sexta-feira, 27 de abril de 2012

A classe média toma o poder



Por Philip Stephens - Valor 27/04

Tropeço a toda hora com previsões inabaláveis de que o futuro pertence à China. Ou de que o Reino Médio sempre terá dificuldades para desafiar a primazia dos Estados Unidos. Não pergunte como a Índia e Brasil se encaixam nessa história. Esse tipo de exercício sobre como será a reconstrução do cenário geopolítico, por mais divertido que seja, também acaba desviando um pouco as atenções. O século XXI não será modelado pelas escolhas abstratas de países. O poder transformador pertencerá à nova classe média mundial.

A história dos últimos 20 anos foi a de uma grande transferência de peso econômico e influência geopolítica do Ocidente para o Oriente. Esse reequilíbrio ainda tem caminho a percorrer. As comparações sobre a posição relativa das potências estabelecidas e emergentes obscurecem alguns dos motores mais importantes da mudança. O que acontece dentro dos Estados é tão interessante quanto o que pode mudar nas relações entre eles. Em 20 anos, o mundo que agora é pobre de forma predominante passará a ser em sua maioria de classe média.

Os Estados, é claro, continuarão a forma dominante de organização política. É improvável que o aumento da riqueza remova identidades nacionais e culturais. Em alguns casos, pode muito bem reforçá-las. O nacionalismo ressurgente poderia mostrar-se uma das grandes ameaças à segurança e paz internacional. A forma como a maioria dos novos atores globais se comportará, no entanto, será guiada pela redistribuição inédita de poder, dos governantes para os governados.

Os números brutos estão delineados em um relatório convincente - Tendências Mundiais 2030- recém-publicado pelo Instituto de Estudos de Segurança (ISS, na sigla em inglês), com sede em Paris. Pelas tendências atuais, destaca o informe, as fileiras da classe média mundial passarão das cerca de 2 bilhões de pessoas atuais para 3,2 bilhões em 2020 e para 4,9 bilhões em 2030, quando a população mundial total seria de pouco mais de 8 bilhões. Dito de outra forma, pela primeira vez na história humana, haveria mais pessoas na classe média do que na pobre.

Os economistas podem debater a definição precisa. Para o ISS, o que constitui ser de classe média é ter renda disponível entre US$ 10 e US$ 100 por dia. Outros elevam um pouco o nível, considerando valores a partir de US$ 15. Pelos padrões ocidentais mesmo essa faixa é bastante baixa - mas leve em conta, então, quantas pessoas sobrevivem com US$ 1 por dia. O mais importante é que mesmo as suposições mais conservadoras indicam que haverá uma redistribuição irrevogável de poder econômico.

Como seria de se esperar, a transformação será mais pronunciada na Ásia. A China já possui mais de 160 milhões de consumidores de classe média, atrás apenas dos EUA. O número, contudo, representa apenas cerca de 12% da população chinesa. Até 2030, de acordo com as projeções da ISS, a proporção poderá ser de 74%. Na Índia, metade da população deverá supera o limite de US$ 10 diários antes de 2025. Em 2040, 90% estarão na classe média.

Essas tendências irão além da Ásia. Quase 70% dos brasileiros deverão estar na classe média em 2030. No mesmo ano, a América Central e América Latina terão tantos consumidores da classe média quanto a América do Norte. A transição será mais lenta na África, mas mesmo lá os números deverão mais do que dobrar em relação a 2030.

Esses novos consumidores ainda terão renda disponível bem menor do que seus pares na América do Norte e Europa. A proporção dos países ricos no consumo da classe média mundial, no entanto, deverá ser cortada em mais da metade, de 64% para 30%, até 2030.

As implicações dessa transformação serão tão profundas para as dinâmicas da ordem política dentro dos Estados ascendentes quanto as relações entre esse países e as potências estabelecidas. Classes médias maiores e mais afluentes provavelmente exigirão maior prestação de contas por seus governos. Isso não significa necessariamente que haverá um clamor por democracias representativas no estilo ocidental. Indica, no entanto, que as elites atuais, muitas vezes autoritárias, ficarão pressionadas.

A demanda das classes médias por mais voz na organização de suas sociedades será amplificada pelo maior acesso à educação - especialmente entre as mulheres - e pelo avanço incansável da tecnologia digital. O impacto da revolução digital já deixou sua marca no mundo árabe. O acesso compartilhado a comunicações instantâneas e praticamente gratuitas dá às classes médias mundiais uma arma potente na luta para ter maior controle sobre suas vidas. Já há mais usuários de internet na China do que cidadãos nos EUA.

