Por Roberto Pereira D'Araujo - Valor 20/07
O tema da desindustrialização tomou conta dos debates. O "custo Brasil", com sua fartura de impostos, clama pela sempre adiada reforma tributária, mas, agora, há um novo elemento nessa conta: tarifas de energia elétrica. Nunca dantes nesse país hidroelétrico o quilowatt-hora (kWh) ficou tão caro. Alguma coisa está muito errada, pois, afinal, ele vem principalmente de energia solar e gravidade.
A Agência Internacional de Energia (AIE) registra que o Brasil tem a quarta tarifa industrial do planeta. Como mostra o estudo "Quanto Custa a Energia Elétrica no Brasil e no Mundo para o Setor Industrial" da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), comparado aos Brics, o país tem uma tarifa 134% maior do que a média da China, Índia e Rússia. Em relação aos nossos vizinhos latinos, somos 67% mais caros. Se o confronto for feito com sistemas semelhantes, tais como os de algumas províncias canadenses e alguns estados americanos1, os dados são inacreditáveis. Um carioca paga o dobro de um morador da capital canadense Ottawa e o triplo de um cidadão de Montreal ou de Washington! Um habitante enquadrado como "baixa renda" do Maranhão paga o mesmo que um morador de Nova York!
A denúncia fácil é a carga tributária, mas, no setor residencial, a Dinamarca (55%), a Noruega (33%), Áustria (28%), Itália (29%), Finlândia (30%), França (30%), Alemanha (44%)2 são exemplos de que o Brasil não é o único a taxar o kWh. Outro acusado é o câmbio, mas, para termos uma tarifa semelhante à do Canadá, país de matriz semelhante à nossa, só se o dólar valesse R$ 4,50!
Pode-se culpar o custo de capital, mas, no setor elétrico, o BNDES tem oferecido crédito subsidiado para 80% dos investimentos. Portanto, apesar da decisão de reduzir a carga tributária sobre a energia e as alterações do câmbio, é preciso examinar outras causas, além destas.
Coisas estranhas aconteceram desde a adoção do modelo mercantil. Descontratação de hidráulicas baratas para contratação de térmicas caras, aumentos de mais de 30% para as distribuidoras compensando o racionamento, parcelas da conta de luz indexadas ao IGP-M, criação de energia "de reserva", apesar de termos uma energia "assegurada", custos fixos nas contas das distribuidoras majorados, uso de geração térmica não prevista e um crescimento explosivo do mercado livre. Ali, um excêntrico sistema de preços impede saber quem vende, por quanto e quem compra, pois tudo é "estratégico". Mas, não há mágica. Se alguns pagam menos, outros pagam mais. Fechando a bizarra lista, uma proliferação de encargos, ironicamente criados após a reforma mercantil do setor.
Poderia ser pior? Bem, desde 2003, as empresas geradoras federais foram usadas para conter a explosão tarifária, iniciada em 1995. Com a retração da demanda após 20013, a descontratação compulsória das empresas pôs energia quase de graça no mercado. Obrigadas a gerar pela lógica operativa, grande quantidade de energia foi liquidada por até R$ 4/mWh (megawatt) no spot brasileiro. Onde foi parar a energia a esse preço? Certamente não conteve a explosão tarifária. Além disso, em 2004, "aliviando" a descontratação, as estatais se viram obrigadas a um leilão com entrega a preço fixo por oito anos. Uma "liquidação de longo prazo", também inédita no mundo. Como não se conseguiu vender tudo, até 2006, sobras eram "liquidadas" por preços inacreditavelmente baixos no mercado livre.
Portanto, poderia ser muito pior. Como a tarifa continua subindo, com o fim das concessões em 2015, as estatais serão novamente convocadas para conter o apetite tarifário do modelo. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), afoita com a licitação das usinas, prometeu reduções da ordem de 30%, dizendo que o consumidor "já pagou" por elas! Ora, supondo que os novos donos, altruisticamente, entregassem energia de graça, nem assim se conseguiria tal redução. São 22% do parque, que, em média, é responsável por 80% da geração total. Como a energia adquirida representa 40% da conta de luz, basta multiplicar os percentuais para ver que a redução máxima não chegaria a 7%.
O que é bizarro é que, desde 2003, não existe um kWh sendo gerado pelo regime de serviço público ou "pelo custo". Hoje, tudo é mercado.
O governo não tem como reduzir muito os impostos, já que a questão fiscal é prioritária. Assim, mesmo com a renovação das concessões, as vítimas serão, mais uma vez, as estatais, pois sofrerão redução de rentabilidade. Com a decepção do resultado, vamos ter que examinar porque, apesar de ter uma configuração totalmente singular no planeta, o país mergulhou numa reforma no seu setor elétrico à imagem e semelhança de sistemas de base térmica, tendo que adotar uma complexa adaptação.
O modelo mercantil tem custos. Theo MacGregor (Electricity Restructuring in Britain: Not a model to follow - Spectrum - IEEE May 2001) mostra que a Inglaterra, ícone do modelo mercantil, fazendo leilões reais de meia em meia hora, assumiu um custo extra de US 1,4 bilhões só para implantar a contabilização. A literatura especializada também registra avisos. Paul L. Joskow (Restructuring, Competition and Regulatory Reform in the U.S. Electricity Sector - The Journal of Economic Perspectives, Volume 11, Issue 3 1997, 119- 138) grande especialista em regulação, avalia que os modelos competitivos têm muita dificuldade em replicar as eficiências de sistemas com despacho centralizado e sinergia entre transmissão e geração, justamente o caso brasileiro.
Esse poderia ser o momento para uma boa reflexão sobre o nosso modelo elétrico.
1 www.hydro.mb.ca/regulatory_affairs/energy_rates/electricity/utility_rate_comp.shtml.
2 Electricity Information Prices and Taxes - IEA Statistics - 2012. Em geral, a taxa sobre a indústria é menor, mas a Alemanha surpreende com 29,4%, a Itália com 27,8% e a Noruega com 20%.
3 A demanda se contraiu em 15% após o racionamento.
Roberto Pereira D'Araujo é engenheiro eletricista (Master of Science, PUC-RJ), consultor, ex-membro do conselho de administração de Furnas (2003-2005).
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