terça-feira, 5 de março de 2013

Existe vida fora da Selic


Por Antonio Delfim Netto - Valor 05/03

As recentes manifestações do Federal Open Market Committee (Fomc), do Fed americano, e do Monetary Political Committee (MPC), do Bank of England (BE), dão uma ideia clara das precárias condições em que se encontra o que se supunha ser a "ciência monetária".

Ao tentar indicar o caminho para ultrapassar a gravíssima crise em que o mundo vive desde a quebra do Lehman Brothers, eles mostram que estamos em território econômico absolutamente desconhecido. Sua exploração deve ser feita aperfeiçoando os instrumentos construídos nos últimos 250 anos, com a coragem e a honestidade que faltaram à profissão quando ela desenvolveu "teorias" que justificavam, "a posteriori", as patifarias que estavam sendo construídas no alegre incesto entre o poder político incumbente e os sistemas financeiros dos países.

A prova da proposição é simples: os poupadores que entregaram seus recursos a administradores ficaram pobres e desempregados. Os administradores ficaram trilionários e não precisam de emprego! Tudo graças à teoria "científica" que os mercados deixados a si mesmos eram "perfeitos, moralmente administrados e seguramente autorregulados".

A profissão precisa de uma grande pajelança para livrar-se da cegueira, não apenas dos que ainda agora insistem em aceitar tal "teoria", como outros, que, com o mesmo nível de ingenuidade, acreditam que o poder incumbente deixado a si mesmo é naturalmente benevolente, onisciente, e sujeito ao imperativo categórico da absoluta impessoalidade e honestidade...

Na última reunião, o Fomc decidiu "manter o intervalo do 'federal funds' (a taxa básica americana) entre 0 a 1/4% e antecipar que este nível excepcionalmente baixo da taxa básica será apropriado enquanto a taxa de desemprego permanecer acima de 6,5%, a taxa de inflação esperada nos próximos um ou dois anos não seja 1/2% superior à qual estamos comprometidos como objetivo de longo prazo (2%) e a expectativa de inflação continuar bem ancorada". Lembremos que o Fed se propôs, há dois meses, a executar uma política de "quantitative easing" (QE3) indefinidamente, enquanto um dos elementos do par (6,5% para o desemprego ou a taxa de inflação ultrapasse 2,5%) não for atingido.

Pois bem, agora tudo parece mudado, como revela a discussão na última ata do Fomc, onde lemos: "Muitos participantes (alguns são não votantes) enfatizaram que o comitê deve estar preparado para variar a velocidade da compra dos ativos (a operação QE3), seja em resposta à mudança das perspectivas econômicas, seja pela avaliação da eficácia e custos que ela envolve. Outro insistiu que as compras devem ser incrementais de reunião a reunião, em resposta às novas informações sobre a economia. Outros, ainda, argumentaram que as avaliações de eficácia e custos podem levar o comitê a reduzir o QE3, mesmo antes que ocorra uma melhoria no mercado de trabalho. Outros lembraram que o custo potencial de suspender ou reduzir a compra de ativos pode ser muito alto, e que ela deve continuar até que uma mudança substancial no mercado de trabalho tenha ocorrido".

Fica evidente que a decisão do Fomc foi apenas uma solução de compromisso, sem apoio factual ou forte convicção teórica. Honestamente, é pouco provável que, com o conhecimento dessa ata, o "mercado" saiba o que o Fed quer e que coordene as "expectativas" dos agentes na direção desejada. O "mercado" precisa de instruções claras e explícitas: o que Fed quer é menor taxa de desemprego, maior crescimento e um pouco mais de inflação! Então, porque não dizer isso claramente e deixar o "mercado" apostar nesse resultado? O mesmo sentimento de confusão e incerteza deriva da ata do MPC, do Bank of England, de fevereiro.

O governador do BE, Mervyn King, e mais dois membros do MPC sugeriram aumentar o "quantitative easing" inglês, mesmo diante do fato de que a taxa de inflação excede largamente a "meta" oficial, e as expectativas inflacionárias dos próximos dois anos excedem a meta de 2%. Foram vencidos. Os seis votos vencedores no MPC recusaram o aumento da taxa de juros, mesmo diante do preocupante aumento da taxa de inflação. Uma explicação plausível para o comportamento do MPC é que o próprio Bank of England espera a posse do seu futuro presidente, Mark Carney (ex-presidente do Bank of Canada), que tem manifestado a intenção de experimentar a variante da política monetária que tem por objeto o PIB nominal.

Não passou despercebido para os analistas mais cuidadosos que a proposta de King e seus companheiros implicava, de fato, aceitar que um aumento do "quantitative easing" produziria um efeito mais forte no nível de atividade que no nível de inflação, uma hipótese que nega o monetarismo. Na proposta, eles afirmaram que o aumento do QE "poderia ajudar no processo de rebalancear a economia e evitar a destruição da capacidade produtiva e o aumento do desemprego". Isso acendeu a luz vermelha dos mais céticos. Para esses, a expressão "rebalancear a economia" é apenas a forma elegante e diplomática de dizer que o QE deve trabalhar na direção de desvalorizar a libra e aumentar a exportação. Esse objetivo já fora explicitado por King no seu discurso em Belfast, no dia 22 de janeiro. Diante de tanta confusão "científica", é preciso recomendar humildade aos nossos sacerdotes adoradores da religião do "tripé", que supõem que não existe vida fora da manipulação da taxa Selic.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.

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