Para o Ocidente, a perspectiva encorajadora de bilhões de pessoas saindo da pobreza chega acompanhada da probabilidade de que muitos - talvez a maioria - acolherão valores básicos, como a liberdade individual, dignidade humana e o Estado de direito. Não há relação automática entre a riqueza de uma sociedade e o grau de liberdade individual. Nem uma linha direta entre prosperidade e democracia. Há evidências de sobra, no entanto, indicando que mais cidadãos se identificam com um amplo conjunto de valores universais, quanto mais ricos ficam e mais anos de ensino acumulam. Governos opressivos por todos os lados terão problemas para resistir a esse despertar político.

Isso não quer dizer que o mundo será um lugar mais estável e pacífico. Grandes potências ainda concorrerão. Regimes sob pressão em casa podem muito bem sair à busca de inimigos externos. A concorrência por recursos naturais e a distância entre as expectativas da nova classe média global e a capacidade dos Estados de atendê-las será um convite para que regimes autoritários despertem os demônios da xenofobia. Uma provável desarticulação das instituições de governança global não será de nenhuma ajuda.

Mas e quanto às perspectivas de um mundo universalmente mais próspero e mais comprometido com a liberdade? Certamente, surgirão boas notícias a partir disso.



Philip Stephens é editor e comentarista político do FT.

Desindustrialização?



Por Naercio Menezes Filho - Valor 27/04

A participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) tem declinado nos últimos anos, atingindo 15% em 2011. Esse fato tem levado vários analistas a afirmar que está em curso um processo de desindustrialização no país. O governo, hiperativo, tem tomado várias medidas para salvar a indústria, como desonerações fiscais e aumento de impostos dos produtos importados. Mas, será que a desindustrialização existe mesmo? Em caso positivo, será que as medidas recentes do governo podem realmente salvar a indústria brasileira?

O processo que hoje chamamos de desindustrialização é conhecido na literatura econômica como mudança estrutural ("structural change"). Ele começa com o deslocamento dos trabalhadores da agricultura para a indústria e serviços, decorrente do crescimento da produtividade na agricultura. Isso ocorre porque, segundo Adam Smith "o desejo de alimentação é limitado em todos os homens pelo tamanho do seu estômago". Depois disso, começa a transição dos trabalhadores da indústria para o setor de serviços, pois o número de geladeiras que uma família precisa é limitado, mas o número de vezes que ela pode viajar não. Esse processo tende ser reforçado pelo aumento da produtividade no setor industrial, que faz com que um número menor de trabalhadores seja necessário para atender a demanda por produtos e máquinas na indústria. Retração como sinal de sucesso.

Assim, a participação do emprego na indústria de transformação nos EUA, que em 1965 era de 24%, passou para apenas 11% em 2005. No entanto, esse processo não levou à estagnação da economia americana, uma vez que a produtividade de seus trabalhadores aumentou continuamente, inclusive nos serviços. Assim, a participação da indústria no PIB americano tem permanecido estável nos últimos 50 anos. Da mesma forma, a participação do emprego na indústria tem declinado na grande maioria dos países do mundo, incluindo os latino-americanos, ao longo das últimas décadas.

Curiosamente, a participação do emprego industrial no Brasil manteve-se estável nas últimas décadas, em cerca de 20%. Assim, o processo de mudança estrutural ocorrido na maioria dos outros países não tem ocorrido no Brasil, ao contrário dos que advogam a tese de desindustrialização. Mas, a participação da indústria no PIB tem declinado. Qual o segredo?

O problema está na nossa produtividade industrial. Como mostra a figura ao lado, a produtividade do trabalho na indústria de transformação brasileira cresceu entre 1965 e 1980, mas declinou continuamente nos anos 80. E, após um breve aumento no início da década de 90 (provocado pela liberalização comercial), está estagnada desde então. Enquanto isso, a produtividade do trabalhador industrial americano vem aumentando continuamente desde 1965, o mesmo acontecendo com o coreano, que ultrapassou o brasileiro no início da década de 90. Isso afeta diretamente a participação da nossa indústria no PIB e nas nossas exportações. Por que isso ocorre?

Tudo começa com as nossas conhecidas deficiências de educação e infraestrutura. Além disso, as leis trabalhistas e tributárias que são alteradas todos os anos geram grande instabilidade jurídica e institucional. As mudanças recentes para ajudar a indústria, por exemplo, criaram um emaranhado de regras e burocracias que tende a piorar a produtividade, tamanho o esforço necessário para entendê-las.

