terça-feira, 16 de abril de 2013

O cabo de guerra e a manobra do juro







Por Antonio Delfim Netto - Valor 16/04
 
A atitude cautelosa do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central tem gerado ferozes críticas por parte do mercado financeiro. Elas vão desde: 1) a suposta leniência com o combate à inflação, que derivaria da crença ideológica (severamente rejeitada por toda a experiência histórica) de que "um pouco mais de inflação estimula um pouco mais de crescimento"; 2) passa pela crença de que o governo que estimulou, e se empenhou politicamente na baixa da taxa real de juros, não aceitaria o seu aumento, mesmo quando fosse a solução recomendável, devido à impopularidade que provocaria; e 3) termina numa dúvida moral sobre a autoridade monetária, que não teria autonomia para manobrar o seu único instrumento de ação horizontal: a taxa de juro real. Nenhuma delas faz sentido.
A crítica de que há leniência com a inflação por motivos ideológicos é, ela mesma, "ideológica". Apoia-se em velhas crenças, incorporadas aos programas do PT e do PDT, quando eles não haviam amadurecido. Na verdade, o que ela revela é a compreensão que a inflação brasileira tem causas mais complexas e a sua solução não pode ser reduzida à fórmula simples de aumentar a taxa de juro real.
O governo sabe que o namoro inflacionário duradouro com a banda superior da meta (5,8% nos oito anos de governo Lula e 6,2% nos dois anos do governo Dilma) é um convite à sua persistência. Isso deteriora as expectativas e reintroduz a incerteza na fixação dos salários. Com a dramática experiência inflacionária que temos escondida em nosso subconsciente, todos sabemos que isso acabará levando à indexação ainda maior da nossa economia. E sabemos, também, como isso termina...

A segunda crítica faz pouco da inteligência do governo. Quando as condições objetivas mudam, a política muda. Da mesma forma como foi correto reduzir a taxa de juro real absurda, à qual sobrevivemos durante as últimas décadas por equívocos da política monetária, será correto, se o Copom achar necessário, elevá-la com a mesma moderação que usam todos os países.
Antes de prosseguir permita-me recusar o terceiro argumento. Ele é ridículo. Faz uma imensa injustiça a um economista altamente qualificado, o ministro Tombini. Basta olhar para sua tranquila firmeza, para a sua formação acadêmica e a sua história como pesquisador, para entender que não é "pessoa para fazer o que mandam".
O que existe mesmo entre a autoridade monetária e os seus críticos, principalmente os economistas mais ligados ao sistema financeiro, é uma percepção diferente da realidade nacional e das incertezas que a cercam. Essa diferença cognitiva não significa uma diferença "científica", se é que se pode dar tal realeza às visões diferentes da relação relativamente tênue, mesmo no curto prazo (e inexistente no longo), entre a variação da taxa de inflação e a variação do nível de desemprego. A autoridade monetária estaria tecnicamente inferiorizada diante dos bem apetrechados profissionais que assessoram as finanças privadas.
Com relação à qualidade do conhecimento, experiência e sutilezas de funcionamento desse mercado fugidio, que é o financeiro, nem nossos mais sofisticados economistas daquele setor, ou da academia, podem competir com as informações armazenadas nas cabeças dos profissionais que habitam o Departamento de Estudos e Pesquisa (Depep) do Banco Central. Quem tiver alguma dúvida, deve comparar a "ciência" das assessorias financeiras privadas e da academia, com a "ciência" do Depep, revelada, por exemplo, no "Using a DSGE Model to Assess The Macroeconomics Effects of Reserve Requirements in Brazil" (Working Paper Series - 303, Jan., 2013), dos competentes economistas Waldyr Areosa e Christiano Coelho.
Ele explora as diferenças das respostas das variáveis macroeconômicas das manobras nas reservas bancárias e na taxa de juros utilizando um "Dynamic Stochastic General Equilibrium Model" (DSGE). E conclui que uma redução da relação de reserva tem o mesmo efeito qualitativo de uma redução da taxa de juros do Banco Central, ainda que seu efeito quantitativo seja menor, como era mesmo de esperar.
É preciso reconhecer que uma taxa de inflação anual de 5,9% nos últimos dez anos (30% sistematicamente acima da meta) já deveria ter mobilizado governo e sociedade para reduzi-la. A taxa de inflação é o radiador que dissipa o calor produzido pelos atritos no funcionamento dos mercados. E 4,5% é seguramente maior do que os 2,5% a 3,5% que parecem estabilizar as expectativas e fazê-los funcionar razoavelmente bem, na grande maioria dos países.
É mais do que óbvio, entretanto, que produzir esse resultado está fora do alcance da política monetária. Ele será consequência de uma política social e econômica, que tenha por objetivo continuar a manter a inclusão social com o suporte de medidas que reforcem as instituições e produzam mudanças estruturais, que estimulem a competição e reduzam os atritos.
Acreditamos que a visão do Banco Central tem tanta consistência quanto a do "mercado", o que recomenda sua cautela na manipulação da taxa de juros real. Até agora, a visão do primeiro tem se revelado a mais ajustada à nossa realidade e mais antenada com a situação da economia mundial. Se o que o Copom previu para o futuro próximo não se realizar - e a realidade mostrar a necessidade de uma manobra que sancione o aumento da taxa de juro real -Tombini a fará com a mesma tranquilidade e autonomia com que tem recomendado a "cautela". Quem viver, verá.


