A "voz das ruas" está lembrando aos governos do mundo as prioridades que eles esqueceram. No Brasil, que vive um processo civilizatório de profundidade e rapidez sem precedentes, a insatisfação se relaciona com a péssima qualidade dos serviços de transportes urbanos, o atendimento precário à saúde e o ensino público de má qualidade. E exige o fim da corrupção, seja lá o que isso for.
Em São Paulo, o problema da mobilidade urbana assumiu a condição de tragédia urbana. Há três anos, uma pesquisa mostrou a situação pré-incendiária na maior metrópole brasileira: mais de um milhão de paulistanos se obrigava, diariamente, a ir e voltar de casa para o trabalho caminhando, duas, três e até quatro horas. A maior parte por não poder pagar o preço das passagens, e também porque, mesmo pagando, o tempo gasto não seria muito diferente. É razoável admitir, como condição "normal" de vida, a cidadã ou cidadão gastar um terço do dia apenas para chegar ao local do trabalho e retornar à moradia geralmente à noite, muitas vezes de madrugada? Até quando tal ordem de coisas seria suportável?
O que os movimentos estão dizendo é apenas que há coisas mais importantes que os estádios esportivos: que os governos deveriam estar investindo ativamente em sistemas de transportes públicos para oferecer um mínimo de conforto à população que paga impostos. Para dar uma pequena quantificação desse descaso, basta lembrar que São Paulo tem menos que 75 quilômetros de metrô. Pois bem, um quilômetro de metrô custa em torno de R$ 200 milhões. Os provavelmente subestimados R$ 15 bilhões aplicados até agora em eventos esportivos significam 75 quilômetros de metrô, parte dos quais já poderia estar servindo à população.
O aumento da insatisfação pela má qualidade dos serviços públicos essenciais deveria ser vista com naturalidade, mesmo porque é menos um problema de recursos e mais atributo da má gestão do governo. O lamentável é que a "surpresa" produziu nos poderes Executivo e Legislativo uma resposta esquizofrênica hiperativa, com ilusionismos, aprovação apressada e inconsequente de subsídios, de gastos e de promessas de imaginárias receitas futuras, que todos sabem não caberão no PIB.Em São Paulo, o problema da mobilidade urbana assumiu a condição de tragédia urbana. Há três anos, uma pesquisa mostrou a situação pré-incendiária na maior metrópole brasileira: mais de um milhão de paulistanos se obrigava, diariamente, a ir e voltar de casa para o trabalho caminhando, duas, três e até quatro horas. A maior parte por não poder pagar o preço das passagens, e também porque, mesmo pagando, o tempo gasto não seria muito diferente. É razoável admitir, como condição "normal" de vida, a cidadã ou cidadão gastar um terço do dia apenas para chegar ao local do trabalho e retornar à moradia geralmente à noite, muitas vezes de madrugada? Até quando tal ordem de coisas seria suportável?
O que os movimentos estão dizendo é apenas que há coisas mais importantes que os estádios esportivos: que os governos deveriam estar investindo ativamente em sistemas de transportes públicos para oferecer um mínimo de conforto à população que paga impostos. Para dar uma pequena quantificação desse descaso, basta lembrar que São Paulo tem menos que 75 quilômetros de metrô. Pois bem, um quilômetro de metrô custa em torno de R$ 200 milhões. Os provavelmente subestimados R$ 15 bilhões aplicados até agora em eventos esportivos significam 75 quilômetros de metrô, parte dos quais já poderia estar servindo à população.
Provavelmente nunca poderão ser implementados, a não ser à custa da maior destruição fiscal, que levará - ao fim e ao cabo - ou a maior taxa de inflação e maior déficit em conta corrente (enquanto os credores tiverem paciência), ou, o que é pior, a alguma forma de restrição à liberdade individual com a qual já namoram alguns vizinhos latino-americanos.
O movimento das ruas é uma daquelas circunstâncias que levam a refletir sobre a natureza e o futuro da organização social em que vivemos. A história mostra: 1) que a utilização dos "mercados" para organizar a produção é resultado de um mecanismo evolutivo. Não foi inventado por alguém. Foi gerado por uma seleção quase natural entre os muitos sistemas que os homens foram experimentando, desde que saíram da África há 150 mil anos, para combinar relativa eficiência na conquista de sua subsistência material com aumento paulatino da liberdade para viver; 2) que deixado a si mesmo, ele amplia as desigualdades e tende a gerar flutuações cíclicas no nível de emprego; 3) que um Estado forte, constitucionalmente limitado e um poder incumbente escolhido pelo sufrágio universal, são fundamentais para civilizá-lo; e 4) que a crença na moralidade da intermediação financeira, essencial ao desenvolvimento produtivo, leva à submissão deste à primeira e, com tempo suficiente, ao controle do próprio Estado, como vimos em 1929 e 2008, o que exige forte regulação.
O mecanismo de seleção continua a trabalhar na direção de aumentar a liberdade do homem para viver a sua humanidade com a redução do trabalho necessário à sua subsistência material, e dar-lhe segurança através do aperfeiçoamento da organização social, que busca combinar três objetivos não plenamente conciliáveis: maior liberdade individual, maior igualdade de oportunidade e maior eficiência produtiva. É importante lembrar que esses três valores estão implícitos na Constituição de 1988. Ela reforçou as instituições para realizá-los.
A história sugere, também, que o método proposto pelo velho e ingênuo "socialismo fabiano", de aproximações sucessivas através da dialética interminável entre a "urna" e o "mercado", é, talvez, o único caminho assintótico para produzi-los. As alternativas propostas de sua substituição voluntarista por cérebros peregrinos lotaram de tragédias o século XX: mataram a liberdade sem aumentar a igualdade, ou melhorar a eficiência produtiva. A lógica é paciente, porque sabe que é inevitável.
A sociedade mundial está inserida numa profunda revolução apoiada em novas tecnologias e no aumento dramático da transmissão e acumulação de informações. Ela vai produzir ainda maior redução do trabalho material e imenso aumento da liberdade individual, no sentido da mesma seleção "quase" natural que nos levou até aqui.
No Brasil, as implicações desse novo passo civilizador precisam ser antecipadas por um dramático aumento da qualidade de nossa educação para elevar o espírito crítico dos eleitores. As exigências das ruas estão mostrando que esse é essencial para salvar a economia e, principalmente, a democracia...
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
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