comerciais multilaterais e as regras de amplo alcance ficando para trás, os ACPs estabelecem-se como única alternativa, e os modelos estabelecidos pelas potências hegemônicas, em tratados de comércio desiguais com países mais fracos economicamente, passarão a prevalecer cada vez mais. Na verdade, esses modelos agora vão além de questões comerciais convencionais (por exemplo, proteção ao setor agrícola) e chegam a várias áreas não relacionadas, como padrões trabalhistas, regras ambientais, políticas de expropriação e a capacidade de impor controles sobre as contas de capitais em crises financeiras.
O blitzkrieg de relações públicas, encabeçado pelos EUA, já começou, com Wendy Cutler, assistente da representante de Comércio Exterior do país, descrevendo o mais recente ACP, o Acordo de Livre Comércio Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), como um acordo de "alto padrão". Outras autoridades dos EUA passaram a chamar os ACPs como "os acordos comerciais do século XXI". Quem poderia ir contra o século XXI?
O mais perturbador é a forma como muitos economistas especialistas em comércio exterior em Genebra e Washington capitularam diante dessa propaganda e consideram a rendição da OMC como uma forma de "salvar" e remodelar a instituição. A OMC, assim como os vilarejos durante a Guerra do Vietnã, precisa ser destruída para poder ser salva.
Infelizmente, esse ataque insidioso à segunda perna da OMC também se estende à terceira, o mecanismo de resolução de disputas comerciais. O sistema é o orgulho da OMC: é o único mecanismo imparcial e de cumprimento obrigatório para julgar e aplicar deveres contratuais definidos pela OMC e aceitos por seus países-membros. É uma plataforma que dá voz a todos os integrantes, sejam pequenos ou grandes.
Uma vez que se estabeleçam mecanismos de resolução de disputas com base em ACPs, contudo, a determinação de disputas refletirá as assimetrias de poder, beneficiando os parceiros comerciais mais fortes. Além disso, outros países, que podem ter seus interesses afetados pela forma como tal determinação for estruturada, terão pouco espaço para influenciar mecanismos de resolução baseados em ACPs.
Tendo em vista que os EUA abandonaram qualquer pretensão de liderança no comércio mundial, cabe às grandes economias emergentes e aos países desenvolvidos com mentalidade similar criar seu próprio modelo, que siga objetivos comerciais e rejeite o que os grupos de pressão com interesses especiais em poderes hegemônicos como os EUA tentam impingir nos ACPs. É isso exatamente o que a Índia fez com a UE, que agora está removendo tais pontos de sua proposta de ACP.
Outros países - como Brasil, África do Sul e China, entre as grandes economias emergentes, e Japão e Austrália, entre os países desenvolvidos - deveriam apoiar "limpar" os ACPs da mesma forma para remover esses pontos. Essa pode ser exatamente a forma mais adequada para repelir a ascensão dos ACPs, cujo principal objetivo é servir apenas aos interesses hegemônicos - talvez, possa até ser suficiente para retomar o caminho da abordagem multilateral.
Jagdish Bhagwati é professor de economia e direito na Columbia University e membro associado em questões de economia internacional do Council on Foreign Relations. Foi copresidente do Grupo de Especialistas de Alto Nível, indicado pelos governos do Reino Unido, Alemanha, Indonésia e Turquia. Copyright: Project Syndicate, 2012.
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