Além disso, uma parte dos nossos empresários parece mais preocupada em fazer lobby no governo e na mídia do que em aumentar sua produtividade. Nas últimas décadas, o investimento em capital físico e a taxa de inovações tecnológicas na indústria têm sido pífios. Além disso, as técnicas gerenciais utilizadas por grande parte das empresas industriais brasileiras são bastante ultrapassadas.

Em suma, enquanto na maior parte dos países a perda de emprego industrial foi compensada pelo aumento da produtividade, no Brasil a participação da indústria no PIB e nas exportações caiu devido à estagnação da produtividade. Para reverter esse quadro o governo teria que reduzir os custos tributários, melhorar a qualidade da nossa educação e infraestrutura e parar de alterar as regras a todo o momento. Além disso, teríamos que gerar mais competição e promover a eficiência. O governo não vai conseguir aumentar a produtividade da indústria à força de leis, nem transferindo mais dinheiro da sociedade para esse setor.



Naercio Menezes Filho, professor titular - Cátedra IFB e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, é professor associado da FEA-USP

O spread do Banco Central versus o spread dos bancos




Valor 27/04


Enquanto o Banco Central aponta spread médio de 28% ao ano, os três maiores bancos privados divulgaram nesta semana junto com seus balanços que, segundo seus cálculos, seus spreads médios com operações de crédito rodaram em torno de 13% ao ano no primeiro trimestre.

O indicador calculado pelo BC e divulgado mensalmente virou argumento central do governo contra os bancos na recente cruzada para forçar para baixo o alto spread - diferença entre o custo de captação dos bancos e os juros dos empréstimo aos clientes - praticado no país.

Na quarta-feira, o BC divulgou a nota de crédito referente a março, que indicou spread médio de 18,4% ao ano nos empréstimos para empresas e de 35,1% para pessoas físicas, além de ter cravado o spread geral de 28%. O Itaú informou que seu spread de janeiro a março foi de 13,5% ao ano, enquanto o Santander apontou 12,4%. No balanço do Bradesco, o dado não é explícito.

O tamanho da diferença intriga. E os bancos começam a empreender um esforço para explicá-la, com o objetivo de ganhar algum terreno na polêmica que se instalou nas últimas três semanas em torno do custo do crédito.

"Qual dos dois está certo? O fato é que o spread do BC e o dos bancos mostram coisas diferentes", pontua um banqueiro. "O spread do BC é baseado em poucos produtos. Virou verdade porque tem o selo do BC", diz um ex-presidente da Febraban, a federação dos bancos.

Os bancos apontam que o spread do BC só pega 52,9% do crédito para pessoas físicas do sistema e 39,1% dos empréstimos para empresas; e essa seria a principal falha da metodologia. Abrange basicamente créditos concedidos a partir dos chamados recursos livres, aqueles que não têm direcionamento obrigatório (como rural e imobiliário) e não contam com subsídio, como os financiamentos do BNDES. Justamente linhas como as do BNDES e o crédito imobiliário têm boas garantias e, portanto, risco mais baixo e spreads menores. Os grandes bancos são grandes repassadores dos recursos do BNDES e assumem o risco de crédito das operações que fecham.

O argumento não é novo. No site da Febraban, é possível encontrar estudos publicados desde outubro de 2009 exatamente com o mesmo raciocínio. Os estudos são atualizados mensalmente e elaborados pelo economista-chefe da instituição, Rubens Sardenberg.

Segundo aponta Sardenberg, no spread para pessoa física entram as linhas de cheque especial, crédito pessoal, de compra de veículos e outros bens. Ficam de fora cartão de crédito, imobiliário e leasing, por exemplo. Já no spread das empresas, entram desconto de duplicatas e notas promissórias, capital de giro, conta garantida, aquisição de bens e repasses externos e ACCs. BNDES, crédito rural e leasing não integram a conta e respondem por quase 60% dos empréstimos para empresas.

"Produtos com taxas mais altas e mais sensíveis a flutuações de curto prazo estão super representados na amostra utilizada pelo BC para cálculo do spread bancário", afirma o estudo. Exemplo citado: o crédito pessoal representa 27,1% do saldo das operações para pessoas físicas e, segundo a Febraban, tem peso de 54,4% no saldo das operações incluídas no cálculo do spread. Outro: a conta garantida é 8,9% do saldo de empréstimos para empresas e tem peso de 13,5% no estoque considerado para o spread; enquanto o ACC é 4,3% do estoque e 8,5% do spread.

