terça-feira, 28 de junho de 2011

A DIVINA COINCIDÊNCIA




Por Marcio Holland - Valor 28/06/2011




Em fevereiro de 2010, Olivier Blanchard, atual economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), juntamente com dois colegas, publicou um texto (1) discutindo o que poderia parecer normal na política macroeconômica após a crise financeira internacional de 2008. Na verdade, por sua honestidade acadêmica, associada ao pragmatismo científico, o economista tratava de discutir o que estaria errado nas orientações de política econômica antes da crise e o que poderia continuar valendo a partir de então. Não somente Blanchard, mas outros economistas também engrossaram o coro daqueles que acreditam que algumas ideias aparentemente consensuais em matéria de política monetária deveriam ser revistas.


Primeiro, deveria ser revista a ideia quase obcecada de inflação estável e baixa como mandato primário, senão exclusivo, do banco central, em nome de um hiato do produto (2) igual a zero. Essa convergência entre o Produto Interno Bruto (PIB) de equilíbrio e o produto observado, também conhecida como "divina coincidência", é como uma bússola para a rota da inflação e, por isso, artifício amplamente usado para calibrar a taxa de juros.


Claro que preços estáveis cumprem um papel altamente relevante para a atividade econômica; inflação relativamente baixa e estável se tornou um patrimônio importante de toda a sociedade brasileira. Mas, crer que banqueiros centrais foquem apenas na inflação é um exagero retórico típico de modelos exclusivamente teóricos.


Para Adrian e Shin (2008) (3), taxas de juros de curto prazo são determinantes do custo de alavancagem e importantes na definição de intermediação financeira nos balanços de bancos e empresas. Assim, ciclos de liquidez e graus de alavancagem podem ser resultados de políticas monetárias. Noutras palavras, longos períodos de taxas de juros muito baixas podem aumentar a probabilidade de ocorrência de crises financeiras, como a de 2008. Por isso, esses autores recomendam que políticas monetárias e estabilidade financeira devam andar juntas.



"Em ambiente de baixa inflação, o juro deve também ficar baixo, o que limita a atuação da política monetária"



Michael Woodford, professor da Universidade de Colúmbia, em Nova York, gasta 800 páginas do seu livro-texto de macroeconomia ("Interest and Prices") amplamente usado e destrinchado nas escolas de economia no Brasil e no mundo sem qualquer referência aos constrangimentos que podem advir do "lado financeiro". Nesta linha, resolvido o problema da "divina coincidência", ou seja, mantido o hiato do produto igual a zero, o banco central se tornaria crível e com elevada reputação. Afinal, é esperado que o produto observado flutue - com menor variância possível - em torno do produto potencial, uma variável não observada e de difícil mensuração. Em 2010, Woodford reconheceu a importância da intermediação financeira na política monetária4.


Desnecessário lembrar que há várias técnicas para se calcular o produto potencial. Afora a importância desta agenda de pesquisa, há uma série de restrições associadas ao seu cálculo, especialmente para seu uso contemporâneo. Importantes economistas, como Roberto Hall e Gregory Mankiw, já alertaram que bancos centrais deveriam suspeitar mais sobre o uso destas métricas. Ainda assim, é amplo e generalizado o uso de argumento de desequilíbrio entre oferta e demanda agregada para justificar alterações na taxa real de juros.


O segundo princípio econômico que deveria ser revisto está associado com a política monetária sob baixas taxas de inflação. Bem sabido, a inflação mundial, especialmente na OCDE, caiu drasticamente para próximo a 2% ao ano, já a partir dos anos 1990; ao mesmo tempo, as volatilidades da inflação e do produto também caíram dramaticamente. Neste contexto, a relação entre inflação passada e inflação corrente - o componente inflacionário conhecido como "inércia"- se enfraqueceu. Mesmo com algum atraso, economias historicamente inflacionárias passaram também a experimentar taxas de inflação controladas.


A partir da década de 1990, economias mundo afora se tornam bem menos inflacionárias. Abriu-se um amplo debate sobre as causas de tal sucesso mundial, até porque os preços do petróleo, bem como o de muitas outras commodities, seguiam em alta.

