quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O que o dinheiro pode comprar



Por Raghuram Rajan - Valor 08/08

Em recente e interessante livro, "What Money Can't Buy: The Moral Limits of the Market" (o que o dinheiro não pode comprar: os limites morais do mercado), Michael Sandel, filósofo em Harvard cita a gama de coisas que o dinheiro pode comprar nas sociedades modernas e tenta delicadamente atiçar nossa indignação diante do crescente predomínio do mercado. Terá ele razão em dizer que deveríamos ficar alarmados?

Embora Sandel se preocupe com a natureza corrupta de algumas transações monetizadas (será que as crianças desenvolvem um amor da leitura se forem subornadas para que leiam livros?), ele também se diz preocupado com o acesso desigual ao dinheiro, que torna intercâmbios monetários desiguais. Mais amplamente, ele crê que a expansão do intercâmbio monetário anônimo corrói a coesão social e defende a redução do papel do dinheiro na sociedade.

As preocupações de Sandel não são inteiramente novas, mas seus exemplos merecem reflexão. Nos EUA, algumas empresas pagam desempregados para que fiquem em filas para conseguir ingressos gratuitos para audiências públicas no Congresso. Elas, então, vendem os ingressos para lobistas e advogados de companhias com interesses nas audiências, mas demasiado ocupadas para esperar nas filas. Sem dúvida, as audiências públicas são elemento importante da democracia participativa. Todos os cidadãos devem ter igual acesso. Então vender acesso parece uma perversão dos princípios democráticos.

O problema fundamental, porém, é de escassez. Nós não podemos acomodar numa sala todos que possam ter interesse em uma audiência particularmente importante. Por isso, temos de "vender" entradas. Na disputa de lugares, podemos permitir que as pessoas usem seu tempo na fila para disputar lugares ou podemos permitir que as pessoas usem seu dinheiro participando de leilões. O primeiro (sistema) parece mais justo, porque todos os cidadãos aparentemente começam em igualdade de condições. Mas terá uma mãe solteira que trabalhe numa função exigente e três filhos pequenos igual tempo livre que um estudante em férias de verão? E seria a sociedade beneficiada se ela, conselheira jurídica de uma grande empresa, passasse boa parte de seu tempo na fila?

Dizer se é melhor alocar entradas em troca de tempo ou de dinheiro, portanto, depende do que esperamos alcançar. Se queremos melhorar a eficiência produtiva da sociedade, a disposição das pessoas de pagar com dinheiro representa um indicador razoável de quanto ganharão se tiverem acesso a audiências. O leilão de lugares em troca de dinheiro faz sentido - um advogado contribui mais para a sociedade mediante a preparação de argumentos do que ficando numa fila.

Mas, se for importante que cidadãos jovens e impressionáveis vejam como funciona sua democracia, e que construamos solidariedade social fazendo com que executivos fiquem em filas junto com adolescentes desempregados, faz sentido obrigar as pessoas a disputar os assentos usando seu tempo e tornar as entradas intransferíveis. Mas se considerarmos que os dois objetivos - eficiência e solidariedade - devam desempenhar algum papel, talvez devêssemos fazer vista grossa à contratação de desempregados para ficarem na fila, em vez de advogados atarefados, desde que não monopolizem todos os lugares.

E quanto à venda de órgãos humanos, outro exemplo com que Sandel se preocupa? Algo parece errado quando um pulmão ou um rim é vendido em troca de dinheiro. Apesar disso, nós comemoramos a bondade de um estranho que doa um rim para uma criança. Portanto, claramente, não é a transferência do órgão que nos deixa indignados - não acreditamos que o doador esteja mal informado sobre o valor de um rim ou esteja sendo enganado para que dele se separe. Também, creio, não temos reparos aos escrúpulos da pessoa que vende o órgão - afinal, ela está se alienando de forma irreversível de algo que lhe é precioso por um preço que poucos de nós aceitariam.

Creio que parte de nosso desconforto tem a ver com as circunstâncias em que a transação ocorre. Em que tipo de sociedade vivemos, se as pessoas têm de vender seus órgãos para sobreviver?

Mas, embora a proibição de venda de órgãos possa nos fazer sentir melhor, será que isso realmente beneficia mais a sociedade? Possivelmente, se fizer a sociedade trabalhar para garantir que as pessoas nunca sejam colocadas em circunstâncias que as façam contemplar essa possibilidade. E provavelmente não, se permitir que a sociedade ignore o problema fundamental, seja levando esse comércio para um mercado negro ou forçando essas pessoas a recorrer a remédios piores.

Então, de novo, parte de nosso mal-estar provavelmente tem a ver com o que percebemos como uma troca desigual. O vendedor está cedendo parte de seu corpo numa transação irreversível. O comprador está dando apenas dinheiro - talvez ganho num golpe de sorte em negócios com ações ou num emprego superbem remunerado. Se esse dinheiro tivesse sido ganho com a venda de parte de um pulmão ou representasse uma poupança dolorosamente acumulada durante anos de trabalho árduo, poderíamos considerar a troca mais igualitária.

Claro, a virtude central do dinheiro é, justamente, seu anonimato. Nada preciso saber sobre a nota de dólar que recebo, para poder usá-la. Mas, uma vez que o anonimato do dinheiro obscurece sua proveniência, ele pode ser socialmente menos aceitável como meio de pagamento por alguns objetos.

Nos dois exemplos - entradas para o Congresso e vendas de órgãos - Sandel sugere reduzir o papel do dinheiro. Mas o dinheiro tem muitas virtudes no sentido de facilitar transações - daí seu uso onipresente. Assim, talvez a mensagem mais importante é que a tolerância da sociedade à monetização é proporcional à legitimidade atribuída à distribuição do dinheiro.

Quanto mais gente acreditar que são as pessoas mais trabalhadoras as que têm dinheiro, mais ficarão dispostas a tolerar as transações com dinheiro (embora algumas transações permaneçam tabu). Mas se as pessoas acreditam que os endinheirados são principalmente as pessoas bem conectadas ou vigaristas, sua tolerância a transações monetárias diminui.

Em vez de focar a proibição de transações monetárias, talvez uma lição mais importante transmitida nos exemplos de Sandel é que deveríamos trabalhar continuamente para melhorar a legitimidade percebida da distribuição de dinheiro. (Tradução de Sergio Blum)



Raghuram Rajan ex- economista chefe do FMI, é professor de finanças na Booth School of Business, da Universidade de Chicago e autor de Fault Lines: How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy (linhas de fraturas: como falhas ocultas ainda ameaçam a economia mundial. Copyright: Project Syndicate, 2012.



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