sexta-feira, 5 de outubro de 2012
A retomada das operações
Por Carlos Eduardo Gonçalves - Valor 05/10
Eles voltaram. Na Europa, o Banco Central Europeu (BCE) se predispôs a comprar quantidades ilimitadas de títulos públicos de curta maturidade de países que preencherem um formulário de pedido de socorro ao Fundo Europeu e seguirem suas recomendações. A justificativa oficial é que a medida objetiva destravar o canal de transmissão da política monetária. Jogo de cena: o objetivo real é tentar impedir que a dinâmica do endividamento na Espanha e Itália leve a uma implosão da zona do Euro.
Já nos EUA, o Federal Reserve (Fed, banco central americano) deu um passo radical ao condicionar o fim de sua nova operação de compras de MBS (US$ 40 bilhões por mês) a uma melhora expressiva nas condições do mercado de trabalho. E inovou ao enfatizar que mesmo após a economia voltar a seu patamar de neutralidade - hiato do produto nulo para positivo -, a política monetária seguirá francamente expansionista.
No Japão, o comunicado do Banco do Japão (BoJ) não teve inovação de método, mas a quantidade anunciada surpreendeu os mercados e, segundo a imprensa internacional, até o ministro da economia. Em suma, em face da fraqueza da economia mundial, que se acentuou nos últimos dois meses, os BCs resolveram agir. E, em boa medida antecipando essa nova tendência que vinha sendo sinalizada pelas autoridades há algumas semanas, os mercados promoveram pequenos rallies mundo afora.
Pergunta: vai funcionar? Essa enxurrada de moeda vai reavivar a economia mundial? Resposta: nos EUA, um pouco, mas apenas um pouco.
Comecemos pela Europa, onde creio que a euforia é realmente passageira (a piora nos spreads nos últimos dias já sinaliza essa efemeridade).
O OMT europeu (Outright Monetary Transactions segundo o BCE, Outrageous Monetary Transfers segundo o Bundesbank) tem uma falha de concepção muito clara no entendimento de vários analistas, este escriba incluso. Ele objetiva exterminar a dinâmica do equilíbrio ruim associado a um prêmio cobrado dos países em função do risco de ruptura, mas para isso pede em troca condicionalidades - entre elas, aperto fiscal adicional.
O problema com essa estratégia é duplo: 1) os países que mais precisam de redução de juros são justamente os menos aptos a atenderem demandas de consolidação fiscal extra e 2) supondo que eles atendam, a piora recessiva que se seguiria acabaria por deteriorar ainda mais a cruel dinâmica de endividamento que o plano tem por objetivo extirpar.
Mais ainda, suponhamos que a Espanha relute bater à porta do Fundo Europeu por motivos políticos e por julgar que mais aperto fiscal não faz sentido nem mesmo sob um prisma meramente econômico. O que o Mario Draghi fará? Ele intervém mesmo sim? A maioria dos analistas acha que a resposta é sim, mas estão esses mesmos analistas contabilizando no lado do "passivo" a fúria resultante lá no quartel do Bundesbank, que já disse que mesmo com condicionalidades o OMT é sinônimo de monetização de dívida alheia?
O OMT acentuou a percepção de boa parte do eleitorado alemão de que eles estão pagando uma conta muito cara para sustentar o projeto de moeda única na Europa. Isso no médio prazo tem um preço alto, no meu entender. Paradoxalmente, o OMT pode até mesmo aumentar a chance de uma catástrofe monetária na Europa ao acirrar os ânimos dentro da Alemanha.
A ação do Fed é outra coisa. Ilimitada e incondicional. Ou melhor, condicional a uma melhora expressiva do mercado de trabalho! Como resultado, as taxas das hipotecas já caíram, e mesmo que elas não tenham caído muito, é válido lembrar que esse juro incide sobre um estoque com prazo de 30 anos, ou seja, trata-se de quase uma perpetuidade. Vai ajudar sim a reavivar o mercado imobiliário que, aliás, já vinha mostrando claros sinais de firme recuperação nos últimos meses. Muito melhor isso do que repetir uma anódina compra de títulos públicos de longo prazo, que já pagam juros bem abaixo de 2%.
Mais importante ainda, no meu entender: o Fed fez questão de trabalhar intensamente o lado das expectativas, seguindo a sugestão prescrita pelo maior economista monetário acadêmico da atualidade, Michael Woodford, de Columbia. Por que é importante anunciar que a política monetária vai ficar frouxa mesmo após a recuperação? O ponto aqui é o seguinte: os agentes privados normalmente inferem, a partir da observação do padrão de comportamento do banco central, uma certa regra de reação ligando juros à inflação e à atividade. E em qualquer país institucionalmente sério essa regra contempla elevações da taxa de juros quando atividade e inflação se elevam acima de certo patamar.
Isso significa que as pessoas antecipam hoje que uma recuperação lá na frente ensejará alta de juros futura, e não alta da inflação. Isso, claro, mantém a expectativa de inflação ancorada, o que impede quedas adicionais do juro real ex-ante (dado que o limite inferior dos juros nominais já foi atingido). Em suma, o entendimento de que existe uma regra de reação torna a estratégia de derrubar os juros reais mais difícil. A saída, sugerida por Woodford e seguida à risca por Ben Bernanke, é comunicar de modo crível que a regra de reação mudou temporariamente, que o Fed vai sim aceitar maior inflação futura.
Para finalizar, uma palavra de cautela. O fato de o "quantitative easing" (QE) nos EUA ter sido muito mais bem desenhado que o OMT europeu não significa que a economia americana necessariamente deslanchará agora. O óbice-mor é outro, e responde pelo assombroso nome de "abismo fiscal".
Carlos Eduardo Gonçalves é consultor associado sênior da LCA e professor titular da FEA-USP
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