quinta-feira, 30 de junho de 2011

A DESINDUSTRIALIZAÇÃO QUE AMEAÇA O BRASIL



Por José Milton Dallari

O Brasil festeja a escolha para sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Comemora o fato de ter saído incólume da crise financeira mundial, e a perspectiva de que a economia continue crescendo. Tudo isso é positivo, mas o país ainda possui deficiências estruturais que precisam ser atacadas agora. Veja o que está acontecendo na indústria.
Neste momento, o Brasil corre o risco de se transformar apenas em um grande revendedor de produtos tecnológicos e se desindustrializar. Para se chegar a essa conclusão, a conta é simples: importamos muito mais produtos com alguma tecnologia agregada do que exportamos.
Hoje o déficit de tecnologia do Brasil cresce cerca de 20% ao ano. Caminha para ultrapassar os US$ 100 bilhões em 2011. Muitas fábricas - de chips a eletroeletrônicos completos - abriram mão de parte de sua produção. Se antes fabricavam o produto do começo ao fim, agora importam, principalmente da China, uma parte de seus componentes. Os preços são mais baixos do que se fossem produzidos aqui.
Os chineses tiram proveito da decisão de empresários ocidentais que preferem terceirizar a produção para ficar apenas com a parte que "agrega valor" à sua marca.
As empresas e os empresários ganham rios de dinheiro comprando dos chineses por centavos e vendendo por centenas de dólares, interessados apenas no lucro imediato e a qualquer preço, mesmo ao custo do fechamento de suas fábricas e do brutal desemprego. É o que se pode chamar de "estratégia do avestruz".

O boom de empregos gerados atualmente acontece em setores de produtos com baixo valor agregado

O problema é que essa atitude não agrega valor, muito menos ao Brasil, um país que ainda tem muito a fazer para conquistar seu espaço no mercado mundial e está longe de oferecer aos brasileiros, de todas as classes sociais, condições de vida comparáveis às dos chamados países do primeiro mundo.
Enquanto os empresários ocidentais terceirizam as táticas e ganham no curto prazo, a China assimila essas táticas, cria unidades produtivas de alta performance e vai dominar o mercado de produtos de massa no longo prazo.
A substituição da produção local pela importação de produtos chineses - sejam eles componentes ou mercadoria acabada - leva, a longo prazo, ao sucateamento do parque industrial brasileiro.
A magnitude dos números é um bom exemplo: se uma fábrica brasileira produz um milhão de unidades do produto X, uma só fábrica chinesa produz quarenta milhões de unidades. A qualidade dos dois é equivalente, mas a velocidade de produção e atendimento que a China oferece são impressionantes.
Os chineses colocam qualquer produto no mercado, em qualquer lugar do planeta, em semanas, com os preços que são uma fração dos praticados aqui.
Com a importação dos produtos chineses, o preço do produto final cai, o que é bom para o consumidor, mas é péssimo para o trabalhador brasileiro que, no final das contas, perde seu emprego para um trabalhador chinês.
No Brasil, o boom de empregos gerados atualmente acontece em setores de produtos com baixo valor agregado. Ou seja, onde se contrata mão de obra barata e de baixa qualificação.
Recebemos só neste primeiro trimestre de 2011 investimentos da ordem de US$ 17,5 bilhões.
Mas eles não se refletem em ganhos em tecnologia já que o déficit, nesse setor, não para de crescer. Uma parte desse dinheiro estrangeiro pousa no país, atraída pelos ganhos financeiros proporcionados pelos juros altos. E a fatia que vai para instalação de fábricas repete o modelo prejudicial ao Brasil: são empresas que importam componentes e produtos acabados de fora - ou seja, são apenas montadoras e maquiadoras de produtos.
É esse modelo que precisa ser revisto. Se mantido o atual perfil de investimento em produção, num futuro próximo a China se mostrará ainda mais inalcançável.
Veremos os produtos chineses aumentando os seus preços, com as empresas produzindo um choque de produtos de valor agregado, como aconteceu com o choque do petróleo nos anos 70. E aí já será tarde demais. O mundo então perceberá que reerguer as suas fábricas terá um custo proibitivo e irá render-se ao poderio chinês; pois, alimentou um enorme dragão e acabou se tornando refém da criatura.
O resultado desse modelo é desastroso. Num ranking global de competitividade, que mede o ambiente de negócios de uma nação, o Brasil, que é a oitava economia do mundo, ficou em 44º lugar, perdendo seis posições em relação ao levantamento do ano passado.
O estudo foi feito pelo Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Administração, da Suíça, em parceria com a Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais. Fomos ultrapassados por países como Peru, Filipinas, Turquia e Emirados Árabes.
E o ciclo é vicioso, já que quanto mais se importam produtos de tecnologia agregada, menos precisamos da nossa mão de obra especializada, colocando nossos jovens qualificados com dilema difícil, ou se sujeitam a ficar no Brasil em funções aquém de sua capacidade ou vão buscar alternativas em outros países.
O cenário nos coloca a perspectiva de o Brasil se tornar um país importante, entre as cinco economias mais poderosas do mundo, mas sem liderar seu próprio desenvolvimento tecnológico. É isso que queremos? Certamente não.
Nossas deficiências não são novas e estão aliadas a dificuldades igualmente antigas, como um câmbio que favorece a importação de peças e componentes, a alta carga tributária incidente sobre a produção e uma legislação trabalhista ultrapassada. Sem contar a burocracia e a ineficiência do setor público que ano após ano seguem inalteradas.
Muitos desses acertos podem ser feitos de imediato, mesmo sem as famosas mudanças estruturais. É possível ajustar tarifas para que o Brasil importe o que necessita e abra espaço para o uso de tecnologia na produção local. A carga tributária pode ser usada como mecanismo de incentivo a quem investe em pesquisa & desenvolvimento. A burocracia pode ser reduzida, com mais agilidade para quem quer fazer negócios. Tudo isso sem contar que a legislação trabalhista precisa ser modernizada e o setor público carece de um choque de eficiência.
Sem que nada disso se altere, a perspectiva é preocupante para a indústria brasileira. Reflitam, corremos ou não o risco da desindustrialização?

José Milton Dallari, ex-secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, integrante da equipe que implantou o Plano Real. É sócio da Decisão Consultores.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Equilibrio macro: em busca da perplexidade perdida




Por Octavio de Barros - Valor 29/06/2011






Nós economistas nunca explicitamos a pergunta mais relevante que deveríamos nos fazer e debater abertamente: como é possível um país harmonizar perspectivas tão alvissareiras e construtivas dos agentes econômicos com um equilíbrio macroeconômico que poderia ser qualificado como ruim? Esse é o Brasil, reconhecido como cheio de oportunidades, que atrai investimentos, melhora socialmente e exibe avanços institucionais de dar inveja aos demais países emergentes, sendo ainda o país com os juros mais altos do planeta e dentre os mais caros do mundo.
A questão que mais me interessa é a dessa primeira contradição e não tanto a do complexo e aparentemente insuperável enigma dos juros distorcidamente altos no Brasil que iremos discutir adiante.
Fazendo a mea culpa, acho que esse é o ponto que deveria intrigar a todos nós economistas: inexplicavelmente, há bastante tempo exibimos certa inapetência intelectual diante da constatação de o Brasil ser o "queridinho" dos mercados e dos investidores na vigência de um equilíbrio macro de qualidade sofrível.
Ou seja, o país avança muito bem, ganha status, progride econômica e socialmente, é credor externo líquido, grau de investimento por todas as agências classificadoras de risco, previsível, democracia parruda, tudo isso em sintonia supostamente perfeita com estáveis e confortáveis gastos de 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) apenas em função da elevada carga de juros da dívida pública (últimos 12 meses), a segunda maior do mundo depois da Grécia, por acaso virtualmente quebrada. Diga-se de passagem, a média mundial de carga de juros da dívida pública sobre o PIB é de 1,89%, sendo 1,97% nos emergentes e 1,78% nas economias maduras. Há duas décadas gastamos anualmente cerca de 4,5% do PIB a mais com juros do que a média dos países emergentes. É isso, é só fazer as contas e concluir estupefato que, no Brasil, a média de gastos com juros da dívida pública desde o Plano Real é de 6,5% do PIB. Perdemos a nossa capacidade de ficar perplexos.

"Ao tentar explicar os juros brasileiros a investidores chineses, percebi que quem 'falava chinês' era eu"

É crônico, e durante todos esses anos assistimos a isso em um silêncio intelectual inacreditável, sobretudo diante dos olhares incrédulos dos estrangeiros. Nos últimos 12 meses, gastamos a bagatela R$ 213,9 bilhões em juros da dívida pública, os quais, descontando os R$ 119,6 bilhões de superávit primário, nos levam a um déficit público nominal de R$ 94,3 bilhões, equivalentes a 2,5% do PIB.
"Mas tudo bem", me dizia essa semana um insuspeito colega do mercado, discutindo um surpreendente quadro com o Brasil exibindo a segunda melhor posição fiscal do G-20. "Olhe só aonde nós chegamos" - dizia ele - "para o fiscal do Brasil ser considerado um dos melhores do mundo, com todos os problemas de qualidade do gasto que temos, o G-20 está realmente em uma situação lastimável. Mas fato é que em termos de solvência estamos entre os melhores", disparou.
No turismo, os brasileiros gastam por ano US$ 18 bilhões no exterior e os gringos colocam apenas US$ 6 bilhões no Brasil bonito por natureza. Ou seja, gastamos cerca de três vezes mais. Patético. Por que os brasileiros representam 40% dos compradores de imóveis em Miami? Algo no mínimo estranho. Essa não é nem uma questão de sustentação no médio e longo prazo, porque tal cenário também já vem se mantendo há um bom tempo. A taxa de câmbio está sem dúvida excessivamente apreciada. Ninguém pense que eu esteja aqui sugerindo que possa ser diferente. Razões não faltam para a apreciação, mas da missa, só sabemos a metade: termos de troca altamente favoráveis por conta das commodities em alta, atração de investimentos, sobreliquidez internacional, arbitragem de juros etc. Ou seja, são hipóteses razoavelmente robustas, mas possivelmente insuficientes para explicar toda a apreciação real.
A discussão econômica no Brasil passa ao largo da distorção macro como se isso fosse algo intrínseco à trajetória brasileira. Damos de barato que é assim e ponto. Discutimos com uma impassível complacência se os juros reais de equilíbrio no Brasil estão em torno de 6%, 7% ou 8% ao ano, como se a resposta definisse um estado de coisas consolidado e quase insuperável. O que leva o Brasil a ser o queridinho do mercado com um (des)equilíbrio macro desses?
Para dar essa resposta, costumo lançar mão do velho argumento de que é assim mesmo, um processo lento e custoso que começou lá os anos 90 quando os juros reais eram 23%, caindo gradualmente para 17%, para 13%, 10%, e hoje, passados 20 anos, estão em torno de 7%. Subirão a 8% no curto prazo segundo o Boletim Focus, mas isso é algo temporário, logo volta para uns 6,5%, me lembra um membro de minha equipe. Nem precisava. Avançamos muito!!! Dentro de uns 10 anos poderemos facilmente chegar a juros reais neutros próximos do que se pratica na média dos países emergentes. Tenho por hábito dizer publicamente que são avanços institucionais cumulativos, inerciais que nos levarão à normalidade um dia. Que alento! Não é necessário decifrar o enigma, basta esperar que chegaremos lá.