Sardenberg chega a recalcular o spread, incluindo, entre outros, o imobiliário, que tem spread de 6% ao ano. E, nas suas contas, o spread em fevereiro deste ano para pessoas físicas não seria de 35,8% ao ano, como apontou o BC, mas de 28,4%. O cálculo da Febraban baseia-se em 78,6% do estoque (ante 52,9% do BC) e não chega a 100% porque deixa de fora modalidades como empréstimos de cooperativas e saldos não financiados no cartão de crédito, que não têm taxas acompanhadas pelo BC.

Para empresas, o spread recalculado da Febraban para fevereiro é de 13,5%, ante os 18,8% do BC. De novo, ficam de fora da conta da entidade modalidades não acompanhadas pela autoridade e entram no cálculo 67,9% do estoque (em comparação a 39,1% do BC).

Banqueiros apontam outro "defeito" do spread do BC. "O spread é calculado sobre o fluxo de empréstimos e os prazos desses empréstimos não são ponderados. Com isso, os créditos de 30 dias, mais caros, têm o mesmo peso no cálculo do que os financiamentos de longo prazo", diz um deles.

Três executivos de instituições distintas ouvidos pelo Valor contam a mesma história para explicar a origem do cálculo feito pelo BC: ele foi idealizado na gestão de Armínio Fraga à frente do BC, em 1999, com o objetivo de acompanhar a tendência da taxa no tempo e não para ser a reprodução exata daquilo que é praticado. A um interlocutor, recentemente, Armínio Fraga não teria endossado a história e teria dito que o cálculo deveria refletir a realidade.

O curioso é que o autor do estudo inicial mencionado pelos banqueiros sobre spread no BC, sob a gestão de Fraga, foi justamente Alexandre Tombini, o atual presidente do Banco Central e que, à época, chefiava o departamento de estudos e pesquisas da autarquia. Isso situa Tombini no coração do debate atual. A pressão sobre os bancos tem sido puxada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, e pela presidente Dilma Rousseff, enquanto o BC, que fiscaliza e regula os bancos, tem se mantido silente. Mas o tema é próximo de Tombini. Ele conduziu o estudo logo depois da implementação do regime de metas de inflação no país, que criou o ambiente de estabilidade econômica que pavimentou o caminho para a expansão do crédito desde então.

Algumas das sugestões de medidas para baixar o spread feitas por Tombini há 13 anos constam também da lista entregue ao governo pela Febraban há duas semanas. Outras foram implementadas, como a ampliação da base de cobertura da central de risco do BC, que abrangia empréstimos de R$ 50 mil para cima em 1999 e agora chega a R$ 1.000. Vale a pena revisitar o texto.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Além da austeridade - Celso Ming - Estadao.com.br

Além da austeridade - Celso Ming - Estadao.com.br

Um mundo à deriva



Por Jeffrey D. Sachs - Valor 26/04

Os encontros anuais de primavera (no hemisfério Norte) do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial proporcionaram uma oportunidade para observar duas tendências fundamentais que vêm guiando a economia e a política mundial. A geopolítica afasta-se de forma decisiva de um mundo dominado por Europa e EUA para um com várias potências regionais, sem líder mundial. E uma nova era de instabilidade econômica está próxima, decorrente tanto dos limites ao crescimento como da turbulência financeira.

A crise econômica europeia dominou os encontros deste ano do FMI e Banco Mundial. O FMI busca criar um mecanismo de resgate emergencial para o caso de as economias europeias, fragilizadas, precisarem de outro pacote de auxílio financeiro e voltou-se às grandes economias emergentes - Brasil, China, Índia, aos exportadores de petróleo do Golfo Pérsico e outros - para ajudar a fornecer os recursos necessários. A resposta deles foi clara: sim, mas apenas em troca de maior poder e mais direito a voto no FMI. A União Europeia (UE) quer um escudo financeiro internacional; terá de concordar.

A demanda das economias emergentes por mais poder, naturalmente, já é uma história bem conhecida. Em 2010, na ocasião anterior em que o FMI aumentou seus recursos financeiros, os países emergentes aceitaram o acordo apenas depois de ver seu direito a voto no FMI ser aumentado em 6%, com a Europa perdendo cerca de 4%. Agora, os mercados emergentes exigem poder ainda maior.

Não é difícil entender qual é o motivo básico. De acordo com os próprios dados do FMI, os atuais membros da UE representavam 31% da economia mundial em 1980 - calculado a partir do Produto Interno Bruto (PIB) de cada país, ajustado pela paridade de poder de compra. Em 2011, a proporção caiu para 20% e o FMI projeta que até 2017 diminuirá ainda mais, para 17%.