Vale destacar a euforia dos economistas no que ficou conhecido como a "grande moderação". Para muitos, incluindo ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, problemas como flutuações cíclicas já estavam razoavelmente bem conduzidos pela teoria econômica. A partir de então, o mundo deveria experimentar períodos mais longos e estáveis de crescimento e recessões mais curtas e menos severas.


Voltando à queda da inflação e da variabilidade do produto, como o verificado a partir dos anos 1990, pode-se dizer que as causas para tal fenômeno são diversas. Parte das explicações pode repousar sobre o chamado "Efeito-China", quando os mecanismos de propagação do choque não são os mesmos, sendo que contemporaneamente o trabalho se torna mais tolerante a maiores achatamentos nos salários reais; assim como com a globalização produtiva que intensificou a competição internacional e reduziu substancialmente os custos de produção, provavelmente com as influências dos baixos custos de trabalho advindos da China. É certo que boas práticas monetárias devem também ter levado a que as expectativas de inflação, componente importante na dinâmica da inflação, ficassem muito mais ancoradas.



"O Brasil tem exibido a maior taxa, pelo menos desde 94, independente da política macroeconômica"


O problema, se é que assim devemos dizer, é que em ambiente de baixa inflação as taxas de juros devem também permanecer excessivamente baixas. Isso pode se traduzir em limitações no uso de política monetária em situações adversas, como na crise financeira de 2008, ou em reversões cíclicas mais fortes. O convívio com longos períodos de baixas taxas de inflação com baixas taxas reais de juros pode, também, pelo canal apontado por Adrian e Shin, por exemplo, estimular a formação de bolhas financeiras e seu subsequente estouro.


Em hipótese alguma, não se pretende aqui defender regimes de altas taxas de inflação; mas, ficou evidente, pelas experiências recentes, que não se pode também desejar e perseguir níveis muito baixos de inflação, por um longo período de tempo, mantendo as taxas reais de juros persistentemente baixas.


Terceiro, o pilar "um instrumento, uma meta" da regra ótima de política monetária se desmontou, definitivamente. Afinal, até a crise financeira de 2008, os bancos centrais triunfaram sobre um mundo simplificado em um instrumento - taxa de juros de curto prazo -, e em uma meta - estabilidade de preços. E depois da crise? Quais instrumentos, quais metas? O que parece normal a partir de então?


A teoria da política monetária precisa dar respostas reais a problemas reais. Como tal, regulações micro e macroprudenciais financeiras aparecem como complemento importante na política monetária. Seu uso combinado com taxas de juros leva aos mesmos resultados sobre a inflação desejada que o uso exclusivo da taxa de juros, mas com imensas vantagens. Primeiro, a taxa de sacrifício - medida pela queda no produto ou aumento na taxa de desemprego - é bem menor quando se deseja reduzir taxas de inflação. Segundo, esse novo arranjo de política monetária aumenta a potência da própria taxa de juros com instrumento de controle de preços. Por fim, ao reduzir o grau de alavancagem e volatilidades nos mercados financeiros com mais estabilidade nas operações de crédito, evita a formação de bolhas, especialmente em mercados financeiros e em setores intensivos em crédito, como no mercado imobiliário, entre outros.


Assim, para banco central que se preocupa com estabilidade do sistema financeiro doméstico, o uso complementar de medidas micro e macroprudenciais é mais apropriado do que a aplicação exclusiva de Regra de Taylor padrão, a regra que diz que pressões inflacionárias devem ser respondidas com altas nas taxas reais de juros de curto prazo.


Vale a ressalva de que mesmo os melhores modelos e indicadores antecedentes de bolhas em preços de ativos são imperfeitos, o que dificulta, em muito, a formalização de uma nova regra monetária expandida para contemplar não somente a taxa de juros, o produto potencial, e a inflação, mas também os preços de ativos. Neste caso, talvez, valesse mesmo a máxima de Alan Blinder, ex-vice-presidente Federal Reserve Board (Fed, banco central americano), de que política monetária terá sempre elementos de arte assim como de ciência.


