Luís Eduardo Assis
Valor 20/07/2011
Faz parte do nosso imaginário a ideia de que o Banco Central (BC) deve se constituir em uma instância estritamente 'técnica', a ser mantida em uma campânula hermética, devidamente a salvo dos humores e odores da vida política brasileira. Ainda que contenha alguns grãos de verdade, essa visão caricata simplifica em demasia um debate complexo que adquire importância cada vez maior. Há tempos a teoria econômica abriga o debate sobre a conveniência de atribuir independência ao Banco Central. No atual quadro da economia brasileira, no entanto, que combina pressão inflacionária com virtual pleno emprego, não é preciso fervor conceitual para concluir que o BC tem, sim, papel relevante no controle da inflação.
O argumento central a favor da independência se baseia no viés inflacionário dos governos que, motivados por benefícios de curto prazo, preferem priorizar o crescimento e o combate ao desemprego, mesmo que temporários, em detrimento da estabilidade dos preços, dando margem ao surgimento de ciclos políticos, ritmados pelo calendário eleitoral. Isso porque os eleitores definem suas escolhas tendo como referência a sensação de bem- estar no período imediatamente anterior às eleições, o que induz o governo a afrouxar a política monetária em anos de eleição, ainda que o ajuste mais adiante seja penoso.
Essa situação se ajusta muito bem ao conceito de escolhas intertemporais, tema de crescente interesse na literatura econômica, que oferece um arcabouço teórico apropriado para a situação vivemos hoje. Escolhas intertemporais representam a decisão entre um benefício no presente em troca de uma penalidade, certa ou provável, no futuro.
O governo afrouxa a política monetária em anos de eleição, ainda que o ajuste mais adiante seja penoso
Isso se aplica à escolha entre usar drogas ou não, fumar ou não fumar, entre fazer regime ou comer um doce, entre aplicar num fundo de pensão ou trocar de carro. Regra geral, a escolha dependerá de como o agente descontará o futuro, isto é, de que forma atribuirá valor subjetivo ao evento negativo que se seguirá. É apenas natural que os governos priorizem o curto prazo em anos de eleição, já que tudo ocorre como se a única prioridade fosse a vitória nas urnas - o que, equivale a dizer que os problemas no futuro, por exemplo uma inflação mais alta, são descontados a uma taxa muito alta e assim tem pouco valor no presente.
Vale perceber que esse tipo de escolha não é atribuição exclusiva de políticos caquéticos de cabelo acaju. É improvável, por exemplo, que um CEO invista pesadamente em melhorias que trarão resultados apenas num futuro remoto, supostamente após o término de sua gestão.
A ruptura com esse padrão de comportamento que privilegia o curto prazo não pode depender de uma improvável mudança espontânea nas preferências de eleitores e candidatos. Melhor prover um rearranjo institucional que dirima conflitos de interesses e estimule uma visão mais cuidadosa do futuro. O primeiro passo, contudo, é institucionalizar formalmente o princípio de que a estabilidade de preços é um bem público cuja ausência afeta principalmente os mais pobres. Não é demais lembrar que uma inflação baixa atende aos interesses dos menos privilegiados, não dos poderosos.
Para os partidos de esquerda que estão no governo não deveria ser difícil admitir que a bandeira do combate à inflação é progressista, não conservadora. Também é de todo conveniente formalizar que a missão na terra do banco central é unicamente a de combater a inflação, usando os instrumentos a seu alcance.
A tendência a ciclos políticos seria, por sua vez, mitigados com a atribuição de mandatos à diretoria do Banco Central por períodos não coincidentes com as eleições presidenciais. Completa o rearranjo a definição clara de penalidades a serem aplicadas em caso de não cumprimento da meta definida pelo Poder Executivo, assim como a periódica prestação de contas por parte do presidente do BC ao Senado. Isso diminuirá a possibilidade de que o banco seja 'capturado' pelos interesses privados do mercado financeiro e também tornará mais difícil que a autoridade monetária jogue a favor dos interesses eleitorais de um governo de sua preferência.
Tudo ficará mais fácil e menos doloroso se o governo se engajar em um esforço sincero pela desindexação da economia, ampliando o prazo mínimo para reajustes de preços e salários e tornando as Letras Financeiras do Tesouro (LFTs, assim como seus clones, os fundos DI) objetos de colecionadores disponíveis apenas em feiras de artesanato. Tudo ficará muito difícil, senão impossível, sem um rigoroso e verossímil programa de contenção das despesas públicas, em que pesem todas as dificuldades conhecidas.
Não há arranjo institucional que possa dar ao BC forças para, isoladamente, se contrapor a uma política fiscal expansionista sem provocar fricção de interesses que mais se assemelham a um exercício de autoflagelação. Sem unidade de propósitos, não é possível perseguir uma inflação mais baixa.