O declínio reflete o baixo crescimento da Europa tanto em termos de população como de produção por pessoa. Por outro lado, a participação dos países em desenvolvimento asiáticos, como China e Índia, no PIB mundial, aumentou de cerca de 8% em 1980 para 25% em 2011 e deverá chegar a 31% em 2017.

Os EUA, em atitude típica dos tempos atuais, garantem que não se juntarão a nenhum novo pacote de auxílio do FMI. O Congresso dos EUA vem adotando políticas econômicas cada vez mais isolacionistas, especialmente no que se refere a auxílio financeiro a outros países. Isso, também, reflete a diminuição do poder dos EUA no longo prazo. A participação dos EUA no PIB mundial, em torno a 25% em 1980 caiu para 19% em 2011 e deverá passar a 18% em 2017, ano em que o FMI prevê que a China terá superado a economia americana em tamanho absoluto (ajustado pela paridade do poder de compra).

A transferência de poder global, no entanto, é mais complexa do que apenas uma questão de declínio do Atlântico Norte (UE e EUA) e a ascensão das economias emergentes, especialmente o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Também estamos passando de um mundo unipolar, liderado principalmente pelos EUA, para um mundo genuinamente multipolar, em que EUA, UE, Brics e potências menores (como Nigéria e Turquia) possuem peso regional, mas são reticentes em assumir liderança global, especialmente pelos encargos financeiros que isso acarretaria. A questão não é apenas o fato de haver cinco ou seis grandes potências atualmente; também é que todas querem avançar à custa das outros.

A passagem para um mundo multipolar tem a vantagem de que nenhum país ou bloco pequeno pode dominar os outros. Cada região pode acabar tendo espaço de manobra para encontrar seus próprios caminhos. Um mundo multipolar, no entanto, também traz riscos, especialmente o fato de que importantes desafios mundiais não serão abordados, porque nenhum país ou região é capaz de coordenar uma reação mundial ou mesmo de participar de uma.

Os EUA passaram rapidamente da liderança global para esse tipo de tentativa de avançar à custa dos outros, parecendo ter contornado o estágio de cooperação mundial. Os EUA, dessa forma, atualmente se eximem da cooperação mundial sobre mudanças climáticas, dos pacotes de auxílio financeiro do FMI, das metas de apoio ao desenvolvimento mundial e de outros pontos de colaboração mundial para proporcionar bens públicos mundialmente.

A fragilidade da cooperação em políticas globais é especialmente preocupante diante da gravidade dos desafios que precisam ser enfrentados. A atual crise financeira, é claro, vem logo à mente, mas há outros desafios ainda mais significativos.

Os encontros do FMI e Banco Mundial, na verdade, também abordaram um segundo desafio fundamental na economia mundial: a alta volatilidade e os altos preços das commodities primárias são atualmente uma grande ameaça para a estabilidade e crescimento econômico mundial.

Desde 2005, os preços das principais commodities dispararam. O petróleo, carvão, cobre, ouro, trigo, milho, minério de ferro e muitas outras commodities dobraram, triplicaram ou subiram ainda mais. A tendência de alta incluiu combustíveis, grãos e minerais. Alguns atribuíram a elevação a bolhas nos preços, amplificadas pelas baixas taxas de juros e facilidade de crédito para a especulação com commodities. A explicação mais convincente, no entanto, é quase certamente ligada a fundamentos.

O problema, no entanto, vai além de limitações na oferta. O crescimento econômico mundial também provoca uma crise ambiental cada vez maior. Os preços dos alimentos estão elevados atualmente, em parte porque regiões produtoras por todo o mundo sofrem com os impactos adversos de mudanças climáticas induzidas pelo homem (como mais secas e tempestades mais graves) e da escassez de água, decorrente do uso excessivo de água doce de rios e aquíferos.

Em resumo, a economia mundial passa por uma crise de sustentabilidade, na qual as limitações de recursos naturais e as pressões ambientais vêm provocando grandes choques nos preços e instabilidade ecológica. O desenvolvimento econômico precisa rapidamente tornar-se um desenvolvimento sustentável, adotando tecnologias e estilos de vida que reduzam as pressões nocivas sobre os ecossistemas da Terra. Isso, também, vai exigir um grau de cooperação mundial ainda não visto em nenhum lugar.