"Resisto a aceitar o argumento de que a indexação seja a causadora de todos os males inflacionários"


Essa mera profissão de fé, na prática, acaba gerando uma dificuldade adicional que seria pensar o contrafactual: imagine a economia brasileira com juros reais de 2% (média dos emergentes) e uma taxa de câmbio hoje de uns R$ 2,00 por dólar. Onde estaríamos em termos de inflação, de PIB, de equilíbrio externo? Seria o caos, algum colega diria intuitivamente. Pode ser. Mas, francamente, ninguém tem convicções na previsão das reais consequências. Na verdade, não nos é dado o direito sequer de refletir sobre. Muitos de nós só fazemos o questionamento da distorção dos juros privadamente, jamais em público. Como diz um grande amigo meu, "poucos tem a modéstia de reconhecer a perplexidade que o tema causa ou tem medo de ser taxado de inimigo da boa causa econômica".
Entenda-se que estou aqui apenas especulando intelectualmente e jamais sugerindo que atalhos possam ser descobertos para um incerto paraíso. Muito longe disso. A política monetária não pode jamais ser dominada fiscalmente. Tem que seguir fazendo a parte que lhe cabe no latifúndio com autonomia, foco na meta de inflação (de preferência mais baixa) e inteligência estratégica considerando as condições gerais da economia. Isso tem sido um grande avanço do país. Mas a impressão que se tem é que estamos falando da sobrevida de um paciente, que se encontra em condições aparentemente normais, mas que depende de um medicamento muito forte que tem que ser tomado em bases regulares. Caso contrário, ele pode morrer. Ou o que seria mais surpreendente: pode viver. Viver em outro equilíbrio. Qual? Ninguém sabe. Ninguém quer saber. A doença deve ser realmente grave.
Em outras palavras, o Brasil está muito bem, sorridente, confiança em alta, todo mundo investindo, e não paramos de ouvir a seguinte frase: "Mas me conta aí, como é que vocês fazem com esse negócio da taxa de juros real de 7% em um mundo de juros reais generalizadamente negativos?" "Como pode uma coisa dessas?" "Como é que se financiam os projetos?"
Temos que explicar o inexplicável.

É sempre um imenso desconforto ter que catequizar interlocutores, sobretudo os de fora do Brasil, com a tese de que a distorção que experimentamos é algo natural e tranquilo. Não nos afeta em nada e já estamos acostumados. Outro dia tive que explicar o fenômeno para um grupo grande de investidores chineses. No fim das contas, percebi que quem estava "falando chinês" era eu. Por mais talentoso que eu pudesse me julgar nessas ocasiões, ninguém entende esse que talvez seja um caso único na história considerando as décadas de juros reais espetacularmente distanciados da média mundial. A literatura econômica mundial não registra caso similar tão duradouro na história.
Fazemos uma ginástica imensa nos argumentos ou, na maior seriedade, partimos direto para o conjunto de explicações supostamente mais fácil que já está na ponta da língua: falta de poupança, risco jurisdicional de conversibilidade, excesso de políticas sociais dando incentivos errados, indexação excessiva, taxa de impaciência alta do brasileiro, muito crédito direcionado, desequilíbrio crônico de oferta e demanda por falta de reformas, incertezas quanto à solvência fiscal de longo prazo, alta volatilidade da inflação, a cultura deletéria do CDI etc.
Resisto heroicamente a teses conspiratórias e confesso que já estou na fase de me divertir com a explicação de alguns interlocutores atribuindo o fenômeno ao "rentismo exagerado no Brasil", "interesses escusos" ou à "visão excessivamente ortodoxa de alguns economistas". Se fosse essa a explicação, já teríamos resolvido o tema em cinco minutos.
Karl Popper, uma de minhas principais referências teóricas, dizia que a verdade é inalcançável e precisamos nos aproximar dela por tentativas. O estado atual da ciência é sempre provisório. Ao encontrarmos uma teoria ainda não refutada pelos fatos e pelas observações, devemos nos perguntar: será que é mesmo assim?
Todos os argumentos que apresentamos aos nossos incrédulos interlocutores são bastante lógicos, fazem algum ou muito sentido, mas isoladamente não explicam os juros distorcidamente altos no Brasil. São todos, sem exceção, refutáveis com contraexemplos aqui e em outros países.
A resposta para o enigma possivelmente não está em nenhum dos temas abordados isoladamente, mas tem grandes chances de ser encontrada em todos os temas acumulados, combinados e batidos no liquidificador. Mesmo assim, não é possível afirmar categoricamente que o enigma vá ser decifrado assim. Humildade é requerida diante de nossa incapacidade de compreender totalmente e de endereçar soluções respeitosas às regras do mercado para que os juros convirjam um pouco mais rapidamente para a média dos emergentes. Mas inevitável é que sempre aparecerá alguém dizendo tal como o assessor de Bill Clinton: "É o fiscal, estúpido!" O reducionismo é democrático.
Na minha modesta opinião, só nos resta seguir trabalhando muito sério em todas as frentes, incluindo o fiscal, de forma que, subitamente, nos depararemos em algum momento com a convergência das taxas de juros no Brasil para patamares que serão considerados civilizados. Atalhos? Nem ouso, sobretudo para quem acredita piamente como eu que a moeda é uma construção institucional que requer um desenho permanente de incentivos para que seja legitimada socialmente.
Não posso, porém, deixar de sobrevoar e questionar algumas das teses mais frequentes sobre os juros altos no Brasil. Chama a atenção a fragilidade maior parte das explicações sobre o tema. Ao fim e ao cabo, todos os argumentos sugerem que se os juros são altos é porque a inflação é alta. Mas, como explicar que países com um nível de inflação similar à do Brasil ou mais alto operam sistematicamente com taxas de juros tão mais reduzidas?
Da mesma forma, o argumento campeão é o de que a taxa de poupança no Brasil é baixa, com o que concordamos total e irrestritamente. Mas tantos outros países registram uma taxa de poupança similar à do Brasil com juros muito mais baixos. É claro que precisamos também distinguir a poupança a que estamos nos referindo: a financeira das famílias ou a macroeconômica? A poupança macroeconômica poderia, sem dúvida, ser bem maior com um ajuste fiscal de longo prazo, o que ajudaria muito a resolver imensos problemas no Brasil, inclusive os penduricalhos tributários que engordam a taxa de juros.
Uma reforma políticamente viável da previdência cairia muito bem considerando que o Brasil é um "fora de série" na relação entre a idade média da população e os gastos com previdência. Mas atribuir os juros excessivamente altos à ausência de reformas como a da previdência me parece estar a léguas de distância do racional. Afinal, todos os países do mundo precisam dramaticamente fazer reformas da previdência e experimentam juros muito baixos. Superar a péssima qualidade do gasto público no Brasil é agenda para toda uma vida democrática.
Quando vejo que aberrações como os gastos com pensões por morte como proporção do PIB (3% do PIB no Brasil contra a metade ou menos nos países da OCDE) serem usadas como argumento quase central para explicar os juros altos no Brasil, fico estarrecido. Reconhecer a pertinência do grave problema responde de forma apenas tangencial à questão em tela. O caminho me parece errado. O questionamento da solvência de longo prazo do setor público também me parece fazer pouco sentido ainda para explicar o grau de distorção dos juros no Brasil. Afinal, como já sugerimos, a despeito das excepcionais circunstâncias internacionais, o Brasil hoje exibe indicadores fiscais bastante razoáveis tanto no que diz respeito à relação dívida como proporção do PIB como em termos de déficit nominal do setor público. Em outras palavras, a pressão dos gastos públicos sobre a demanda não justificaria por si só juros historicamente tão altos. O Brasil está muito longe de ter o monopólio do descalabro fiscal.
Por outro lado, faz sentido que a poupança das famílias seja baixa em um país com demanda reprimida por décadas de concentração de renda. Mas mesmo nesse capítulo, outros países emergentes com a mesma propensão a consumir que a brasileira, conhecem taxas de juros substantivamente menores.
Ainda com relação a esse tema, um argumento forte é o de que a taxa de impaciência do brasileiro é possivelmente maior do que a observada em outros países. Será mesmo? Em outros países emergentes encontramos as mesmas ansiedades de melhora de vida e convivendo com juros muito baixos. Isso significaria que o brasileiro tem um grau de ansiedade tão grande para obter hoje os bens que poderia esperar alguns anos para acumular que se dispõe a pagar o dinheiro que for (juros que o mercado pedir) visando antecipar o acesso a eles. Em outras palavras, taxa de juros é sinônimo de taxa de impaciência. Essa tese sugere que se os juros fossem a metade dos atuais, teríamos uma explosão de consumo de bens gerando forte pressão inflacionária. Faz sentido? Sim. Explica os juros espetacularmente altos? Muito longe disso.
Patético é o argumento que ouvimos recentemente de que o caminho mais rápido para a convergência dos juros para a normalidade seria retroceder na política social brasileira. Nossa política social daria incentivos errados e as pessoas não poupariam por isso. Nada mais lógico e absurdo ao mesmo tempo. Um belo corte nas politicas sociais e os juros iriam rapidinho para a convergência. Está resolvido! Ou então poderíamos adotar a fórmula australiana de gerar um sistemático megadéficit externo e desmantelar o setor industrial para que os juros convergissem rapidamente para o normal. É prático e igualmente inacreditável.
Partamos então para a questão da indexação. Eu pergunto: afinal a inflação é alta por causa da indexação ou a indexação está presente porque a inflação é alta? Prefiro o segundo argumento.
Qualquer que seja o caso, resisto muito a aceitar o argumento de que a indexação seja a causadora de todos os males inflacionários brasileiros. Em muitos outros países onde a indexação é um esporte amplamente praticado, as taxas de juros são bastante baixas. Isso não significa que devamos abandonar a agenda da desindexação que envolve a construção de um moderno desenho de incentivos para mitigar o problema.
Sobre o argumento de um estrutural e histórico desequilíbrio de oferta e demanda, nada mais refutável. Ou seja, essa é a tese de que a oferta cresce sempre atrás da demanda por fatores que travam a produção e os investimentos, diga-se de passagem, que estão crescendo forte e ininterruptamente desde o primeiro trimestre de 2005. Ou seja, o argumento é o de que a falta de reformas impede que a produção acompanhe o crescimento acelerado da demanda. Bem, nesse caso faz sentido, porém o gap de oferta e demanda no Brasil não é tão significativo que não possa ser coberto com importações em uma economia já razoavelmente aberta como a brasileira. Insistimos em crescer acima do potencial. Que teimosia! Esse argumento também me parece bastante frágil para explicar a inflação alta e os juros distorcidos.
Há também o argumento da excessiva indexação da dívida pública que me parece bastante robusto ainda que esteja longe de ser uma questão pacificada. A dívida indexada à Selic e o implacável parâmetro do CDI trazem para o curto prazo um custo que deveria ser apenas da dívida de longo prazo.
Mesmo que desse mato possa não sair muito coelho, nesse debate me surpreende que os meus ídolos economistas que, no passado, foram criticados por descobrirem a pólvora da moeda indexada quando a corrente majoritária insistia que o problema central da superinflação era o desequilíbrio fiscal, hoje desqualificam, os que veem no tema da indexação da dívida pública um elemento forte para, modestamente, ajudar a explicar os juros elevados no Brasil. Ora, essa questão, no mínimo, merece profunda reflexão.
Falta sentido de urgência não apenas aos governos em geral para avançar nas reformas como a nós economistas que, há anos, assistimos de camarote o desfile da carga distorcida de juros no Brasil, sem qualquer perplexidade.

