terça-feira, 21 de maio de 2013

Cidadania não é consumo

 

Por José Garcez Ghirardi - Valor 21/05


Os sorrisos de Camila Pitanga e de Ronaldo Gianecchini nos comerciais da Caixa e do Banco do Brasil, respectivamente, abriram caminho para a notícia de que os dois bancos superaram, com lucros recordes, seus rivais privados em 2012. A conjunção de apelo popular e dirigismo econômico não é acidente e ilustra uma das escolhas políticas mais decisivas da gestão da presidente Dilma Rousseff.
Acreditando que a fórmula para avançar na agenda social sem desagradar os mercados é criar um país de classe média ("no mínimo", para usarmos os termos da presidente), o governo tem abraçado a ideia de inclusão via consumo. Críticas a esse modelo são sumariamente rechaçadas como fruto de ressentimento ou de má-vontade. Mas é preciso ter a coragem de fazê-las porque as contradições entre as demandas muitas diversas de inclusão e consumo, silenciadas neste momento, ameaçam a qualidade de vida futura de todos os brasileiros. E o que é pior: arriscam fragilizar, de modo particularmente cruel, justamente aqueles grupos mais vulneráveis, tornando efêmeras as conquistas atuais.
É preciso deixar claro, em primeiro lugar, que há vários modelos de países de classe média - a Suécia, a Austrália e o Canadá, são exemplos dessas diferentes versões - e várias formas de se pensar a relação entre consumo e bem estar social, assim como há vários modos de construir a regulação que tal relação solicita do Estado. Dizer "país de classe média" não significa dizer, portanto, sociedade justa ou funcional, nem tampouco primazia do interesse coletivo.


No que tange aos pressupostos dessa premissa, não está dado que a expansão do consumo leve necessariamente à inclusão - a história recente dos Estados Unidos tem algo a nos ensinar nesse ponto. No que tange a questões mais diretamente econômicas - a pressão inflacionária, o crescente endividamento familiar, a fragilização estrutural do setor produtivo, apenas para citarmos alguns exemplos - não está dado que o modelo atual seja sustentável.
Além disso, e de modo mais grave, há uma diferença crucial entre estimular o consumo e referendar a lógica do consumismo - diferença que o atual paradigma de gestão parece desconsiderar. No primeiro caso, a ampliação do poder aquisitivo é objetivo atrelado à consolidação e melhoria dos bens coletivos. No segundo, há um sucateamento desses mesmos bens e uma ampliação dos espaços privados e individuais de consumo.
A recente opção do governo em relação à industria automotiva ilustra bem as implicações que resultam de uma escolha pelo segundo modelo. A agressiva ação governamental para que cada um adquirisse seu carro - por meio da longa e repetida redução de IPI e pela expansão do crédito- tornou mais evidente, pelo contraste, a timidez das iniciativas para efetivamente melhorar e ampliar a qualidade do transporte público.
A mensagem implícita é a de que o transporte é, em primeiro lugar, um problema individual e apenas residualmente um problema coletivo. Dentro dessa lógica, o melhor modo de saná-lo é transferir recursos (via crédito mais barato ou renúncia fiscal, por exemplo) para que cada um cuide do seu. O uso de ônibus, metrô e trem vai se tornando índice de falta de opção e não do seu oposto.
Esses meios coletivos de transporte atendem, em regra, àqueles que não podem adquirir seu veículo e, assim, livrar-se do desrespeito quotidiano de ter que submeter-se a condições muitas vezes desumanas para chegar ao trabalho e à casa. No processo, a qualidade geral de vida decai, e a locomoção nas cidades se torna cada vez mais lenta e cada vez mais desgastante.
O argumento do emprego que é tantas vezes utilizado para justificar tal opção, apenas confirma a tendência do consumismo de remediar o presente às custas do futuro. A manutenção e a ampliação sustentável do emprego, em médio e longo prazo, solicitam políticas mais complexas de inovação tecnológica e de qualificação profissional que não combinam com o afã imediatista do consumismo e do ganho político - sobretudo quando os próprios governantes tendem a absolutizar o hoje e a minimizar a importância de ajustes estruturais pregressos. Para quem promove esta agenda, a deterioração das cidades, o aumento dos custos mais básicos do dia a dia e o ataque ao meio-ambiente são secundários ao apoio político passageiro e ao fetiche da propriedade individual, em um movimento que revela o quanto têm em comum os imediatismos gêmeos do populismo e do lucro.
O trânsito, como já se apontou, é uma dos indicadores mais precisos para revelar as opções de fundo feitas pelas sociedades e seus governantes. A dinâmica quotidiana do transporte público espelha, sem disfarces, o desenho e a qualidade da convivência democrática nos espaços político e social. Viajando lado a lado, indivíduos com histórias, condições e interesses divergentes percebem que têm que saber construir juntos algo que sirva efetivamente a todos. Percebem que esta opção prevê regras de conduta e de cooperação, de respeito à diferença, de busca de aperfeiçoamento do que é coletivo, de zelo pelo que é patrimônio comum. Eles podem optar pela tarefa difícil de construir este espaço comum ou podem priorizar resoluções de cunho individual.
Se a alegoria do trânsito nos ajuda a refletir sobre questões mais amplas, a imagem que temos do país a partir da circulação nas ruas preocupa, e muito. Ela indica uma sociedade em que o individualismo consumista ganha força, em que o diálogo democrático se empobrece e em que grupos específicos têm excessiva capacidade de pressão junto ao governo, sendo capazes de impor agendas corporativas e de retardar agendas genuinamente coletivas. O legítimo desejo do país de ser uma nova potência, deve começar pela opção de ser uma potência nova. Isto requer criatividade e coragem para contrapor-se à lógica reinante que fomenta o reducionismo perverso de confundir consumo e cidadania.

José Garcez Ghirardi é professor da Direito GV/SP



 
http://www.valor.com.br/opiniao/3131566/cidadania-nao-e-consumo#ixzz2Tx1yEktE
 

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