Os encontros do FMI e Banco Mundial nos lembram de uma verdade predominante: nosso mundo interconectado e superpovoado tornou-se uma embarcação muito complicada de navegar. Para que sigamos adiante, precisamos começar a remar na mesma direção, mesmo sem ter um capitão único na direção. (Tradução de Sabino Ahumada)



Jeffrey D. Sachs é professor de economia e diretor do Instituto Terra, da Columbia University. É também assessor especial do secretário-geral das Nações Unidas no tema das Metas de Desenvolvimento do Milênio. Copyright: Project Syndicate, 2012.



www.project-syndicate.org

BC e governo mantêm real descolado do mundo



Por Eduardo Campos - Valor 26/04
De São Paulo

A valorização do dólar no pregão de ontem não foi nada impressionante, 0,11%, mas foi suficiente para levar a moeda para nova máxima do ano a R$ 1,884. De fato, o dólar não sai da linha de R$ 1,88 faz cinco pregões. E o comportamento da moeda independe do que se passa com o euro, outras moedas emergentes, preço das commodities, risco soberano ou volatilidade.

O que se nota é a permanente assimetria do mercado de câmbio local. O viés de alta permanece maior do que o de baixa, independentemente de qualquer fundamento. E a explicação para isso passa pelas atuações do Banco Central (BC) e pela postura do governo, que a cada oportunidade reforça a ideia de que pode tomar novas medidas no câmbio.

Agora em abril, o BC já fez 15 compras à vista, em comparação a 25 atuações à vista, a termo e via swap reverso (equivalente à compra de dólar futuro) realizadas em todo o primeiro trimestre.

Essa postura do BC e do governo foi um dos fatores que levou o Bank of America Merrill Lynch a mudar sua previsão para a taxa de câmbio brasileira.

A instituição vê o dólar a R$ 1,92 no fim de 2012, ante previsão anterior de R$ 1,85. Para o fim de 2013, a taxa deve ir R$ 1,95, ante o R$ 1,92 estimado previamente.
Em relatório, o chefe de economia e estratégia para o Brasil, David Beker, nota que há uma clara mudança na política de intervenção cambial agora em 2012, com as autoridades brasileiras atuando para fortalecer o dólar.

"Essa forte coordenação não existia no passado, conforme a Fazenda ameaçava e promovia mudanças no IOF, o BC utilizava as intervenções no câmbio como uma ferramenta para suavizar a volatilidade", diz o especialista.

Agora, diz Beker, a percepção do mercado é de que as atuações do BC estão puxando o dólar para cima, e que essa valorização da moeda americana não será um problema, pois a dinâmica inflacionária está melhor.

O Bank of America Merrill Lynch lembra que o real tem sido um veículo global de operações de "carry trade" (arbitragem de taxas de juros) na última década e parece que o governo não quer que isso se repita no futuro.

"Nos parece que o que o BC realmente quer é que os investidores de curto prazo deixem de perseguir o real", diz o relatório.

Segundo os especialistas do banco, há duas formas de se conseguir isso. Reduzir o apelo das operações de carry trade via uma redução dramática da taxa de juros ou introduzir volatilidade no mercado local de câmbio em momentos inesperados.

"Não acreditamos que a primeira opção seja apropriada, já que trazer a taxa de carry trade para níveis normais pediria uma queda do juro doméstico tão forte que colocaria a inflação e a credibilidade do BC em risco", diz a instituição. Com isso, a segunda opção parece explicar bem o momento atual.

Para Beker, um dos objetivos dessa nova forma de atuação do BC, que busca colocar o dólar para cima, seria balancear a pressão de queda na cotação da moeda americana que poderia aparecer no futuro, quando o ciclo de política monetária sair de baixa para alta da Selic.

Outro ponto levantado é que qualquer corte de juro adicional que o BC fizer no curto prazo torna o trabalho de enfraquecer o real ainda mais fácil.

Um terceiro ponto levantado pelo banco e que permanece uma questão em aberto, é em que taxa o BC pode voltar a vender dólares. Para Beker e seu colegas no banco, a velocidade da valorização do dólar seria mais importante do que o nível de preço por si só. "Evidentemente, não parece provável que o BC venda dólares a R$ 1,95, como aconteceu no ano passado."

Os especialistas do banco não se mostram preocupados com algum episódio de forte queda no preço do dólar, dada a baixa probabilidade de um cenário desses em função da análise feita. Mas a instituição recomenda algum tipo de proteção contra uma forte alta da moeda americana.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Empréstimos puxam ingresso de capital



Por Mônica Izaguirre e Murilo Rodrigues Alves - Valor 25/04
De Brasilia

O ingresso líquido de capitais no país foi de US$ 13,6 bilhões em março, o maior volume de recursos vindos do exterior nos últimos 12 meses, segundo dados divulgados ontem pelo Banco Central. As filiais de empresas multinacionais brasileiras ajudaram a compor essa cifra, emprestando às suas matrizes quase US$ 7 bilhões na forma de operações de crédito intercompanhias, valor bem mais alto do que os US$ 1,47 bilhão de março de 2011.