Octavio de Barros é economista-chefe do Bradesco

terça-feira, 28 de junho de 2011

OPORTUNIDADE

Por Delfim Netto - Valor 28/06/2011



Esse é um momento particularmente interessante para os economistas. A crise de 2007/09, que atingiu o sistema financeiro e interrompeu o "circuito econômico", já custou mais de 5% do PIB mundial e deixou desempregados mais de 30 milhões de honestos trabalhadores.
Ela mostrou as limitações dos nossos conhecimentos de como funciona, de fato, o sistema econômico. Mostrou, também, a precariedade do que parecia ser uma revolução científica: a construção da economia financeira, separada da macroeconomia, feita por pequenos economistas, supostos grandes matemáticos!
O economista é um cientista social que procura entender como funciona o mundo real (e não impor-lhe o que gostaria que ele fosse). Tenta encontrar algumas regularidades e organizar histórias plausíveis sobre elas. O resultado do seu trabalho deve ajudar a lubrificar o funcionamento das instituições que levam ao desenvolvimento sustentável com justiça social.

"Os economistas estão diante de um novo e excitante momento"

Nem toda atividade social é de interesse da economia, mas toda atividade econômica é de interesse social. O agente econômico é um animal mais complicado do que supúnhamos: aprende com uma racionalidade limitada inserido num universo de incertezas.
O individualismo metodológico e os agentes representativos que estão na base das nossas construções teóricas são insuficientes para entender o fenômeno das redes que dominam o universo social, da tendência à imitação dos agentes e da segurança que a norma lhes dá. Eles certamente movem-se por estímulos e interesses, mas num espaço social, numa rede na qual cada um é apenas um elemento, o que condiciona as suas escolhas.
A pobre discussão que envolveu a ideia de "Estado mínimo", por exemplo, era apenas uma ação ideologicamente motivada. Na verdade, não existe "mercado" sem um Estado capaz de garantir as condições de seu funcionamento. Numa larga medida, a forma de organização do sistema produtivo é ditada pelos que detêm o poder político e formulam a política econômica que serve aos seus interesses. A sua construção teórica e a formalização para justificá-la também são um produto ideológico.
Para entender isso, basta ver como a tomada do poder pelas finanças nos EUA levou a uma política econômica que lentamente erodiu a legislação que regulava suas atividades e fora produzida após a Grande Depressão. Muito rapidamente os "cientistas" produziram uma "ciência" que justificava a total desregulamentação da atividade financeira em nome da "eficiência" e da descoberta de "inovações" capazes de medir os "riscos": 1929 nunca mais!
É preciso incorporar no DNA dos economistas a autonomia do político. Nas situações de conflitos irreconciliáveis, só o poder político pode arbitrar. Ainda que possamos ter sugestões interessantes sobre a flexibilidade do mercado de trabalho (o que não é muito claro do ponto de vista empírico), elas são, claramente, propostas "normativas" que produzem, inevitavelmente, "vencedores" e "perdedores". É um pouco ridículo sugerir aos últimos que devem sacrificar-se em nome de um "valor maior" construído sobre a base teórica discutível da Teoria do Equilíbrio Geral...
A economia precisa voltar a abrigar contribuições de todos os matizes teóricos e ideológicos, porque aqui, como na biologia, só a diversidade é fértil. Essa é uma velha tradição da FEA/USP. Apenas para recordar. Nos idos de 1947, o ilustre professor Paul Hugon nos ensinava - na cadeira de economia política - que a moeda era "qualquer coisa" aceita pela sociedade com as qualidades de ser uma unidade de conta, de resgatar compromissos e capaz de ser reserva de valor. Era apenas um véu que escondia a economia real.
Ao mesmo tempo, o não menos ilustre professor Heraldo Barbuy - na cadeira de sociologia - nos "enriquecia", inspirado em George Simmel, ao mostrar que a coisa não era tão simples! A moeda era sim produto de uma convenção social, mas tinha profunda influência no comportamento humano, como a cupidez, a avareza e a prodigalidade e exercia profunda influência sobre a economia real. A ideia de uma moeda neutra, apenas um "véu" facilitador das trocas, era uma "imbecilidade".
Os economistas estão diante de um novo e excitante momento. Precisam aproveitar as novas oportunidades que se abrem à profissão para renovar o trabalho mais modesto de oferecer instrumentos para a boa governança dos Estados e a melhor alocação dos seus recursos. Precisam recuperar a história, a geografia, a sociologia, a psicologia, a antropologia e usar mais modestamente a topologia...
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail contatodelfimnetto@terra.com.br

A DIVINA COINCIDÊNCIA




Por Marcio Holland - Valor 28/06/2011




Em fevereiro de 2010, Olivier Blanchard, atual economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), juntamente com dois colegas, publicou um texto (1) discutindo o que poderia parecer normal na política macroeconômica após a crise financeira internacional de 2008. Na verdade, por sua honestidade acadêmica, associada ao pragmatismo científico, o economista tratava de discutir o que estaria errado nas orientações de política econômica antes da crise e o que poderia continuar valendo a partir de então. Não somente Blanchard, mas outros economistas também engrossaram o coro daqueles que acreditam que algumas ideias aparentemente consensuais em matéria de política monetária deveriam ser revistas.


Primeiro, deveria ser revista a ideia quase obcecada de inflação estável e baixa como mandato primário, senão exclusivo, do banco central, em nome de um hiato do produto (2) igual a zero. Essa convergência entre o Produto Interno Bruto (PIB) de equilíbrio e o produto observado, também conhecida como "divina coincidência", é como uma bússola para a rota da inflação e, por isso, artifício amplamente usado para calibrar a taxa de juros.


Claro que preços estáveis cumprem um papel altamente relevante para a atividade econômica; inflação relativamente baixa e estável se tornou um patrimônio importante de toda a sociedade brasileira. Mas, crer que banqueiros centrais foquem apenas na inflação é um exagero retórico típico de modelos exclusivamente teóricos.


Para Adrian e Shin (2008) (3), taxas de juros de curto prazo são determinantes do custo de alavancagem e importantes na definição de intermediação financeira nos balanços de bancos e empresas. Assim, ciclos de liquidez e graus de alavancagem podem ser resultados de políticas monetárias. Noutras palavras, longos períodos de taxas de juros muito baixas podem aumentar a probabilidade de ocorrência de crises financeiras, como a de 2008. Por isso, esses autores recomendam que políticas monetárias e estabilidade financeira devam andar juntas.



"Em ambiente de baixa inflação, o juro deve também ficar baixo, o que limita a atuação da política monetária"



Michael Woodford, professor da Universidade de Colúmbia, em Nova York, gasta 800 páginas do seu livro-texto de macroeconomia ("Interest and Prices") amplamente usado e destrinchado nas escolas de economia no Brasil e no mundo sem qualquer referência aos constrangimentos que podem advir do "lado financeiro". Nesta linha, resolvido o problema da "divina coincidência", ou seja, mantido o hiato do produto igual a zero, o banco central se tornaria crível e com elevada reputação. Afinal, é esperado que o produto observado flutue - com menor variância possível - em torno do produto potencial, uma variável não observada e de difícil mensuração. Em 2010, Woodford reconheceu a importância da intermediação financeira na política monetária4.


Desnecessário lembrar que há várias técnicas para se calcular o produto potencial. Afora a importância desta agenda de pesquisa, há uma série de restrições associadas ao seu cálculo, especialmente para seu uso contemporâneo. Importantes economistas, como Roberto Hall e Gregory Mankiw, já alertaram que bancos centrais deveriam suspeitar mais sobre o uso destas métricas. Ainda assim, é amplo e generalizado o uso de argumento de desequilíbrio entre oferta e demanda agregada para justificar alterações na taxa real de juros.


O segundo princípio econômico que deveria ser revisto está associado com a política monetária sob baixas taxas de inflação. Bem sabido, a inflação mundial, especialmente na OCDE, caiu drasticamente para próximo a 2% ao ano, já a partir dos anos 1990; ao mesmo tempo, as volatilidades da inflação e do produto também caíram dramaticamente. Neste contexto, a relação entre inflação passada e inflação corrente - o componente inflacionário conhecido como "inércia"- se enfraqueceu. Mesmo com algum atraso, economias historicamente inflacionárias passaram também a experimentar taxas de inflação controladas.


A partir da década de 1990, economias mundo afora se tornam bem menos inflacionárias. Abriu-se um amplo debate sobre as causas de tal sucesso mundial, até porque os preços do petróleo, bem como o de muitas outras commodities, seguiam em alta.

Vale destacar a euforia dos economistas no que ficou conhecido como a "grande moderação". Para muitos, incluindo ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, problemas como flutuações cíclicas já estavam razoavelmente bem conduzidos pela teoria econômica. A partir de então, o mundo deveria experimentar períodos mais longos e estáveis de crescimento e recessões mais curtas e menos severas.


Voltando à queda da inflação e da variabilidade do produto, como o verificado a partir dos anos 1990, pode-se dizer que as causas para tal fenômeno são diversas. Parte das explicações pode repousar sobre o chamado "Efeito-China", quando os mecanismos de propagação do choque não são os mesmos, sendo que contemporaneamente o trabalho se torna mais tolerante a maiores achatamentos nos salários reais; assim como com a globalização produtiva que intensificou a competição internacional e reduziu substancialmente os custos de produção, provavelmente com as influências dos baixos custos de trabalho advindos da China. É certo que boas práticas monetárias devem também ter levado a que as expectativas de inflação, componente importante na dinâmica da inflação, ficassem muito mais ancoradas.



"O Brasil tem exibido a maior taxa, pelo menos desde 94, independente da política macroeconômica"


O problema, se é que assim devemos dizer, é que em ambiente de baixa inflação as taxas de juros devem também permanecer excessivamente baixas. Isso pode se traduzir em limitações no uso de política monetária em situações adversas, como na crise financeira de 2008, ou em reversões cíclicas mais fortes. O convívio com longos períodos de baixas taxas de inflação com baixas taxas reais de juros pode, também, pelo canal apontado por Adrian e Shin, por exemplo, estimular a formação de bolhas financeiras e seu subsequente estouro.


