quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Desintoxicação dos juros altos



Por Zeina Latif - Valor 05/09

A adoção de elevadas taxas de juros no Brasil foi parte do receituário que permitiu a superação dos graves desequilíbrios da economia. A implantação do regime de metas de inflação, em 1999, e a melhora dos fundamentos tem permitido a progressiva redução das taxas de juros, acelerada recentemente. Novos patamares têm sido sucessivamente "testados" pelo Banco Central. A crise global, que trouxe a reboque um quadro de juros internacionais excepcionalmente baixos e, no geral, um ambiente desinflacionário, tem auxiliado para que o BC acelere o processo de queda dos juros para níveis inéditos. Retirar o remédio amargo, porém, traz desafios quase comparáveis à superação da própria doença.
O desafio de administrar as consequências de taxas de juros baixas inéditas não é particularidade brasileira. Nos EUA especula-se os impactos desconhecidos de taxas de juros próximas de zero por um período prolongado, bem como de aumento sem precedentes da liquidez. Não por acaso o presidente do Banco Central americano (Fed), Ben Bernanke, discute os riscos que necessitam ser monitorados, sistematicamente, tanto para administrar possível reforço do receituário de novos estímulos monetários, como para retirá-los no futuro.

Tempos excepcionais têm permitido certo experimentalismo na política econômica, gerando riscos que necessitam ser monitorados e administrados.

Ainda que a comunicação do BC com os mercados nem sempre seja clara, há mérito no seu esforço. Com juros mais próximos do padrão internacional, distorções poderão ser removidas, o que poderá se traduzir adiante em maior eficiência da economia. A experiência brasileira difere da norte-americana. Enquanto o Fed lida com anomalias, o BC lida com a oportunidade de remover distorções na economia e aperfeiçoar o arcabouço institucional do país. Bom problema a ser enfrentado.

O que não significa que seja tarefa fácil. O caminho terá que ser descoberto e experimentado com cautela. E o tamanho do ajuste será enorme, pois o funcionamento do sistema econômico se moldou para operar com juros elevados. Mais do que isso, ficou dependente desse remédio. A desintoxicação é penosa e complexa, mas imprescindível para se levar uma vida normal.

Poupadores acostumaram-se com a renda garantida de juros altos financiando parcialmente seu consumo.

Fundos de pensão com metas atuariais, que hoje se revelam inadequadas aos novos tempos, encontram-se com grandes desafios: garantir os benefícios prometidos sem as receitas esperadas, em um contexto de complexa decisão de flexibilizar metas atuariais.

A indústria de fundos, pressionada pela busca por rendimento, almeja novos instrumentos financeiros, o que exigirá aperfeiçoamento de regras e supervisão para garantir o bom funcionamento e solidez do sistema.

Importante ajuste também ocorrerá no setor produtivo que, estrategicamente, opera com elevados recursos em caixa. De acordo com o Centro de Estudos do Mercado de Capitais, entre 2000 e 2011, 55,8% do investimento de empresas e famílias foi feito com recursos próprios. A receita financeira de curto prazo pode ter contribuído para a viabilidade econômica de muitos negócios. Há, portanto, desafios às empresas, não apenas à gestão do caixa, mas tambem à sua gestão estratégica, pois perdem uma importante fonte de receita. A menor taxa de retorno sobre a poupança doméstica pode estar impactando, de forma inesperada, a economia no curto prazo.

Comparando o desempenho da produção industrial brasileira e mundial nas últimas décadas, notam-se três fases distintas. Na primeira, até a eclosão da crise global de 2008, ambas caminhavam juntas, o que não chegava a ser um bom resultado para o Brasil, uma vez que o desempenho dos emergentes era superior. A razão pode estar na baixa taxa de investimento e no elevado, e em muitos casos crescente, custo da infra-estrutura, que limita o potencial de crescimento do país.

Na segunda fase, passada a recuperação em "V" em 2009, a produção brasileira estagnou, descolando-se da média global em lenta elevação. O aumento do custo da mão-de-obra, decorrente do sobreaquecimento do mercado de trabalho, é possível explicação para esse descolamento perverso.

A nova rodada de crise internacional no segundo semestre de 2011 inaugurou a terceira fase, onde se amplia o hiato entre produção global e brasileira, que por sua vez inicia um movimento de queda frente à produção global resiliente. O ciclo de estoques, que se correlaciona com a piora da confiança do empresário, contribuiu para isso. Porém, como o ajuste tende a ser rápido, provavelmente outros elementos concorrem para explicar a fraqueza da nossa indústria mais recentemente.

A depreciação cambial pode ser um deles. O real enfraquecido, no curto prazo, tem efeito perverso para a indústria, pois eleva o custo de produção, em decorrência da crescente penetração de insumos e bens de capital importados, e aumenta o passivo de empresas com dívidas em moeda estrangeira.

É possível que a queda da receita de juros também esteja contribuindo para explicar as dificuldades recentes da indústria, com impacto sobre investimento e produção. Seria um efeito de curto prazo, fruto do ineditismo do atual momento. Não se trata de inverter a ordem de causação; cortes de juros tendem a reativar a produção industrial, até antes mesmo de estimular o consumo, já que empresários podem antecipar o aumento da demanda. Mas esse não tem sido ainda o caso. Pelas defasagens usuais da política monetária, sinais de retomada da indústria já deveriam estar evidentes, o que já foi verificado nas vendas do varejo.

Fiquemos preparados para um período ainda marcado por sinais ambíguos de crescimento, por conta dos ajustes aos novos patamares de juros. Que esse período seja de renovação da agenda, sempre com atenção a possíveis ajustes que se façam necessários em tempos surpreendentes. Muita atenção a cada sinal emitido pela economia. O médico não pode descuidar ou desprezar os sinais mínimos revelados pelo paciente. O caminho do paciente em recuperacão precisa estar bem pavimentado. E previnido quanto ao inesperado em tempos de desintoxicacão.



Zeina Latif, doutora em economia pela USP, foi economista-chefe para América Latina no Royal Bank of Scotland (RBS) e economista-chefe para Brasil nos bancos ING e ABN-Amro Real. (zeina.latif@terra.com.br).

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