A entrada líquida de capitais cobriu com larga folga o déficit de US$ 3,32 bilhões nas transações correntes com outros países no mês, fazendo com que o resultado global do balanço de pagamentos externos fosse positivo em US$ 10,59 bilhões em março. Desde setembro de 2010, quando o balanço foi superavitário em US$ 11,6 bilhões, não se via dados tão expressivos.

Já na comparação dos trimestres, por causa dos outros dois meses do ano, tanto o fluxo líquido de capitais quanto o resultado global do balanço recuaram em relação a 2011, caindo de US$ 43,64 bilhões para US$ 23,92 bilhões e de US$ 27,64 bilhões para US$ 12,36 bilhões, respectivamente.

O saldo da repatriação de investimentos brasileiros diretos (IBD) como um todo, categoria que inclui os empréstimos intercompanhias, ficou em US$ 5 bilhões em março, pois saíram US$ 1,624 bilhão para reforço de participações diretas no capital de empresas no exterior.

Os brasileiros também mandaram para fora do país US$ 1,780 bilhão para investir em títulos de renda fixa, aquisição de ações via mercado de capitais, derivativos e outros tipos de investimentos. Ainda assim, por causa dos empréstimos das filiais, os residentes responderam por ingresso líquido em torno de US$ 3,05 bilhões em março.

O chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Tulio Maciel, lembra que os empréstimos intercompanhias são tributados com 6% de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Portanto, afirma, o seu crescimento não se trata de tentativa de fugir do tributo para aproveitar as altas taxas de juros internas. O fato de a economia brasileira ainda estar crescendo acima da média mundial poderia ser uma explicação para o forte fluxo de recursos de filiais a matrizes de multinacionais brasileiras.

No acumulado do trimestre, essas operações de crédito geraram ingresso de US$ 8,6 bilhões, ante US$ 2,1 bilhões em igual período de 2011. Esse montante já é superior ao desembolso recebido em todo ano passado (US$ 8,512 bilhões).
Descontando as amortizações pagas pelas matrizes, as filiais de empresas brasileiras emprestaram ao país US$ 7,91 bilhões nos três primeiros meses do ano, cifra também superior à de 2011 inteiro (US$ 6,1 bilhões).

No ano passado, a principal contribuição das filiais para o balanço de pagamentos brasileiro se deu de outra forma: elas amortizaram US$ 14,45 bilhões de dívidas com as matrizes no Brasil.

Em 2012, também houve pagamentos e recebimentos em função de empréstimos de matrizes para filiais, mas o fluxo nesse caso foi irrelevante, ficando em apenas US$ 18 milhões negativos no mês e no trimestre.

Os recursos estrangeiros foram responsáveis, em março, por US$ 10,5 bilhões dos US$ 13,6 bilhões de saldo registrados pela conta de capitais do balanço de pagamentos. A contribuição dos não residentes veio, principalmente, dos investimentos estrangeiros diretos (IED), que somaram US$ 5,887 bilhões no mês, incluindo um fluxo líquido positivo de US$ 830 milhões de créditos intercompanhias envolvendo multinacionais estrangeiras e filiais no país.

O valor ficou abaixo do registrado em março de 2011 (US$ 6,787 bilhões). No acumulado do trimestre, o ingresso de IED somou US$ 14,939 bilhões, o que também foi inferior a igual período do ano passado (US$ 17,535 bilhões). No entanto, o desempenho do IED em março foi melhor do que o esperado pelo Banco Central, cuja projeção indicava entrada de US$ 4 bilhões. Tulio Maciel reconheceu que a estimativa da autoridade monetária para o ingresso desses recursos durante todo o ano (US$ 50 bilhões) se mostra conservadora diante do verificado no primeiro trimestre e deve ser revisada.

Os estrangeiros trouxeram ainda para o país US$ 1,27 bilhão na forma de investimentos em títulos de renda fixa, modalidade que no trimestre atraiu US$ 2,28 bilhões. Isso revela um interesse menor do que o verificado no primeiro trimestre de 2011, quando os estrangeiros aplicaram em títulos de renda fixa US$ 5,01 bilhões, dos quais US$ 1,84 bilhão em março. Aí se nota o efeito do aumento do IOF sobre captações externas imposto pelo governo a partir de março de 2011, diz Tulio Maciel.

Embora pouco expressivo em março (US$ 131 milhões), o fluxo de investimentos estrangeiros em ações chegou a US$ 5,2 bilhões no trimestre, bem mais do que os US$ 748 milhões verificados em igual período de 2011.