Em hipótese alguma, não se pretende aqui defender regimes de altas taxas de inflação; mas, ficou evidente, pelas experiências recentes, que não se pode também desejar e perseguir níveis muito baixos de inflação, por um longo período de tempo, mantendo as taxas reais de juros persistentemente baixas.


Terceiro, o pilar "um instrumento, uma meta" da regra ótima de política monetária se desmontou, definitivamente. Afinal, até a crise financeira de 2008, os bancos centrais triunfaram sobre um mundo simplificado em um instrumento - taxa de juros de curto prazo -, e em uma meta - estabilidade de preços. E depois da crise? Quais instrumentos, quais metas? O que parece normal a partir de então?


A teoria da política monetária precisa dar respostas reais a problemas reais. Como tal, regulações micro e macroprudenciais financeiras aparecem como complemento importante na política monetária. Seu uso combinado com taxas de juros leva aos mesmos resultados sobre a inflação desejada que o uso exclusivo da taxa de juros, mas com imensas vantagens. Primeiro, a taxa de sacrifício - medida pela queda no produto ou aumento na taxa de desemprego - é bem menor quando se deseja reduzir taxas de inflação. Segundo, esse novo arranjo de política monetária aumenta a potência da própria taxa de juros com instrumento de controle de preços. Por fim, ao reduzir o grau de alavancagem e volatilidades nos mercados financeiros com mais estabilidade nas operações de crédito, evita a formação de bolhas, especialmente em mercados financeiros e em setores intensivos em crédito, como no mercado imobiliário, entre outros.


Assim, para banco central que se preocupa com estabilidade do sistema financeiro doméstico, o uso complementar de medidas micro e macroprudenciais é mais apropriado do que a aplicação exclusiva de Regra de Taylor padrão, a regra que diz que pressões inflacionárias devem ser respondidas com altas nas taxas reais de juros de curto prazo.


Vale a ressalva de que mesmo os melhores modelos e indicadores antecedentes de bolhas em preços de ativos são imperfeitos, o que dificulta, em muito, a formalização de uma nova regra monetária expandida para contemplar não somente a taxa de juros, o produto potencial, e a inflação, mas também os preços de ativos. Neste caso, talvez, valesse mesmo a máxima de Alan Blinder, ex-vice-presidente Federal Reserve Board (Fed, banco central americano), de que política monetária terá sempre elementos de arte assim como de ciência.


Assim, ainda em fase de "recolher os cacos da teoria econômica" deixados à deriva após a tempestade financeira, os economistas parecem mais céticos quanto ao que parecia convencional, simples e prático. E muito céticos quanto ao que causou a fase da "grande moderação". De qualquer forma, a "divina coincidência" não parece mais tão atrativa aos olhos acurados de autoridades econômicas e acadêmicos. Registra-se, claro, a recorrente controvérsia entre economistas, e mesmo alguns respeitáveis da classe que ainda acreditam que o desequilíbrio entre oferta e demanda agregada justifica com exclusividade decisões de banqueiros centrais.




Vão-se as ideias, ficam seus seguidores.


Como esta nova abordagem pode ser apropriada para a análise da economia brasileira?
Desnecessário lembrar que a boa qualidade de políticas econômicas e sociais colocou o país de volta ao trilho do desenvolvimento econômico. Recolocou, na agenda, questões ligadas ao crescimento de longo prazo, com responsabilidade fiscal, estabilidade de preços e inclusão social. Em menos de uma década, o país empreendeu um novo modelo de nação.


Mas, é claro que um importante problema macroeconômico ainda persiste, a saber, a elevada taxa real de juros de curto prazo. O Brasil tem exibido a maior taxa de juros, pelo menos desde 1994; ou seja, há quase duas décadas, independente do arranjo de política macroeconômica ou das transformações ocorridas, a taxa real de juros de curto prazo, mesmo que esteja no caminho da convergência aos níveis internacionais, ainda é persistentemente elevada. Depois do grande desafio de superar a inflação inercial e o quadro de quase hiperinflação, muito provavelmente esse se constitui em novo desafio de governo.


Em um olhar rápido pela nossa história recente, entre 1994 e 1998, a justificativa para as altas taxas reais de juros no Brasil era a adoção do regime de câmbio fixo. O fato é que raramente se viu na história monetária internacional taxas de juros tão elevadas quanto aquelas praticadas na fase de regimes de câmbio fixo aqui no Brasil. Apesar das desvalorizações cambiais controladas dentro de uma banda móvel de flutuação, as taxas reais de juros praticadas pelo Banco Central do Brasil eram superiores às da Argentina, por exemplo, que estava sob um rígido e mal desenhado regime de comitê de moeda.


Entre 1999 e 2002, as explicações passavam pelo elevado prêmio de risco associado à dívida pública, pela sua denominação - em moeda estrangeira e pós-fixada - e maturidade - curto prazista. Naquele momento, o Brasil era ranqueado com "grau de especulação" pelas agências de classificação de risco. Para muitos economistas em organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, naquele momento o Brasil era tido como "serial defaulter" (caloteiro em série) e "debt intolerant" (intolerante à dívida, como os intolerantes à lactose), ou ainda "severamente endividado". Tantos adjetivos não poderiam justificar taxas de juros menores do que aquelas praticadas.


Fato curioso é que mesmo países "especulativos", com risco país similares e tidos como "caloteiros", tinham taxas de juros menores do que as praticadas no Brasil.
A partir de 2003, a taxa real de juros brasileira começou a manifestar uma clara tendência de convergência para níveis internacionais. Mesmo em queda, era e continua sendo ainda a maior taxa de juros mundial. Neste momento, os riscos de crédito e soberano despencavam e com eles a taxa real de juros declinava, mas ainda se mantinha a mais elevada do mundo.


Os economistas trataram de sacar um conjunto de novas explicações. Primeiro, apareceu a explicação associada com a "incerteza jurisdicional" - a virtual má qualidade das instituições - associada com restrições aos fluxos de capital. Mesmo a liberalização da conta de capital verificada na década de 1990 não teria sido suficiente para aumentar a conversibilidade financeira do país. Não demorou muito para se observar que um grande número de países com riscos institucionais tão elevados quanto ao nosso e moeda não tão conversíveis, apresentavam taxas de juros relativamente menores que a brasileira.


Mais recentemente, o problema se voltou para o baixo nível de poupança doméstica. A inovação está no fato de que a baixa poupança nacional é explicada pela generosidade do Estado de Bem- Estar Social, consolidado na Constituição Federal e em políticas previdenciárias e sociais. Como prescrição, profundas reformas políticas, e alterações nos interesses sociais e nos incentivos, deveriam ser levadas a cabo para experimentarmos baixas taxas reais de juros. É como se o modelo teórico concluísse que toda a realidade brasileira está errada, não o modelo.


Mesmo modelos econômicos mais completos não conseguiam explicar as taxas reais de juros praticadas no país. De qualquer forma, gradualmente a taxa de juros convergia para níveis praticados nas principais economias mundiais. A crise financeira de 2008 interrompeu temporariamente este processo e, com ela, vieram incertezas diversas, seja sobre o tempo e a forma como viriam as recuperações econômicas, seja sobre como o Brasil sairia deste processo. Adicionam-se, ainda, as dúvidas sobre como as políticas macroeconômicas deveria ser conduzidas, como discutido anteriormente.


Para o Brasil de hoje, observando o debate nacional, temos duas alternativas. O caminho convencional, seguindo o receituário tradicional de política econômica como se nada tivesse mudado. Manter orientações de política conforme os modelos teóricos de sempre, sob regras supostamente ótimas de política monetária, e crença na "divina coincidência".


Ou pensar a realidade a partir de mudanças significativas em curso nas economias mundiais, assim como as transformações já verificadas no mercado doméstico, e construir uma agenda de crescimento sustentado na expansão do investimento, na melhoria da qualidade de políticas públicas e da educação, no adensamento de cadeias produtivas com promoção da competitividade via inovação tecnológica, entre outros. Incentivos à ampliação e alongamento da poupança de famílias e governo, promoção do mercado de crédito privado de longo prazo, e um sistema de formação de preços e salários mais flexíveis devem fazer parte desta agenda.


O fato observado e surpreendente foi que assim que a agenda do crescimento econômico, com responsabilidade fiscal, estabilidade de preços e inclusão social, foi colocada na mesa, o Brasil começou a se transformar. Aprendemos que o crescimento econômico transforma um país, muda o mercado doméstico de bens e de trabalho; consolida importantes setores produtivos; e desenvolve um mercado de crédito amplo e sólido; muda a confiança da sociedade em investir e produzir. Com o crescimento, pode-se observar uma profunda transformação na percepção sobre o país por parte de investidores estrangeiros, organismos multilaterais e agências de classificação de risco. O Brasil tem provado que é possível manter a inflação sob criterioso controle e pautar temas de crescimento econômico de longo prazo. Manter essa agenda parece o caminho mais seguro e natural em um mundo de incertezas e modelos econômicos em reconstrução.


*As opiniões contidas neste artigo não representam a visão do Ministério da Fazenda.




Gostaria de agradecer os comentários recebidos de Júlio Alexandre, Cleomar Gomes e Lígia Ourives.


1 Blanchard, O. et all. 2010. Rethinking Macroeconomic Policy. IMF Position Note, 12 de Fevereiro de 2010. http://www.imf.org/
2 Por hiato do produto entende-se a diferença entre o produto (ou PIB, produto interno bruto) de equilíbrio e o produto observado, que de fato acontece. Quando o hiato do produto se iguala a zero supostamente a inflação se encontra em nível desejável.
3 Adrian, T. e Shin, H. S. 2008. Financial Intermediaries, Financial Stability, and Monetary Policy. Federal Reserve Bank of Kansas City Simposium at Jackson Hole, agosto de 2008.
http://www.kansascityfed.org/publicat/sympos/2008/shin.08.06.08.pdf
4 Woodford, M. 2010. Financial Intermediation and Macroeconomic Analysis.
www.columbia.edu/~mw2230/JEP%20draft%203.pdf


Márcio Holland é secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EESP) e pesquisador CNPq.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A LONGA TRAVESSIA

Por Ilan Goldfajn Valor 27/06/2011




Parece uma eternidade. Mas foi há menos de uma década. O circo estava pegando fogo e eu me sentei para escrever um texto (1). Não era algo natural. A crise de 2002 estava instalada e, na diretoria do Banco Central (BC), nos ocupávamos do intenso dia a dia. O Brasil estava no meio do furacão e a comunidade internacional duvidava que a dívida pública brasileira seria paga. O texto argumentava que não havia razões econômicas para essa dúvida e que a trajetória da dívida futura era declinante (tinha projeções até o distante 2011!). Deve ter sido um dos textos mais contestados da minha carreira. O final, como sabemos, foi feliz. O Brasil teve uma década de sucesso e a dívida declinou de 63%, na época, para em torno de 40% do Produto Interno Bruto (PIB), hoje.