O mercado de trabalho e a inflação

Estamos assistindo a um duro cabo de guerra entre a pretensiosa "ciência" de que se supõem portadores alguns economistas do sistema financeiro, e o humilde e sólido conhecimento da autoridade monetária, que se apoia no mais sofisticado departamento econômico do país. Trata-se de saber como e, quando, deve ser ajustada a política monetária diante das incertezas internas e externas enfrentadas pelos agentes econômicos. Não apenas os financeiros, mas também os produtores de bens e serviços.
No mundo "financeiro", a crença é que a autoridade monetária já está atrasada no aumento da taxa de juros real que induziria à melhora das expectativas e facilitaria a convergência da taxa de inflação à meta de 4,5%. No mundo "real" dos produtores de parafusos, que constroem o PIB e dão emprego, há sérias e justificadas dúvidas, no que têm sido acompanhados pela autoridade monetária. Essa tem recomendado paciência e "cautela", enquanto procura ter uma visão melhor das incertezas, o que lhe dará conforto para agir diante dos prováveis custos sociais da medida.
A justificada cautela tem sido, infelizmente, confundida como leniência do Banco Central no combate ao processo inflacionário e, o que é pior, como uma possível falta de apoio político para fazer o que crê deva ser feito. Duas hipóteses falsas como se verá, se for o caso.


Uma leitura mais atenta do último Relatório de Inflação (março 2013) mostra que o Banco Central tem uma visão mais complexa do nosso processo inflacionário, e sabe que o seu controle efetivo e definitivo está fora do seu alcance, sem o apoio de sólida política fiscal e aprovação pelo Congresso de medidas que aperfeiçoem as instituições e deem suporte: 1) à superação dos mecanismos protetores de grupos privados com poder de mercado maior do que o razoável; e 2) promovam a redução dos benefícios exagerados de que se apropriaram os servidores públicos que controlam Brasília.
É preciso reconhecer que nos últimos 14 anos a taxa média de inflação anual foi de 6,36%, namorando com o seu limite superior. O fato curioso é que inflação tão alta durante tanto tempo foi bem suportada pelo setor financeiro enquanto a taxa de juro real anual era de 7% ou 8%. Agora, com a taxa de juro real de 2%, ela parece insuportável...
A verdade é que o magnífico plano de estabilização que criou o real nunca entregou o que prometeu: uma inflação civilizada e estável, entre 2% e 3% ao ano, e a recuperação de um crescimento mais robusto de 5% a 6%. O culpado, obviamente, não foi o plano. Foi a indisposição dos sucessivos governos de prosseguirem a sua execução. A estabilização foi vítima do seu imenso sucesso inicial...
Não é razoável continuar a aceitar pacificamente aquela inflação, ainda mais quando acompanhada de um crescimento médio do PIB da ordem de 2,97%. É bom que tenhamos despertado e que se aprofunde a discussão de como reduzi-la, ao mesmo tempo em que se aumenta o crescimento. Isso está longe de ser conseguido apenas pela manipulação da taxa de juros real e o governo reconhece isso. Seus programas - que no curto prazo têm produzido algum ruído - quando maturarem, em dois ou três anos, produzirão importante efeitos estruturais e um aumento da competitividade.
A consciência da autoridade monetária sobre a complexidade do nosso problema inflacionário é claramente revelada em um apêndice dentro do Relatório, onde se exploram "evidências sobre a relação entre salário e inflação no Brasil". O trabalho é muito interessante, porque é modelado como uma espécie de curva de Phillips (que sugere a relação entre taxa de inflação e taxa de desemprego) expandida, usando inúmeras variáveis de controle (simulação de choques de oferta, preços externos de commodities, taxa de desemprego, componente cíclica da taxa de juros e do salário mínimo real ajustado pela produtividade), além de manipular outros modelos. Suas conclusões são as seguintes:
1) reajustes salariais acima dos ganhos de produtividade tendem a gerar pressões inflacionárias. Em outras palavras: se desejamos reduzir a inflação sem aumentar o desemprego, é preciso moderar os aumentos salariais aos da produtividade do trabalho;
2) não é possível descartar a hipótese de que a inflação, potencialmente, retroalimenta a dinâmica dos salários por meio de mecanismos normais e informais de indexação (ainda que, aparentemente, não se tenha feito um teste da direção de causalidade);
3) os aumentos salariais incompatíveis com a reposição da inflação e com o crescimento do PIB per capita têm impacto significativo e persistente nas medidas de inflação, particularmente no setor de serviços; e
4) a propagação das pressões inflacionárias oriundas do mercado de trabalho depende da postura da política monetária. Em outros termos, esta deve impedir, pelo aumento da taxa de juro real, a criação de um viés inflacionário.
Nada muito diferente das conclusões clássicas (vide Ghali,K.H. - "Wage Growth and the Inflation Process", Journal of Money, Credit and Banking, 31(3) 1999: 417-431): 1) os preços são fixados como uma margem ("mark up") sobre os custos salariais ajustados pela produtividade do trabalho; e 2) a relação de causalidade vai em uma única direção, de salários para preços.
É tempo, portanto, de flexibilizarmos o mercado de trabalho, sem violar os direitos constitucionais dos trabalhadores, se quisermos, realmente, ter no longo prazo, uma taxa de inflação civilizada e um crescimento mais robusto.


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