Assim, ainda em fase de "recolher os cacos da teoria econômica" deixados à deriva após a tempestade financeira, os economistas parecem mais céticos quanto ao que parecia convencional, simples e prático. E muito céticos quanto ao que causou a fase da "grande moderação". De qualquer forma, a "divina coincidência" não parece mais tão atrativa aos olhos acurados de autoridades econômicas e acadêmicos. Registra-se, claro, a recorrente controvérsia entre economistas, e mesmo alguns respeitáveis da classe que ainda acreditam que o desequilíbrio entre oferta e demanda agregada justifica com exclusividade decisões de banqueiros centrais.




Vão-se as ideias, ficam seus seguidores.


Como esta nova abordagem pode ser apropriada para a análise da economia brasileira?
Desnecessário lembrar que a boa qualidade de políticas econômicas e sociais colocou o país de volta ao trilho do desenvolvimento econômico. Recolocou, na agenda, questões ligadas ao crescimento de longo prazo, com responsabilidade fiscal, estabilidade de preços e inclusão social. Em menos de uma década, o país empreendeu um novo modelo de nação.


Mas, é claro que um importante problema macroeconômico ainda persiste, a saber, a elevada taxa real de juros de curto prazo. O Brasil tem exibido a maior taxa de juros, pelo menos desde 1994; ou seja, há quase duas décadas, independente do arranjo de política macroeconômica ou das transformações ocorridas, a taxa real de juros de curto prazo, mesmo que esteja no caminho da convergência aos níveis internacionais, ainda é persistentemente elevada. Depois do grande desafio de superar a inflação inercial e o quadro de quase hiperinflação, muito provavelmente esse se constitui em novo desafio de governo.


Em um olhar rápido pela nossa história recente, entre 1994 e 1998, a justificativa para as altas taxas reais de juros no Brasil era a adoção do regime de câmbio fixo. O fato é que raramente se viu na história monetária internacional taxas de juros tão elevadas quanto aquelas praticadas na fase de regimes de câmbio fixo aqui no Brasil. Apesar das desvalorizações cambiais controladas dentro de uma banda móvel de flutuação, as taxas reais de juros praticadas pelo Banco Central do Brasil eram superiores às da Argentina, por exemplo, que estava sob um rígido e mal desenhado regime de comitê de moeda.


Entre 1999 e 2002, as explicações passavam pelo elevado prêmio de risco associado à dívida pública, pela sua denominação - em moeda estrangeira e pós-fixada - e maturidade - curto prazista. Naquele momento, o Brasil era ranqueado com "grau de especulação" pelas agências de classificação de risco. Para muitos economistas em organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, naquele momento o Brasil era tido como "serial defaulter" (caloteiro em série) e "debt intolerant" (intolerante à dívida, como os intolerantes à lactose), ou ainda "severamente endividado". Tantos adjetivos não poderiam justificar taxas de juros menores do que aquelas praticadas.


Fato curioso é que mesmo países "especulativos", com risco país similares e tidos como "caloteiros", tinham taxas de juros menores do que as praticadas no Brasil.
A partir de 2003, a taxa real de juros brasileira começou a manifestar uma clara tendência de convergência para níveis internacionais. Mesmo em queda, era e continua sendo ainda a maior taxa de juros mundial. Neste momento, os riscos de crédito e soberano despencavam e com eles a taxa real de juros declinava, mas ainda se mantinha a mais elevada do mundo.


Os economistas trataram de sacar um conjunto de novas explicações. Primeiro, apareceu a explicação associada com a "incerteza jurisdicional" - a virtual má qualidade das instituições - associada com restrições aos fluxos de capital. Mesmo a liberalização da conta de capital verificada na década de 1990 não teria sido suficiente para aumentar a conversibilidade financeira do país. Não demorou muito para se observar que um grande número de países com riscos institucionais tão elevados quanto ao nosso e moeda não tão conversíveis, apresentavam taxas de juros relativamente menores que a brasileira.