Mas nessa viagem ao passado, um fenômeno salta aos olhos. Na época, projetávamos manutenção dos superávits fiscais primários, crescimento razoável, câmbio mais apreciado (no auge da crise chegou a cerca de US$ 4 reais) e juros menores. Tudo mais ou menos em linha com o ocorrido. Mas os juros reais no Brasil permanecem acima do padrão internacional, mesmo de países de similar desenvolvimento.


Não quer dizer que os juros tenham permanecido nos mesmos patamares do passado. De fato, a economia brasileira tem experimentado uma tendência de queda dos juros reais nos últimos anos, principalmente após a adoção do regime de metas de inflação em 1999. As taxas de juros reais básicas no Brasil recuaram de 11,4% ao ano, em média, no período entre janeiro de 2000 e junho de 2004, para 9,7% entre julho de 2004 e dezembro de 2008, e para próximo de 7% mais recentemente. Mas esta ainda é uma taxa muita alta para uma economia estável e próspera como o Brasil nos últimos anos.


Como mostrado por Bacha (2), há evidências empíricas de redução do juro real no Brasil em relação ao resto do mundo, e a diferença entre essas duas taxas diminuiu com a adoção do regime de metas de inflação. No entanto, controlando para os ciclos econômicos no Brasil e no resto do mundo, e para a inércia do ajustamento, a diferença entre as duas taxas permanece elevada.



"Redução do diferencial de juros exige ajuste fiscal que controle o crescimento dos gastos do governo"


Não considero que o alto nível da taxa de juros no Brasil seja um fenômeno permanente. Na sua travessia, o Brasil precisa gerar as condições para passar a ter uma taxa de juros baixa. É uma tarefa difícil, mas não intransponível. Há vários casos bem-sucedidos de redução de juros em países emergentes. A Turquia, no começo de 2003, amargava juros reais (acima da inflação) de 25% ao ano, e depois conseguiu que suas taxas convergissem para níveis de um dígito. A Polônia derrubou sua taxa de juros reais de 9% ao ano para 3%, a partir de 2001. Na América Latina, ocorreu o mesmo. No Chile, as taxas caíram de 8% para 3%, assim como houve quedas significativas no Peru.


A pergunta no Brasil é por que a transição para um patamar de juros reais tem sido tão lenta?


Tenho preferência pelas explicações fundamentais. Entendo a taxa de juro real de equilíbrio (ou neutro) como aquela que permite ao Brasil crescer no seu potencial, sem gerar pressões inflacionárias. Essa taxa depende das condições econômicas como a estabilidade, o risco percebido, a produtividade, a política fiscal (crescimento de gastos), assim como das distorções ainda existentes da economia brasileira. Depende também de quanto os brasileiros estão dispostos a poupar, em vez de consumir hoje. Quanto mais os indivíduos preferem o consumo no presente, maior é taxa de juro real de equilíbrio.


A alternativa de os juros altos serem resultado de equívocos de política monetária (mais altos que o necessário) não é compatível com os dados, pois teriam de ter durado por décadas e levariam a forças deflacionárias, com inflação sistematicamente abaixo das metas, o que não tem sido o caso.


O entendimento de por que os juros ainda são tão altos passa pela compreensão cuidadosa de seus determinantes. Na busca pelos determinantes é interessante distingui-los pela sua relevância temporal na taxa de juros de equilíbrio. Alguns podem impactar a taxa de equilíbrio apenas no curto prazo, enquanto outros mudam sua trajetória de longo prazo.


O juro real neutro de longo prazo depende dos fundamentos da economia, de fatores estruturais, alguns mencionados acima, como a produtividade, preferências intertemporais, prêmio de risco soberano, dívida pública, prêmio de risco de inflação, questões institucionais, etc. São fatores diretamente associados ao comportamento da poupança no longo prazo.



"O melhor a fazer é conduzir a política monetária de forma pragmática e avaliar continuamente o seu impacto"



O juro real de equilíbrio de curto prazo depende do juro real de longo prazo e de elementos conjunturais. Mudanças temporárias no ritmo de crescimento da economia global, assim como acelerações cíclicas no gasto do governo ou alterações na taxa de câmbio real afetam o juro real de equilíbrio no curto prazo.


Introduzo aqui já a minha preferência pela explicação da insuficiência de poupança doméstica, como já introduzido por André Lara Resende (3) neste espaço, como explicação para a manutenção dos juros altos nessa transição para a normalidade. Os juros servem para inibir o consumo privado e estimular a poupança, na ausência de poupança pública suficiente para financiar os necessários investimentos.


Estimativas de um estudo recente com Aurelio Bicalho (4) identificam que a redução do diferencial de juros em relação a outras economias exige um ajuste fiscal que controle o crescimento dos gastos do governo.


Os resultados também revelam que o prêmio de risco-país, a dívida pública em proporção do PIB e o crédito em proporção do PIB, todos com defasagens, afetam o nível da taxa de juro real e explicam a trajetória de queda observada nos últimos anos. Mostram também que a taxa de juros real de equilíbrio de longo prazo tem se reduzido nos últimos anos, mas o nível estimado continua bastante elevado quando comparado a outras economias emergentes.


O impacto do prêmio de risco e da dívida pública na taxa de juro real é coerente com outros resultados encontrados na literatura. As estimativas mostram também que o aumento do crédito em proporção do PIB contribui, com longas defasagens, para a redução do juro real de equilíbrio de longo prazo. Essa relação pode ser reflexo do impacto de avanços na estrutura institucional do mercado financeiro, que estaria sendo captada pela variável crédito. Uma melhora na estrutura dos mercados poderia, por exemplo, ampliar as opções de ativos em termos de retorno, risco e liquidez disponíveis para os poupadores. Isso funcionaria como um estímulo à poupança, o que diminuiria a taxa de juro real de equilíbrio. O aumento do crédito na economia pode estar relacionado a esse avanço nas estruturas dos mercados, com o desenvolvimento de novos produtos, o que tenderia a reduzir a taxa de juros. Mas para que o crédito contribua para a redução da taxa de juro real de equilíbrio de longo prazo, é necessário que sua expansão seja determinada por fatores estruturais, como a redução da assimetria de informação, avanço institucional que acelere a recuperação do colateral e desenvolvimento de novas estruturas financeiras (caso contrário, o efeito no curto prazo pode ser o inverso).


Mas há outras explicações na literatura para a taxa de juros elevada. Uma delas é a existência de incerteza jurisdicional e ausência de conversibilidade da moeda desenvolvida por Persio Arida, Edmar Bacha e Andre Lara Resende (5). A incerteza jurisdicional afeta a poupança e evita o desenvolvimento de um mercado de crédito de longo prazo. A ausência da conversibilidade da moeda pressiona as taxas de juros de curto prazo, pois os poupadores exigem uma taxa maior para alocar seus recursos no mercado de dívida local. Esses fatores institucionais afetam a curva de poupança doméstica e o fluxo de capitais, influenciando a taxa de juro real de equilíbrio.


Considerando dados de diversos países, os estudos mostram que o efeito da dolarização (ou a falta de conversibilidade da moeda) é significativo (6), embora pequeno, em explicar o nível mais alto da taxa de juro real no Brasil. Os resultados também evidenciam a importância do risco de crédito soberano em explicar o nível da taxa de juro real. Países de classificação de risco grau de investimento possuem taxas de juros reais de cerca de 2 pontos percentuais mais baixas do que países com classificação de risco pior. No longo prazo, essa diferença pode chegar a 4 pontos percentuais.


A trajetória recente dos juros parece confirmar os resultados do estudo com Aurelio Bicalho. Esse identifica que a recente crise internacional reduziu temporariamente a taxa de juro de equilíbrio de curto prazo, mas o mesmo não parece ter ocorrido com a taxa de equilíbrio de longo prazo. A queda da atividade econômica global reduziu o crescimento do país, permitindo que a taxa de juro real ficasse abaixo da taxa neutra de longo prazo para equilibrar a economia através dos estímulos ao consumo e ao investimento. Notamos, também, que a incerteza sobre o nível do juro real de equilíbrio de curto prazo aumentou substancialmente durante a crise internacional. Essa incerteza refletiu, em grande medida, a intensidade do impacto do crescimento mundial na economia doméstica, além da intensidade dos impactos das medidas anticíclicas adotadas durante a crise.


O impacto da crise no juro de equilíbrio de curto prazo teve consequências na condução da política econômica naquele momento. No auge da crise, o Banco Central reduziu a taxa de juros para estimular o crescimento. Ao mesmo tempo, o governo adotou uma política fiscal expansionista via aumento de gastos e redução de impostos. Além disso, utilizou o canal de crédito como instrumento para incentivar a atividade econômica. A partir do momento em que essas medidas começaram a atuar na economia e o mundo voltou a crescer, a taxa de juro real de equilíbrio de curto prazo inverteu a sua trajetória de queda e passou a subir em direção à taxa neutra de longo prazo.


No início de 2010, as estimativas mostravam que a taxa de equilíbrio de curto prazo estava próxima da neutra de longo prazo. Logo, os estímulos monetários e fiscais deveriam ser retirados, pois o risco era um aquecimento exagerado da atividade econômica, com elevação das pressões inflacionárias. No final de 2010 e início de 2011, esses estímulos começaram a ser retirados.


A dinâmica da taxa de juros real de equilíbrio é de suma relevância para a condução da política monetária. É através dos desvios entre a taxa de juros efetiva, que é afetada pelas decisões do Banco Central, e a taxa de juro de equilíbrio de longo prazo que a autoridade monetária estimula ou contrai a demanda agregada com o intuito de alcançar seu objetivo final, que é o de manter a inflação na meta.


É importante reconhecer que há um alto grau de incerteza nas estimativas das taxas de juros de equilíbrio. As evidências internacionais mostram que é bastante incerta a estimativa da taxa de juro real de equilíbrio em diferentes países, mesmo para aqueles com taxas muito inferiores e com menor volatilidade do que a taxa do Brasil. De fato, os intervalos das estimativas para a taxa de juro real de equilíbrio em diversos países revelam o grau de incerteza que cerca essas variáveis. É comum um intervalo de 1 ponto nessas estimativas, mesmo para economias com níveis baixos de taxas de juros. No Brasil, onde a taxa de juros tem tido uma tendência de queda, como evidenciam os dados e as nossas estimativas, e o nível da taxa ainda é bastante elevado, quando comparado aos padrões internacionais, é provável que o grau de incerteza seja ainda mais alto.


Dadas as elevadas incertezas associadas às medidas das taxas de equilíbrio, acreditamos que o melhor que a autoridade monetária possa fazer é conduzir a política monetária de forma pragmática, avaliando continuamente o impacto de suas ações sobre a economia. Deste modo, a política monetária deve continuar baseando-se nos sinais advindos da inflação, da atividade e de outras variáveis macroeconômicas, permitindo que mudanças estruturais sejam percebidas sem mais demoras.


