quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Europa: sacrifícios sem benefícios


Por Michael Marder - Valor 14/11

O presidente francês, François Hollande, fez uma observação crucial: de que há limites para o nível de sacrifício que pode ser exigido dos cidadãos de países em dificuldades financeiras no sul da Europa. Para evitar transformar a Grécia, Portugal e Espanha em "casas de penitência" coletivas, argumentou, as pessoas precisam de esperança para além do horizonte cada vez mais distante de cortes de gastos e medidas de austeridade.

Até mesmo a compreensão mais rudimentar de psicologia corrobora a avaliação de Hollande. É improvável que reforço negativo e gratificação retardada alcancem seus objetivos se não houver uma percepção de luz no fim do túnel - uma recompensa futura para os sacrifícios atuais.

O pessimismo da sociedade no sul da Europa é atribuído principalmente à ausência de uma recompensa. À medida que a confiança do consumidor declina e que o poder de compra das famílias aprofunda a recessão, as projeções de um fim para a crise são repetidamente empurradas para o futuro e as pessoas que estão arcando com o ônus da austeridade perdem a esperança.

Ao longo da história, o conceito de sacrifício mesclou teologia e economia. No mundo antigo, as pessoas faziam oferendas muitas vezes sangrentas a divindades que, acreditavam elas, as recompensariam com, digamos, boas colheitas ou a proteção contra o mal. O cristianismo, com sua crença em que Deus (ou o Filho de Deus) sacrificou-se para expiar os pecados da humanidade, inverteu a economia tradicional do sacrifício. Nesse caso, o sofrimento divino serve como um exemplo de humildade altruísta com a qual devem ser suportados os infortúnios terrenos.

Apesar da secularização, a crença em que recompensas ou conquistas pessoais exigem sacrifícios tornou-se parte integrante da consciência cultural europeia. A ideia de um "contrato social" - que surgiu durante o Iluminismo para confirmar, sem recorrer ao direito divino, a legitimidade da autoridade do Estado sobre seus cidadãos - repousa na premissa de que os indivíduos abrem mão de determinado grau de liberdade pessoal para assegurar paz e prosperidade a todos.

Em consequência disso, os líderes políticos frequentemente pedem aos cidadãos que sacrifiquem suas liberdades e conforto pessoais em nome de entidades espirituais secularizadas, tais como a nação ou o Estado - e os cidadãos atendem. Em seu primeiro discurso de primeiro-ministro do Reino Unido perante a Câmara dos Comuns, Winston Churchill inspirou a esperança de uma nação sitiada ao declarar que ele - e, portanto, o Reino Unido - "nada tinha a oferecer, se não sangue, labuta, lágrimas e suor".

Em vista de tais incontáveis precedentes, pode parecer surpreendente que a retórica do sacrifício sob a bandeira da austeridade tenha se mostrado tão ineficaz na atual crise europeia. Alguns observadores culpam esse estado de coisas ao declínio dos níveis de comprometimento em relação a qualquer coisa que transcenda o indivíduo, inclusive o sistema político.

Mas a resistência à austeridade no sul da Europa não está enraizada em hostilidade generalizada a sacrifícios. Na realidade, os europeus agora acreditam que seus líderes estão exigindo sacrifícios que não promovem seus interesses. Churchill proporcionou aos britânicos uma expectativa: a vitória. Sem um fim claro que o justifique, o sacrifício torna-se sem sentido.

A premissa era que a prosperidade deveria legitimar a União Europeia. Depois que o período de rápido crescimento econômico terminou, os líderes europeus passaram a apoiar-se na ameaça de um mal maior do que a austeridade: a desestabilização dos países devedores, resultando em calotes, expulsão da zona do euro, e colapso econômico, social e político.

Mas a retórica do medo está perdendo influência, porque o "Novo Pacto" que está tomando forma no sul da Europa oferece mais repressão e menos proteção, desrespeitando, assim, os princípios fundamentais do contrato social. De fato, enquanto os cidadãos europeus são convidados a sacrificar seu padrão de vida - e até mesmo sua subsistência - pelo bem da "economia nacional", as empresas transnacionais estão prosperando.

As condições impostas pela "troika" - Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional - equivalem a adiar por tempo indeterminado a satisfação das necessidades daqueles aos quais foram pedidos sacrifícios e a reparação das esgarçadas redes de seguridade social. Mas os governos nacionais continuam implementando políticas que agravam a injustiça. Por exemplo, o orçamento de Portugal para 2013 reduz de oito para cinco o número de faixas do imposto de renda - uma decisão que devastará a classe média.

Antes, sacrifício significava abdicar do corpo - de seus prazeres, necessidades básicas e até mesmo de sua vitalidade - para proveito do espírito. Embora o discurso do sacrifício persista, a lógica em que ele se apoiava há milênios foi abandonada. Os líderes europeus precisam imbuir seus cidadãos de renovadas esperanças. A legitimidade de uma Europa "pós-nacional" - baseada nas obrigações da União Europeia, consagradas no Tratado de Lisboa para promover "o bem-estar de seu povo" - está em jogo. (Tradução de Sergio Blum).



Michael Marder é professor e pesquisador da Universidade do país Basco, em Vitoria-Gasteiz, autor de "The Event of the Thing: Derrida's Post-Deconstructive Realism" (o evento da coisa: o realismo pós-desconstrutivista de Derrida) e "Groundless Existence: The Political Ontology of Carl Schmitt" (existência desenraizada: a ontologia política de Carl Schmitt). Copyright: Project Syndicate/Institute for Human Sciences, 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário