quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Uma Europa de solidariedade


Por George Soros - Valor 07/11

Originalmente, a União Europeia (UE) era o que os psicólogos chamam de "objeto fantástico", um objetivo desejável, motivo de inspiração para a imaginação das pessoas. Eu a via como a materialização de uma sociedade aberta - uma associação de nações-Estado que abriram mão de parte da soberania pelo bem comum e formaram uma união sem o domínio de nenhuma nação ou nacionalidade.

A crise do euro, contudo, transformou a UE em algo radicalmente diferente. Os países-membros agora se dividem em duas classes - credores e devedores -, com os credores no comando. A Alemanha, como maior país e o de maior solvência, ocupa posição dominante. Os países devedores pagam um prêmio substancial de risco para financiar suas dívidas, o que é refletido nos altos custos de captação da economia em geral. Isso os levou a uma espiral deflacionária e os deixou em situação de desvantagem competitiva substancial - potencialmente permanente - em comparação aos países credores.

Esse resultado não é reflexo de um plano deliberado, mas de uma série de erros de política econômica. A Alemanha não buscou ocupar uma posição dominante na Europa e se mostra relutante em aceitar as obrigações e responsabilidades que tal posição exige. Podem chamar isso de a tragédia da União Europeia.

Recentes acontecimentos parecem ser motivo para otimismo. As autoridades vêm tomando medidas para corrigir seus erros, especialmente com a decisão de formar uma união bancária1 e de lançar o programa de "Transações Monetárias Diretas" (OMT, na sigla em inglês), que permitirá intervenções ilimitadas do Banco Central Europeu (BCE) no mercado de bônus soberanos. Os mercados financeiros tranquilizaram-se com as mostras de que o euro está aqui para ficar. Esse poderia ser um ponto de inflexão, desde que seja reforçado adequadamente por passos adicionais em direção a uma maior integração.

Infelizmente, a tragédia que se desenrola na UE acaba se alimentando de tais raios de esperança. A Alemanha continua disposta a fazer apenas o mínimo - e nada além disso - para manter a coesão do euro. As recentes medidas da UE apenas serviram para reforçar a resistência alemã a novas concessões. Isso vai perpetuar a divisão entre países credores e devedores.

A perspectiva de aumento na diferença de desempenho econômico e domínio político é tão deplorável para a UE que não se pode permitir que se torne permanente. Há de existir alguma forma de evitá-la - afinal, a história não é predeterminada. A UE, originalmente concebida como instrumento de solidariedade, hoje se mantém agrupada apenas por questão de amarga necessidade. Isso não é caminho para uma parceria harmoniosa. A única forma de reverter essa tendência é recapturar o espírito da solidariedade que motivou o projeto europeu desde o início.

Com esse objetivo, criei recentemente a Open Society Iniciative for Europe (Osife). Ao fazê-lo, percebi que o melhor lugar para começar seria onde as atuais políticas criaram o maior sofrimento humano: a Grécia. As pessoas que vêm sofrendo os efeitos da crise não são as que se aproveitaram do sistema e a causaram. O destino de muitos migrantes e de pessoas em busca de asilo que estavam na Grécia é particularmente comovente. Seus apuros, no entanto, não podem ser separados dos que os próprios gregos estão passando. Uma iniciativa limitada aos migrantes apenas reforçaria a crescente xenofobia e extremismo na Grécia.

Não conseguia descobrir como abordar esse problema aparentemente insolúvel até que visitei Estocolmo para comemorar o centenário do nascimento de Raoul Wallenberg**. Isso despertou minhas memórias da Segunda Guerra Mundial - a calamidade que acabou originando a UE.

Wallenberg foi um herói que salvou a vida de muitos judeus em minha cidade natal, Budapeste, ao preparar casas com esconderijos na Suécia. Durante a ocupação alemã, meu pai também foi uma figura heroica. Ele ajudou a salvar sua família, amigos e muitos outros. Ele me ensinou a confrontar a dura realidade e não submeter-se a ela passivamente. Foi o que meu deu a ideia.

Poderíamos criar casas de solidariedade na Grécia, que serviriam de centros comunitários para a população local e também ofereceriam alimento e abrigo para os migrantes. Já há muitas cozinhas públicas e esforços da sociedade civil para ajudar os migrantes, mas essas iniciativas não são suficientes para lidar com a escala do problema. O que tenho em mente é reforçar esses esforços.

A política de asilo da UE desmoronou. Os refugiados precisam registrar-se no país-membro no qual entram, mas o governo grego não consegue processar todos os casos. Cerca de 60 mil refugiados que buscaram se registrar foram colocados em centros de detenção, nos quais as condições são desumanas. Os migrantes que não se registram e vivem nas ruas são atacados por vândalos do partido neofascista Amanhecer Dourado.

A Suécia tornou sua política de asilo e migração prioridade. A Noruega mostra preocupação com o destino dos migrantes na Grécia. Os dois países, portanto, seriam candidatos excelentes para apoiar as casas de solidariedade. E outros países em boas condições poderiam juntar-se a eles. A Osife está preparada para dar apoio a essa iniciativa e espero que outras fundações estejam dispostas a fazer o mesmo. Isso, entretanto, precisa ser um projeto europeu - um projeto que em algum momento encontre seu caminho dentro do orçamento europeu.

Atualmente, o Amanhecer Dourado vem ganhando espaço político por oferecer serviços sociais aos gregos, enquanto ataca os migrantes. A iniciativa que proponho ofereceria uma alternativa positiva, baseada na solidariedade - a solidariedade dos europeus para com os gregos e dos gregos para com os migrantes. Seria uma demonstração prática do espírito que precisa se infundir em toda a UE.

Assim que possível, enviarei à Grécia uma equipe da Osife para avaliar as necessidades e contatar as autoridades de forma a preparar um plano que possa arregimentar apoio público. Meu objetivo é reviver a ideia de uma UE como instrumento de solidariedade, não apenas de disciplina. (Tradução de Sabino Ahumada)



* bit.ly/WwDRdL



** bit.ly/WwE2pl



George Soros é presidente do Soros Fund Management e do Open Society Institute. Copyright: Project Syndicate, 2012.



www.project-syndicate.org

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