As evidências acima sugerem que a opção da sociedade por gastos públicos crescentes (vários destes legítimos) tem contribuído para retardar o processo de convergência da taxa de juro real de equilíbrio para níveis internacionais tanto no curto prazo quanto no longo prazo. A redução do crescimento dos gastos correntes, tudo o mais constante, aumentaria a poupança da economia e reduziria o juro real de equilíbrio. Uma queda consistente dos juros possibilitaria um conjunto de desenvolvimentos que não são viabilizados com juros altos, como o alongamento dos horizontes dos poupadores e dos investidores, fundamental ao financiamento do investimento no Brasil.


A estabilidade macroeconômica e a credibilidade da autoridade monetária têm exercido papel fundamental na redução dos prêmios de risco, permitindo a queda da taxa de juros real de equilíbrio de longo prazo. Aliado a isso, uma política fiscal voltada para a redução dos gastos públicos contribuiria para acelerar esse processo e fazer com que no futuro o Brasil tenha taxas de juros reais mais próximas dos padrões internacionais.


1 Goldfajn, I. Há razões para duvidar de que a dívida publica é sustentável? Nota Técnica do Banco Central do Brasil número 25, Julho 2002.
2 Bacha, E. Além da Tríade: Como Reduzir os Juros? Novos Dilemas da Política Econômica - Ensaios em Homenagem a Dionísio Dias Carneiro, Eds: Bacha, E. e De Bolle, M., LTC, 335p, 2011
3 Lara Resende, A. Juros: Equívoco ou jabuticaba, Valor 16/06
4 Goldfajn, I. e Bicalho, A. A Longa Travessia para a Normalidade: Os Juros Reais no Brasil. Novos Dilemas da Política Econômica - Ensaios em Homenagem a Dionísio Dias Carneiro, Eds: Bacha, E. e De Bolle, M., LTC, 335p, 2011
5 Arida, P., Bacha, E., e Lara-Resende, A. Credit, Interest, and Jurisdictional Uncertainty: Conjectures on the Case of Brazil. IEPE/CdG, 1-25, 2004.
6 Bacha, E., Holland, M. e Gonçalves, F. A Panel-Data Analysis of Interest Rates and Dollarization in Brazil. Revista Brasileira de Economia. 63, n.4, 341-360, 2009


Agradeço a Aurelio Bicalho pela contribuição a este artigo.


Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú Unibanco e sócio do Itaú BBA.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

FINANÇA GLOBAL E A MISÉRIA DA MACROECONOMIA




Por Luiz Gonzaga Belluzzo - Valor 22/06/2011








O sistema monetário internacional desenhado em Bretton Woods nos idos de 1944 almejava a constituição de um conjunto de regras destinado a prevenir a instabilidade que sacudiu a economia mundial nos anos 20 e 30 do século XX. As novas regras determinavam a conversibilidade da moeda reserva à razão de US$ 35 por onça-troy; adoção de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis; limitada mobilidade de capitais; cobertura de déficits em transações correntes atendida por uma instituição pública multilateral.
Em sua concepção original, o Fundo Monetário Internacional (FMI) deveria funcionar como um provedor de liquidez aos países com desequilíbrio de curto prazo no balanço de pagamentos. O artigo VII dos estatutos do Fundo Monetário - a chamada cláusula da "moeda escassa" - permitia a adoção de controles cambiais em situações de agudo desequilíbrio do balanço de pagamentos.

Câmbio e juros, nesse sistema, eram preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade eram vistas como essenciais para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza envolvidos nas decisões de produção e investimento. Este "modo de regulação" tinha um duplo objetivo: construir um sistema monetário realmente internacional, favorável à expansão do comércio entre as nações e impedir que condicionantes ou choques externos passassem a comandar a política econômica doméstica, definindo a trajetória das economias nacionais.

"As inovações financeiras e a integração dos mercados promovem a exuberância do crédito"

Os controles cambiais - sobretudo na conta de capital - eram prática corrente: as políticas monetárias e fiscais (bem como os sistemas financeiros nacionais) deveriam estar voltadas para a sustentação de taxas elevadas de crescimento econômico e para a maximização do bem-estar dos cidadãos. Essa etapa terminou no "dollar glut" e, em 1971, na decretação unilateral do fim da conversibilidade da moeda americana com ou ouro à razão de US$ 35 por onça-troy.

Superada a crise da estagflação e da baixa "produtividade" dos anos 70 do século passado, a elevação da taxa de juro deflagrada por Paul Volker em 1979 deu novo impulso à "expansão americana". À sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos impuseram a liberalização financeira "urbi et orbi", assim como impulsionaram a metástase produtiva para o Pacífico dos pequenos tigres e novos dragões. Nos últimos 30 anos, a desregulamentação dos mercados e a crescente liberalização dos movimentos de capitais alteraram profundamente o jogo das regras.

A partir de 1973, os regimes cambiais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se, diziam, de escapar das aporias da "trindade impossível", ou seja, da convivência entre taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária doméstica. As palavras de ordem do novo consenso proclamavam as virtudes da abertura comercial, da liberalização das contas de capital, da desregulamentação e da "descompressão" dos sistemas financeiros domésticos.

Um após outro, os países de moeda não conversível promoveram a abertura financeira. Nos países centrais, a desregulamentação financeira rompeu os diques de segurança erigidos depois da crise dos anos 30. Nos EUA, tais restrições à finança buscavam impedir que os bancos comerciais se envolvessem no financiamento de posições "especulativas" nos mercados de riqueza (ações e imóveis), com consequências indesejáveis para a solidez dos sistemas bancários.

"Mais uma vez, os EUA descarregam seus interesses nacionais sobre gregos, troianos e brasileiros"

Com o benefício da visão retrospectiva, é fácil dizer que a associação entre liberalização das contas de capital e desregulamentação financeira provocou a excitação dos ciclos de crédito, a formação de bolhas nos mercados de ativos e a sucessão de crises bancárias, cambiais e de endividamento soberano na periferia.

Alan Greenspan, às vésperas de sua saída da presidência do Federal Reserve (Fed, banco central americano), chamou a atenção para as alterações provocadas pela globalização nas relações entre desemprego e inflação. Ele dizia que "durante as últimas décadas, a inflação caiu sensivelmente no mundo inteiro, assim como a volatilidade da economia. A globalização e a inovação parecem elementos essenciais de qualquer paradigma capaz de explicar os eventos dos últimos 10 anos."

Em seu livro "Interest and Prices", o economista Michael Woodford nos presenteou com uma exposição sobre o regime de metas. Woodford, apoiado "nos escritos monetários (não quantitativistas) de Knut Wicksell" se propõe a definir as condições de existência de uma regra ótima de reação do banco central diante de alterações antecipadas no nível geral de preços.

Os bancos centrais buscam coordenar as expectativas dos formadores de preços e dos detentores de riqueza, de modo a consolidar a confiança em sua atuação, atenuando a volatilidade do nível geral de preços, da renda e do emprego. O livro de Woodford interpreta Wickssel de forma peculiar. O autor constrói uma hipotética economia monetária na qual o crédito está praticamente ausente. Wickssel, na verdade, caminhou para a concepção de uma economia de "crédito puro" para examinar os processos cumulativos de inflação e deflação.

A obra de Woodford não menciona, sequer no glossário, a expressão "exchange rate". Isto, imagino, pode significar que nos países de moeda conversível, as flutuações do câmbio apenas têm efeitos "reais" na medida em que afetam os preços relativos entre "tradables" e "non tradables". Mas Woodford parece considerar irrelevantes as flutuações do câmbio para a formação das expectativas dos agentes em uma economia de preços rígidos. Woodford não surpreende, portanto, ao negar relevância à globalização dos mercados de bens e serviços, ativos financeiros e de fatores de produção sobre as regras de atuação dos bancos centrais.

Na contramão, o economista do Banco para Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), Cláudio Borio, rebateu os argumentos de Woodford: "Nossas descobertas sugerem que os fatores globais se tornaram mais importantes do que os fatores domésticos". Borio se refere às mudanças importantes que afetaram, antes da crise financeira, as condições da oferta e da demanda na economia globalizada. São elas:
1) A grande empresa manufatureira se deslocou para regiões onde o custo unitário da mão de obra é sensivelmente mais baixo. Nesses mercados, a oferta ilimitada de mão de obra impede que os salários acompanhem o ritmo de crescimento da produtividade.
2) As elevadas "taxas de exploração" nos emergentes asiáticos incitaram a rápida criação de nova capacidade produtiva na indústria manufatureira, com ganhos de produtividade, acirrando a concorrência global entre os produtores de manufaturas.
3) As políticas de comércio exterior dos emergentes em processo de "perseguição" industrial combinam saldos comerciais alentados, acumulação de reservas e políticas de defesa do câmbio real.
4) Os Estados Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo e profundo absorveram um volume de capitais externos muito superior aos déficits em conta corrente. Borio procura demonstrar que em um mundo em que prevalece a mobilidade de capitais a determinação não vai do déficit em conta corrente para a "poupança externa". É a elevada liquidez e a alta "elasticidade" dos mercados financeiros globais que patrocinam a exuberante expansão do crédito, a inflação de ativos e o endividamento das famílias viciadas no hiper-consumo.


A inflação ia muito bem, obrigado.

A combinação entre esses fenômenos - baixa inflação e excessiva elasticidade do sistema financeiro - acentuou o caráter pró-cíclico da oferta de crédito e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos nos balanços de famílias, empresas e países - com sérias consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais. A questão central, na opinião do economista do BIS, reside no crescimento excepcional dos fluxos brutos de capital entre as economias centrais, particularmente entre Wall Street e a City londrina. Isso significa que as mudanças patrimoniais entre os agentes privados e públicos (bancos, empresas, governos e famílias) foram muito mais intensas do que as refletidas no financiamento do déficit em conta corrente.

"Assim, mesmo que os Estados Unidos não apresentassem déficits externos ao longo dos anos 90 (e da primeira década do século XXI), o ingresso de capitais teria sido robusto."

O autodesenvolvimento do sistema financeiro, investido em seu formato global e incitado por sua "vocação inovadora", inverteu as relações macroeconômicas que frequentam os manuais e os cursos das universidades mais afamadas do planeta. As inovações financeiras e a integração dos mercados promovem a exuberância do crédito, a alavancagem temerária das famílias consumistas e, obviamente, a deterioração dos balanços de credores e devedores. É esse "arranjo" que gera o déficit em conta corrente e não o contrário.

Por isso, Borio insiste na criação de instrumentos destinados a prevenir a excessiva inclinação dos sistemas financeiros a desatar esses movimentos pró-cíclicos do crédito. Entre a gama variada de tais instrumentos, Borio separa os de natureza preventiva e aquele que possuem caráter discricionário. Entre os primeiros estão os requerimentos de capital, as relações entre os empréstimos e o valor dos ativos e medidas para prevenir descasamentos de moedas.