Luís Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP.
Valor 20/07/2011
Faz parte do nosso imaginário a ideia de que o Banco Central (BC) deve se constituir em uma instância estritamente 'técnica', a ser mantida em uma campânula hermética, devidamente a salvo dos humores e odores da vida política brasileira. Ainda que contenha alguns grãos de verdade, essa visão caricata simplifica em demasia um debate complexo que adquire importância cada vez maior. Há tempos a teoria econômica abriga o debate sobre a conveniência de atribuir independência ao Banco Central. No atual quadro da economia brasileira, no entanto, que combina pressão inflacionária com virtual pleno emprego, não é preciso fervor conceitual para concluir que o BC tem, sim, papel relevante no controle da inflação.
O argumento central a favor da independência se baseia no viés inflacionário dos governos que, motivados por benefícios de curto prazo, preferem priorizar o crescimento e o combate ao desemprego, mesmo que temporários, em detrimento da estabilidade dos preços, dando margem ao surgimento de ciclos políticos, ritmados pelo calendário eleitoral. Isso porque os eleitores definem suas escolhas tendo como referência a sensação de bem- estar no período imediatamente anterior às eleições, o que induz o governo a afrouxar a política monetária em anos de eleição, ainda que o ajuste mais adiante seja penoso.
Essa situação se ajusta muito bem ao conceito de escolhas intertemporais, tema de crescente interesse na literatura econômica, que oferece um arcabouço teórico apropriado para a situação vivemos hoje. Escolhas intertemporais representam a decisão entre um benefício no presente em troca de uma penalidade, certa ou provável, no futuro.
O governo afrouxa a política monetária em anos de eleição, ainda que o ajuste mais adiante seja penoso
Isso se aplica à escolha entre usar drogas ou não, fumar ou não fumar, entre fazer regime ou comer um doce, entre aplicar num fundo de pensão ou trocar de carro. Regra geral, a escolha dependerá de como o agente descontará o futuro, isto é, de que forma atribuirá valor subjetivo ao evento negativo que se seguirá. É apenas natural que os governos priorizem o curto prazo em anos de eleição, já que tudo ocorre como se a única prioridade fosse a vitória nas urnas - o que, equivale a dizer que os problemas no futuro, por exemplo uma inflação mais alta, são descontados a uma taxa muito alta e assim tem pouco valor no presente.
Vale perceber que esse tipo de escolha não é atribuição exclusiva de políticos caquéticos de cabelo acaju. É improvável, por exemplo, que um CEO invista pesadamente em melhorias que trarão resultados apenas num futuro remoto, supostamente após o término de sua gestão.
A ruptura com esse padrão de comportamento que privilegia o curto prazo não pode depender de uma improvável mudança espontânea nas preferências de eleitores e candidatos. Melhor prover um rearranjo institucional que dirima conflitos de interesses e estimule uma visão mais cuidadosa do futuro. O primeiro passo, contudo, é institucionalizar formalmente o princípio de que a estabilidade de preços é um bem público cuja ausência afeta principalmente os mais pobres. Não é demais lembrar que uma inflação baixa atende aos interesses dos menos privilegiados, não dos poderosos.
Para os partidos de esquerda que estão no governo não deveria ser difícil admitir que a bandeira do combate à inflação é progressista, não conservadora. Também é de todo conveniente formalizar que a missão na terra do banco central é unicamente a de combater a inflação, usando os instrumentos a seu alcance.
A tendência a ciclos políticos seria, por sua vez, mitigados com a atribuição de mandatos à diretoria do Banco Central por períodos não coincidentes com as eleições presidenciais. Completa o rearranjo a definição clara de penalidades a serem aplicadas em caso de não cumprimento da meta definida pelo Poder Executivo, assim como a periódica prestação de contas por parte do presidente do BC ao Senado. Isso diminuirá a possibilidade de que o banco seja 'capturado' pelos interesses privados do mercado financeiro e também tornará mais difícil que a autoridade monetária jogue a favor dos interesses eleitorais de um governo de sua preferência.
Tudo ficará mais fácil e menos doloroso se o governo se engajar em um esforço sincero pela desindexação da economia, ampliando o prazo mínimo para reajustes de preços e salários e tornando as Letras Financeiras do Tesouro (LFTs, assim como seus clones, os fundos DI) objetos de colecionadores disponíveis apenas em feiras de artesanato. Tudo ficará muito difícil, senão impossível, sem um rigoroso e verossímil programa de contenção das despesas públicas, em que pesem todas as dificuldades conhecidas.
Não há arranjo institucional que possa dar ao BC forças para, isoladamente, se contrapor a uma política fiscal expansionista sem provocar fricção de interesses que mais se assemelham a um exercício de autoflagelação. Sem unidade de propósitos, não é possível perseguir uma inflação mais baixa.
Luís Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP.
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