Mais recentemente, o problema se voltou para o baixo nível de poupança doméstica. A inovação está no fato de que a baixa poupança nacional é explicada pela generosidade do Estado de Bem- Estar Social, consolidado na Constituição Federal e em políticas previdenciárias e sociais. Como prescrição, profundas reformas políticas, e alterações nos interesses sociais e nos incentivos, deveriam ser levadas a cabo para experimentarmos baixas taxas reais de juros. É como se o modelo teórico concluísse que toda a realidade brasileira está errada, não o modelo.


Mesmo modelos econômicos mais completos não conseguiam explicar as taxas reais de juros praticadas no país. De qualquer forma, gradualmente a taxa de juros convergia para níveis praticados nas principais economias mundiais. A crise financeira de 2008 interrompeu temporariamente este processo e, com ela, vieram incertezas diversas, seja sobre o tempo e a forma como viriam as recuperações econômicas, seja sobre como o Brasil sairia deste processo. Adicionam-se, ainda, as dúvidas sobre como as políticas macroeconômicas deveria ser conduzidas, como discutido anteriormente.


Para o Brasil de hoje, observando o debate nacional, temos duas alternativas. O caminho convencional, seguindo o receituário tradicional de política econômica como se nada tivesse mudado. Manter orientações de política conforme os modelos teóricos de sempre, sob regras supostamente ótimas de política monetária, e crença na "divina coincidência".


Ou pensar a realidade a partir de mudanças significativas em curso nas economias mundiais, assim como as transformações já verificadas no mercado doméstico, e construir uma agenda de crescimento sustentado na expansão do investimento, na melhoria da qualidade de políticas públicas e da educação, no adensamento de cadeias produtivas com promoção da competitividade via inovação tecnológica, entre outros. Incentivos à ampliação e alongamento da poupança de famílias e governo, promoção do mercado de crédito privado de longo prazo, e um sistema de formação de preços e salários mais flexíveis devem fazer parte desta agenda.


O fato observado e surpreendente foi que assim que a agenda do crescimento econômico, com responsabilidade fiscal, estabilidade de preços e inclusão social, foi colocada na mesa, o Brasil começou a se transformar. Aprendemos que o crescimento econômico transforma um país, muda o mercado doméstico de bens e de trabalho; consolida importantes setores produtivos; e desenvolve um mercado de crédito amplo e sólido; muda a confiança da sociedade em investir e produzir. Com o crescimento, pode-se observar uma profunda transformação na percepção sobre o país por parte de investidores estrangeiros, organismos multilaterais e agências de classificação de risco. O Brasil tem provado que é possível manter a inflação sob criterioso controle e pautar temas de crescimento econômico de longo prazo. Manter essa agenda parece o caminho mais seguro e natural em um mundo de incertezas e modelos econômicos em reconstrução.


*As opiniões contidas neste artigo não representam a visão do Ministério da Fazenda.




Gostaria de agradecer os comentários recebidos de Júlio Alexandre, Cleomar Gomes e Lígia Ourives.


1 Blanchard, O. et all. 2010. Rethinking Macroeconomic Policy. IMF Position Note, 12 de Fevereiro de 2010. http://www.imf.org/
2 Por hiato do produto entende-se a diferença entre o produto (ou PIB, produto interno bruto) de equilíbrio e o produto observado, que de fato acontece. Quando o hiato do produto se iguala a zero supostamente a inflação se encontra em nível desejável.
3 Adrian, T. e Shin, H. S. 2008. Financial Intermediaries, Financial Stability, and Monetary Policy. Federal Reserve Bank of Kansas City Simposium at Jackson Hole, agosto de 2008.
http://www.kansascityfed.org/publicat/sympos/2008/shin.08.06.08.pdf
4 Woodford, M. 2010. Financial Intermediation and Macroeconomic Analysis.
www.columbia.edu/~mw2230/JEP%20draft%203.pdf


Márcio Holland é secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EESP) e pesquisador CNPq.

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