Borio suspeita que os instrumentos de precaução tenham eficácia relativa na avaliação dos riscos diante das novas articulações entre os critérios de concessão do crédito e o valor dos ativos. As sinergias entre essas "conjeturas" foram decisivas para deflagrar, nos episódios recentes, as interações perversas entre o movimento de preços dos ativos e a euforia descontrolada na avaliação dos riscos de crédito. Requerimentos de margem mais rigorosos e restrições quantitativas aos empréstimos deveriam ter sido utilizados com maior frequência para impedir a alavancagem excessiva e imprudente, atuando em conjugação com os instrumentos precaucionais.

É compreensível que os asiáticos utilizem, juntamente com a taxa de juro, um arsenal diversificado de instrumentos de política monetária e creditícia. Entre outras coisas, eles sabem ou aprenderam que os excessos nos juros provocam efeitos indesejáveis no câmbio. Isso ocorre, sobretudo, neste momento em que os "yields" estão ralos nos países desenvolvidos, os Piigs estão quebrados e a turma da bufunfa se dedica ao conhecido esporte do "carry trade", o que inclui a formação de posições favoráveis às moedas dos emergentes nos mercados futuros.
Já entre 2004 e 2008, os preços de energia, de alimentos e de matérias-primas começam a pressionar os índices de inflação e a contrabalançar os efeitos deflacionários da escalada industrial chinesa. No momento em que a crise promoveu a derrocada do nível de atividade global - deixando atônitos os mercados financeiros - os preços das commodities despencaram.

Providenciado o socorro pela mão visível do Estado, a inflação de commodities voltou com força redobrada. Nessa rápida e gloriosa recuperação, a pronta reação dos emergentes asiáticos, sobretudo da China, foi fator importante. Mas os analistas, em geral, olham para outro lado quando se trata de avaliar a importância dos mercados futuros de commodities tangidos pelas operações quantitativas do Fed.

Confirmando os trabalhos do saudoso economista Robert Triffin, os EUA, mais uma vez, ignoram o caráter de moeda-reserva do dólar e descarregam seus interesses nacionais sobre a cabeça de gregos, troianos e brasileiros. A desvalorização do dólar dá força à inflação de commodities e, ao mesmo tempo, valoriza as moedas do resto do mundo, com deferência especial para os exportadores de commodities. Impulsionados pelo tsunami de liquidez que assola os mercados globais, as instituições financeiras, fundos e assemelhados continuam a apostar na valorização de ativos.

Entre 2003 e 2007 a economia brasileira empreendeu uma respeitável redução de sua vulnerabilidade externa. A balança comercial foi a "estrela" dessa façanha. Benfazeja, a situação internacional empurrou o superávit na conta de mercadorias para além os US$ 40 bilhões em 2007, às vésperas da crise.

A elevação dos preços das commodities e os diferenciais de juros, em uma conjuntura internacional de rendimentos modestos, ensejaram simultaneamente, a ampliação do saldo comercial, o rápido crescimento das importações, acumulação de reservas acima de US$ 300 bilhões e a valorização do real. Esses resultados animaram alguns analistas a comemorar a entronização do país na categoria de "investment grade".

É recomendável, porém, cautela e modéstia quando o ambiente internacional transita de uma conjuntura excepcionalmente favorável para outra em que prevalece a incerteza. A euforia provoca o descuido. A valorização do real incentivou a elevação do endividamento de bancos e empresas em moeda estrangeira. Isso torna os balanços privados mais sensíveis a uma reversão dos fluxos de capitais por conta do arriscado "descasamento" de moedas, fenômeno de sobejo conhecido, mas sempre ignorado pelos brasileiros. É ilusão imaginar que o passivo externo líquido - construído pelo endividamento privado - é irrelevante. Ainda mais ilusório é supor que o regime de câmbio flutuante vai resistir a uma eventual reversão do fluxo de capitais.

No "lado real", as últimas cifras da balança comercial revelam que a maioria dos setores da indústria de transformação (borracha e plásticos, máquinas, produtos de metal, química, eletrônica, material de transporte, têxtil e vestuário) apresentam déficits crescentes em suas transações com o exterior. A indústria de transformação brasileira, em seu conjunto, apresentou um déficit de mais de US$ 34,7 bilhões em 2010. O superávit comercial resiste por conta das commodities.

O choque de preços de alimentos e energia que ora sacode o planeta, bem como sua generalização promovida pelo aquecimento da demanda doméstica, suscitou uma nova rodada de elevação dos juros básicos - já bastante parrudos - e revigorou a valorização da moeda nacional.

É legítimo debater se o BC atuou de forma tempestiva. A economia brasileira tem revelado a alta sensibilidade dos preços dos bens comercializáveis a choques externos. Ademais, as tarifas dos serviços públicos e o mercado financeiro estão contaminados pela indexação. A dinâmica da dívida pública acusa imediatamente os efeitos da elevação das taxas de juros, por conta da indexação dos títulos à Selic. Essa é a dimensão perversa da "memória inflacionária", embora confortável para os chefes de tesouraria, é negativa para o desenvolvimento do mercado de capitais doméstico.

Uma economia de moeda não conversível e com indexação financeira está submetida a severos constrangimentos: a estabilização da trajetória da dívida exige, em tais condições, a obtenção superávits fiscais. Poucos discordam da necessidade imperiosa, neste momento, da coordenação entre as políticas fiscal, monetária e de crédito com o propósito de fazer a inflação regredir para o centro da meta. Mas, a economia emergente, "bola da vez" está indefesa diante do livre ingresso de capitais. Nessa toada, o otimismo dos mercados erige desequilíbrios perigosos nos balanços de empresas, bancos, governos e famílias.



O texto sintetiza e desenvolve trabalhos anteriores do autor


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo é ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

Este é o sétimo de uma série de artigos sobre a conjuntura econômica, com foco nos problemas de câmbio, juros e inflação, feitos por renomados economistas a pedido do 'Valor'. Sexta-feira publicaremos o artigo de José Luis Oreiro e Luiz Fernando de Paula

terça-feira, 21 de junho de 2011

A TAXA DE JURO NATURAL E A AMAZONIA




Por Antonio Delfim Netto - VALOR - 21/06/2011







A mais óbvia razão pela qual os economistas não foram capazes de antecipar a tragédia que se preparava no mercado financeiro internacional, e que se concretizou em 2008, talvez resida no fato que a Teoria Macroeconômica e a Teoria da Economia Financeira foram separadas, a ponto de se ignorarem, contrariamente ao sugerido por Keynes e Fisher. James Tobin chamou a atenção para isso em meados dos anos 80 do século passado. Uma provocação curiosa a respeito dessa questão. Aquela separação não encontrou eco na conflagrada economia marxista (Hilferding, Luxemburgo, etc.). Marx, aliás, já advertira que "quando há um colapso total do crédito, nada mais conta, só o pagamento em moeda...e que legislações bancárias como a de 1844-45 (na Inglaterra) podem intensificar a crise monetária. Profeticamente, acrescentou, "nenhuma legislação bancária pode eliminar a crise", como mais um século depois estamos aprendendo...



O Brasil está vivendo um momento interessante depois de ter superado muito bem a crise. Há, entretanto, uma dúvida ampla, geral e irrestrita sobre: 1) a natureza do processo inflacionário que atinge, em grau maior ou menor, todos os países do mundo e 2) as consequências no longo prazo da supervalorização do Real que está destruindo a sofisticada indústria nacional.


Todo processo inflacionário se explica por uma combinação variável de três causas: 1) um desequilíbrio persistente entre a oferta e a demanda global de bens e serviços; 2) uma desancoragem (por múltiplas razões, inclusive a anterior) da "expectativa" inflacionária, e 3) um "choque de oferta" interno ou externo. No caso brasileiro é preciso incluir a indexação ainda generalizada que sobrou como resíduo do bem-sucedido Plano Real e para cuja eliminação se fez muito pouco (de fato, acrescentou-se mais veneno) nos últimos oito anos.



No regime de câmbio flutuante, quando o choque externo é um grande aumento das relações de troca, ele é "filtrado" por uma valorização da taxa de câmbio. O cabo de guerra estabelecido entre os "falcões" e o governo parece estar amainando, com o reconhecimento que o ajuste dos juros pelo Banco Central (BC) será suficientemente prolongado para promover a convergência da taxa de inflação para o centro da meta de 2012.


Aparentemente isto está sendo conseguido: a taxa de juros real produzida pela Selic (que importa mais para o custo da dívida pública) tem sido elevada moderadamente, mas a taxa de juros real do setor privado que controla o consumo e boa parte dos investimentos (não privilegiado por programas especiais), tem se elevado mais fortemente. Este ano a despesa com juros da dívida pública deve beirar a R$ 180 bilhões, uma respeitável Bolsa-Rentista.


A comunicação do Banco Central deve ser dirigida à sociedade e não apenas ao sistema financeiro. No fundo, os seus clientes são os cidadãos comuns que só podem ser informados por meio da mídia. São eles (e não apenas os analistas financeiros) que lhe conferem credibilidade. É fundamental para o sucesso da política econômica a informação preventiva, rápida, transparente e honesta do Banco Central, para contrarrestar a natural diversidade de opiniões.


Há muitos anos os economistas reconheceram as estreitas relações que existem entre o movimento de capitais, os regimes da taxa de câmbio e a autonomia monetária de cada país. Teorizando sobre situações limites:


1) liberdade absoluta ou controle absoluto dos movimentos de capitais nas relações externas;


2) taxa de câmbio absolutamente flutuante ou taxa de câmbio absolutamente fixa;


3) liberdade absoluta ou constrangimento absoluto para que a política monetária atenda às condições econômicas domésticas e estabilize a economia; e


4) adicionando a hipótese que os agentes são absolutamente racionais e exploram qualquer oportunidade de lucro que possa ser apropriado pela livre arbitragem, demonstra-se, logicamente, que a política econômica de um país não pode satisfazer, simultaneamente, mais do que duas, das três primeiras condições expostas acima. Essa construção lógica constitui o já velho e famoso trilema que condiciona o exercício da política econômica.



Em outras palavras, ela pode incorporar quatro situações resumidas a seguir:


1) Liberdade de movimento de capitais e câmbio fixo.


Nessa circunstância, o país não pode ter uma política monetária que cuide dos seus interesses internos. Para que haja equilíbrio no longo prazo, a sua taxa de inflação deve ser igual à externa e a taxa real de juros deve ser igual à do "resto do mundo". Se a taxa de juros interna for maior do que a externa, a acumulação de reservas produzida pela entrada de capital precisa ser neutralizada com o aumento crescente da dívida pública (e do seu custo) e, no limite, será monetizada, criando as condições para a emergência de um processo inflacionário;


2) Controle do movimento de capitais e câmbio fixo.


Nesse caso há plena liberdade para a política monetária perseguir os interesses internos do país. Nestas circunstâncias, a taxa de câmbio fixo deve ser o preço relativo que equilibra o valor do fluxo dos bens e serviços exportados com os importados. Se a taxa de inflação gerada pela política monetária autônoma for sistematicamente maior do que a do mundo, a taxa real de câmbio sofre uma lenta valorização e, mais dia, menos dia, acumula-se um déficit em conta corrente. Este regime induz a política monetária a perseguir uma taxa de inflação parecida com a do "resto do mundo". Trata-se do sistema construído originalmente no Acordo de Bretton Woods que foi erodido pela dominança abusiva do dólar como unidade de conta internacional e moeda reserva;


3) Liberdade de movimento de capitais e câmbio flutuante.


