quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A história das dívidas públicas


Por Martin Wolf - Valor 10/10

Oque acontece se uma grande economia de alta renda, sobrecarregada por altos níveis de endividamento e com uma taxa de câmbio fixa e sobrevalorizada tentar reduzir as dívidas e reconquistar competitividade? A questão é relevante na atualidade porque esse é o desafio diante da Itália e Espanha. No entanto, como demonstra um capítulo no mais recente Panorama Econômico Mundial do Fundo Monetário Internacional (FMI), também há experiências relevantes na história: as do Reino Unido entre as duas grandes guerras mundiais.

A história prova que a interação entre as tentativas de "desvalorizações internas" e as dinâmicas das dívidas são potencialmente letais. Além disso, os apuros da Itália e Espanha são, sob muitos aspectos, piores do que os do Reino Unido que, no fim das contas pôde abandonar o padrão-ouro; sair da região do euro é bem mais complicado. E o Reino Unido tinha um banco central capaz de e disposto a reduzir as taxas de juros. O Banco Central Europeu (BCE) pode não estar disposto nem ter capacidade para fazer o mesmo com a Itália e Espanha.

O Reino Unido saiu da Primeira Guerra Mundial com uma dívida pública equivalente a 140% do Produto Interno Bruto (PIB) e com preços mais de duas vezes maiores do que antes da guerra. O governo resolveu voltar ao padrão-ouro pela paridade anterior à guerra, o que efetivou em 1925, e pagar a dívida pública, para preservar sua capacidade creditícia. Ali estava um país sob medida para o "Tea Party".

Para atingir seus objetivos, o Reino Unido apertou suas políticas monetária e fiscal. O superávit fiscal primário (sem contar o pagamento de juros) ficou perto de 7% do PIB ao longo dos anos 20. Isso, por sua vez, foi conseguido pelo "Machado de Geddes", como ficaram conhecidos os cortes determinados pela comissão presidida por Eric Geddes. A comissão recomendou reduzir os gastos públicos precisamente da forma indicada pelos atuais defensores da "austeridade expansionista". Paralelamente, o Banco da Inglaterra elevou as taxas de juros a 7% em 1920. O objetivo disso era respaldar a volta à paridade existente antes da guerra. A elevação, combinada com a consequente deflação, trouxe como resultado taxas de juros reais extraordinariamente altas. Essa, portanto, foi a forma como os tolos pretensamente virtuosos do "establishment" britânico receberam os pobres sobreviventes da terrível guerra.
No que resultou esse compromisso com a carestia fiscal e necrofilia monetária? Em 1938, a produção real mal estava acima do nível de 1928, após um crescimento médio de 0,5% por ano. Isso não se explicou apenas pela Depressão. A produção real em 1928 também estava abaixo da que se observava em 1918. As exportações estavam persistentemente baixas e o desemprego, persistentemente elevado. A alta desocupação foi o mecanismo que derrubou os salários reais e nominais. Os salários, contudo, nunca se tratam apenas um preço a mais. O objetivo era derrubar o trabalho organizado. Essas políticas resultaram em uma greve geral em 1926 e disseminaram um clima de insatisfação que se estendeu por décadas depois da Segunda Guerra Mundial.

Além de seus imensos custos sociais e econômicos, essas políticas fracassaram sob o ponto de vista de seus próprios termos. O país saiu do padrão-ouro de vez em 1931. Pior, o endividamento público não caiu. Em 1930, a dívida havia alcançado 170% do PIB e, em 1933, 190% do PIB (esses números dão outra perspectiva ao pânico com as porcentagens de hoje, bem menores). Na verdade, o Reino Unido voltou a exibir os níveis de endividamento anteriores à Primeira Guerra Mundial apenas em 1990. Por que o Reino Unido não teve sucesso em reduzir as dívidas em relação ao PIB? Resumidamente, o crescimento foi muito baixo e as taxas de juros, muito altas. Como resultado, mesmo um superávit fiscal primário enorme não conseguia restringir o quociente de endividamento.

A história é relevante para a região do euro de hoje. Para reconquistar competitividade rapidamente, em vez de ajustar-se a duras penas em dez anos ou mais, os salários precisam cair. Para isso, o desemprego precisa estar muito alto. No caso da Espanha, está. Mesmo com o desemprego em 25%, no entanto, os salários nominais subiram pouco menos do que os da Alemanha desde a crise. Ao mesmo tempo, o PIB real da Espanha está em queda. Os esforços para apertar a política fiscal certamente o reduzirão ainda mais.

Tudo isso ameaça colocar a Espanha em uma armadilha de endividamento, no caso, uma que ameaça tanto o setor privado como o público. A Itália, país com déficit fiscal menor, mas com dívidas públicas maiores, corre o risco de cair em uma armadilha parecida, se as taxas de juros continuarem altas e o PIB, debilitado. É por isso que o plano do Banco Central Europeu (BCE) para reduzir as taxas de juros que incidem sobre as dívidas públicas desses países é condição necessária para escapar do desastre de uma inadimplência fiscal simultânea a quebras bancárias.

O FMI avalia vários outros casos interessantes. A redução da dívida pública dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial é um deles. Outro é a experiência do Japão nos últimos 20 anos, que tem paralelos com o Reino Unido dos anos 20 e 30, particularmente, no que se refere à deflação. Outros casos são os da Bélgica na década de 80 e os do Canadá e Itália na de 90.

A conclusão mais importante é que a consolidação fiscal é impossível sem um ambiente monetário que a sustente, com taxas de juros reais ultrabaixas e uma economia aquecida. O Japão não teve sucesso com isso nos anos 90 e 2000, da mesma forma que o Reino Unido não teve nos 20 e 30. A ineficácia da política monetária em países com setores privados alavancados, entre os quais o Reino Unido e os EUA de hoje, cria restrições similares, como o governo do Reino Unido está aprendendo.

Minha crítica ao capítulos do estudo é que não coloca os esforços de redução da dívida fiscal dentro do contexto do que está acontecendo com o endividamento privado. É muito mais complicado controlar os déficits fiscais quando o setor privado também deseja reduzir seu próprio endividamento excessivo: menos gastos de um lado significam menos renda para o outro. Na ausência de uma demanda externa forte, o provável resultado, portanto, é uma desalavancagem via inadimplência e depressão. Esse é o pior resultado imaginável.

O Reino Unido, pelo menos, tinha controle sobre as condições monetárias: no fim das contas, saiu do padrão-ouro e reduziu as taxas de juros. Os países-membros da região do euro não têm essas opções indolores. A austeridade fiscal e os esforços para reduzir salários nos países que sofrem de estrangulamento monetário, no entanto, poderiam quebrar governos, sociedades e até Estados. Sem uma maior solidariedade, é improvável que a história termine bem.



Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT.

Nenhum comentário:

Postar um comentário