Nesse caso a política monetária precisa manter a taxa real de juros interna igual à externa para construir o equilíbrio de longo prazo. Para reduzir a volatilidade da taxa de câmbio ele deve manter também sua taxa de inflação parecida com a de seus parceiros internacionais; e


4) Controle do movimento de capitais e taxa de câmbio flutuante.


Nesse caso pode-se ter uma política monetária que atenda aos interesses internos do país. A taxa de câmbio flutuante volta a ser o velho preço relativo que equilibra o valor do fluxo de bens e serviços exportados com o valor do fluxo de bens e serviços importados.
A experiência mostra que nenhum país pratica políticas econômicas com a "pureza" suposta na construção lógica do "trilema". Todos tendem a acomodar (de acordo com as circunstâncias que enfrentam dentro e fora do país e dos interesses do poder incumbente), uma combinação variável da liberdade do movimento de capitais, do regime cambial e da política monetária.


Assistimos isso agora no Brasil. Com três instrumentos de intervenção, o Banco Central transformou o regime cambial. Temos hoje, praticamente, uma taxa de câmbio fixa. Trata-se de um mecanismo de "legítima defesa" justificado pela destruição interna causada pela supervalorização do Real. Ninguém discute que a tendência do Real é de valorizar-se, se não por outras causas, apenas pela velha teoria e empiricamente reconhecida relação da taxa de câmbio real com a elevação do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. No momento essa tendência é ajudada pela enorme melhoria das relações de troca (enquanto durarem). O que se discute é a "super" valorização causada pelo imenso diferencial entre as taxas de juros reais interna e externa.


O "trilema" não é apenas uma proposição logicamente deduzida. Pesquisas empíricas que se vão acumulando, mostram sua relevância. É preciso insistir que não importa qual seja a combinação escolhida pela nossa política econômica: é pouco provável que ela seja exitosa no longo prazo se a taxa de juro real interna continuar 4 vezes maior que a externa!


Há dezenas de explicações para tal "fenômeno" produzidas por sofisticados e tecnicamente bem apetrechados economistas, às vezes apoiados numa econometria de "pé quebrado". Em algumas de suas "regressões" só não acrescentaram, ainda, como variável "explicativa", os quilômetros quadrados desmatados na Amazônia. Todo o resto já foi tentado".


Do nosso ponto de vista a melhor explicação para o fato é a que tem sido trabalhada e promovida há muito tempo, entre outros, pelo ilustre professor Yoshiaki Nakano: continuamos a praticar as regras operacionais que, também em "legítima defesa", inventamos no período de hiper-inflação e que foram funcionais naquele momento. Para começar a desmontá-las precisamos reduzir o financiamento da dívida pública com títulos remunerados à taxa Selic, exatamente o objetivo perseguido pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). É preciso criar condições e estímulos para que o mercado reduza em seu portfólio os papéis remunerados pela taxa Selic, o que será muito positivo, inclusive, para aumentar a potência da política monetária convencional.


A notícia mais importante do Plano Anual de Financiamento (PAF) da STN para 2011, é que existe tal possibilidade durante o atual mandato da presidente Dilma Rousseff: 80% da dívida remunerada em Selic vence entre 2011 e 2014. Como afirma a STN, o ajustamento será lento, cauteloso e oportunístico, refletindo o "desenvolvimento do mercado financeiro". O fundamental é saber que a janela está aí e que o seu aproveitamento depende, apenas, de uma forte coordenação entre um seguro esforço fiscal e uma fina política monetária que deem musculatura à STN para fechá-la.


A nossa situação cambial é ainda mais delicada devido à extrema liquidez proporcionada pelo Federal Reserve (Fed, banco central americano) para acelerar a taxa de crescimento dos EUA, sem o que não haverá solução para sua dívida interna. O problema dos EUA é que sua política econômica não conseguiu, até agora, conquistar credibilidade e reduzir o nível de incerteza que continua a cercá-la. O gráfico tenta mostrar nossas dificuldades.


A falta de confiança tem levado a uma recuperação lenta de economia americana (particularmente no nível de emprego). Isso produziu uma política monetária extremamente laxista - o "quantitative easing" 1 e 2 (QE1 e QE2) - que levou a taxa de juro nominal a zero, o que tende a desvalorizar o dólar. Como ele é a unidade de conta no mercado internacional, a sua desvalorização aumenta ainda mais os preços nominais das commodities (petróleo, metais e alimentos), já pressionados por uma aceleração da demanda global dos emergentes (China, Índia etc.). O aumento do petróleo por sua vez, corta a renda dos americanos e diminui o consumo de outros bens, dificultando ainda mais a recuperação. Além do mais, deteriora o saldo comercial dos EUA e exige maior desvalorização do dólar.


"Estamos presos numa armadilha. Ela se agravará ainda mais se o FED, diante da fraqueza da economia americana, decidir por um terceiro "quantitative easing" (QE3)"


Quais os efeitos disso sobre a nossa taxa de câmbio? Primeiro, uma valorização do Real pela melhoria das nossas relações de troca. Paralelamente, os preços externos são internalizados pela taxa de câmbio. Quando o câmbio não pode mais valorizar-se pelo estrago que está produzindo, aumenta a taxa de inflação interna. Isso leva o Banco Central a aumentar a taxa de juro real, o que estimula ainda mais o fluxo de capitais que vem arbitrar a diferença de juros e reforça a valorização do Real. A arbitragem não termina porque o juro real interno não cai devido à política monetária que absorve os reais vendendo papéis do governo à taxa Selic. Estamos presos numa armadilha. Ela se agravará ainda mais se o FED, diante da fraqueza da economia americana, decidir por um terceiro "quantitative easing" (QE3).



Com relação à inflação, a política econômica destina-se a controlar diretamente a demanda global e ajustá-la à oferta global, e, indiretamente (por sua credibilidade), fixar a expectativa de inflação que ancora a formação dos preços e dos salários. Trata-se de um processo não trivial, cheio de armadilhas conceituais e largamente determinado pelas crenças sobre o estado da economia e sobre as respostas dos agentes à própria política (o efeito do déficit fiscal nominal, os efeitos da relação dívida/PIB os efeitos das manobras de juros etc.), de forma que os efeitos diretos e indiretos se auto-estimulam.



Choques internos, rapidamente superados, como é o caso de uma quebra de safra em que os preços têm a tendência de retornar à média, precisam de um tratamento cauteloso porque, se incorporados pela indexação aos salários, elimina-se o papel principal do aumento dos preços que é cortar temporariamente a demanda física para ajustá-la à oferta física. O mesmo acontece quando se trata de desequilíbrios estruturais produzidos por uma redistribuição de renda que altera a demanda de serviços. É exatamente o aumento dos seus preços relativos que estimulará a expansão da oferta para atendê-la. Logo, o ajuste deve ser acompanhado por ações não monetárias ("estruturais") que ajudem e acelerem o efeito das manobras com a taxa de juros.



Toda mudança de preços relativos exerce uma pressão sobre a inflação devido à rigidez para baixo de todos os preços. Um movimento de ascensão social como vimos vivendo na última década, tende a produzir um desequilíbrio qualitativo entre a demanda e a oferta de serviços e nos preços dos produtos consumidos pelas classes em ascensão. Imagine a destruição de PIB, do emprego e o aumento da pobreza que seriam necessários para desconstruir aquele processo civilizatório apenas com manobra da taxa de juros.



Um problema interessante com relação à escassez de mão de obra refere-se, por exemplo, à engenharia. Devido à pequena demanda e baixos salários da profissão nos anos 90 do século passado, quase 40% do estoque de nossos engenheiros trabalham fora da sua especialidade, principalmente na administração e finanças. Para trazê-los de volta (e estimular a formação de novos) o sistema de preços já está funcionando e os salários deverão ajustar-se relativamente às outras atividades. Isso, entretanto, também não é "prova" de que exista um desajuste sério entre a demanda e a oferta globais de mão de obra, o que exigiria uma redução da taxa de crescimento do PIB. É preciso pensar em outras soluções, inclusive estimular a volta ao trabalho dos engenheiros que se aposentaram e dos que abandonaram o País por falta de oportunidades. E por que não importar profissionais estrangeiros oferecendo-lhes condições adequadas de vida e de trabalho como fazem vários países? Isso fez inteligentemente o Canadá (inclusive conosco).



O Brasil está com sinais vitais bastante razoáveis. Seu problema principal, entretanto, é preparar a nossa estrutura produtiva interna para dar emprego de boa qualidade a 145 milhões de brasileiros - com idade entre 15 e 64 anos - em 2030. Isso não será feito apenas com o nosso modelo agrominerador extremamente eficiente, mas induzido e dependente do crescimento externo. Não tenhamos ilusões. Com tempo suficiente (e que não será coisa muito superior a 4 anos ou 5 anos) a oferta mundial de alimento e petróleo criada pelos próprios países que hoje exercem a pressão de demanda, crescerá estimulada pelo aumento dos preços. Aí tudo mudará.



É hora, portanto, de aproveitar o tamanho e estimular a expansão do nosso mercado interno para ampliar o setor industrial e o de serviços (sem desestimular a agricultura e a mineração) para atender ao crescimento inclusivo que nos impõe a própria Constituição de 1988. Para atender ao aumento da oferta demográfica de mão de obra, o Brasil precisa de um crescimento anual nos próximos 20 anos, da ordem de 5% ao ano, com estabilidade interna e externa.



Para consegui-lo temos de fazer muita coisa. Fundamentalmente, elevar a taxa de poupança interna para qualquer coisa parecida como 24% a 25% do PIB (com um déficit em conta corrente não maior do que 1%), o que exige estímulo à poupança privada e um grande aumento da poupança governamental (sem aumentar a carga tributária), ou seja, cumprir o que foi anunciado pela presidente Dilma: "Fazer um pouco mais com um pouco menos". Em poucas palavras, gerir mais eficientemente o setor público.





Pode parecer pedestre (e até enganoso), mas todos os nossos problemas (inclusive o cambial) podem ser minorados com tal programa. Ao fim e ao cabo - como insiste em dizer um velho amigo -, tudo se resume em: 1) ter uma rigorosa política fiscal (equilíbrio fiscal cíclico e relação dívida/PIB estritamente controlada; 2) melhorar a qualidade da gestão pública e reduzir o crescimento dos gastos de custeio e transferências abaixo do crescimento do PIB; 3) assegurar a boa regulação concorrencial do mercado e coordenar, com ele, o papel do Estado-Indutor com o uso de estímulos adequados; e 4) resistir à permanente sedução (que costuma cegar o poder incumbente), de tentar violar as identidades da contabilidade nacional.



O resto é creme chantilly para enfeitar a receita...