Já as demais modalidades de investimentos (créditos comerciais, empréstimos diretos, moedas e depósitos) atraíram este ano um volume menor de capitais estrangeiros do que no ano passado, tanto no mês, quanto no acumulado do trimestre. Em março, esse fluxo foi de US$ 3,1 bilhões, contra US$ 7,97 bilhões do mesmo mês de 2011. No trimestre, ficou em US$ 3,78 bilhões, ante US$ 11,31 bilhões de igual período do ano passado.

Os empréstimos externos diretos, ou seja, que não implicam emissão de títulos, também foram alcançados pelo aumento do IOF, que certamente influenciou o fluxo dessa modalidade de capital externo.

Com economia mais fraca, remessas de lucros e dividendos caem a US$ 1,96 bi

As remessas de lucros e dividendos ao exterior somaram US$ 1,96 bilhão em março, reforçando a tendência de queda dessas despesas este ano. Em igual mês do ano passado, elas atingiram US$ 3,71 bilhões (recuo de 47%). Na comparação do primeiro trimestre de cada ano, os gastos do país com esse item da conta de transações correntes com o exterior também recuaram, passando de US$ 8,39 bilhões para US$ 3,47 bilhões.

O chefe do Departamento Econômico do BC, Tulio Maciel, atribui a principal explicação ao nível da atividade econômica em 2011. Com o crescimento da economia em 2010, ano em que o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou 7,5%, as multinacionais tiveram melhores resultados e puderam remeter mais lucros e dividendos no ano seguinte. A queda das remessas em 2012 reflete a desaceleração da economia em 2011. Mais recentemente, a desvalorização do real também pode ter desestimulado as empresas estrangeiras a enviar parte de seus resultados às matrizes, acrescentou o chefe do Depec.

O recuo dos gastos com lucros e dividendos tem ajudado a reduzir o déficit em transações correntes. No mês passado, esse déficit foi de US$ 3,32 bilhões, inferior, portanto, aos US$ 5,73 bilhões de igual período de 2011. A cifra foi mais baixa também do que a esperada pelo Banco Central, cuja projeção indicava saldo negativo de US$ 4,5 bilhões no mês.

Na comparação entre os primeiros trimestres de 2011 e 2012, o déficit em conta corrente também caiu, de US$ 14,77 bilhões para US$ 12,11 bilhões. Houve recuo ainda, pelo segundo mês consecutivo, do acumulado em 12 meses. No período encerrado em fevereiro, as despesas do país com comércio, serviços, transferências de renda e transferências unilaterais superaram as respectivas receitas em US$ 52,23 bilhões, o equivalente a 2,09% do PIB estimado pelo BC. No período encerrado em março, o saldo foi negativo em US$ 49,81 bilhões, ou 1,98% do PIB.

Dados preliminares de abril indicam que a conta de lucros e dividendos ao exterior será novamente menor do que em igual mês do ano passado. Até o dia 20, as remessas somaram US$ 618 milhões, valor bem inferior aos US$ 2,11 bilhões de abril de 2011.

As despesas dos brasileiros com viagens internacionais também contribuíram para atenuar o déficit em conta corrente, mas só no mês, quando somaram US$ 1,627 bilhão. Foi uma queda modesta em relação a março de 2011 (US$ 1,645 bilhão), embora a primeira na comparação entre um mês e o mesmo do ano anterior desde setembro de 2009. Segundo Maciel, o arrefecimento se deve ao comportamento do câmbio, que ficou desfavorável às viagens internacionais, e porque o Carnaval caiu em fevereiro neste ano.

No acumulado do trimestre, porém, os gastos dos turistas brasileiros bateram recorde, chegando a US$ 5,38 bilhões, expansão de 13,2% na comparação com o mesmo período do ano passado (US$ 4,75 bilhões). Já os estrangeiros, nos três primeiros meses do ano, gastaram US$ 1,92 bilhão no Brasil, crescimento de 11,7% na mesma base de comparação.

As despesas líquidas com aluguéis de equipamentos também foram recorde no mês passado e no acumulado do trimestre. Em março, elas somaram US$ 1,49 bilhão ante US$ 1,25 bilhão do mesmo mês de 2011. No acumulado do trimestre, o saldo negativo foi de US$ 4,30 bilhões, ante US$ 3,61 bilhões registrados nos três primeiros meses de 2011.

Tulio Maciel explicou que pesam para esse item vir crescendo continuamente a demanda do setor de extração mineral, que aluga os equipamentos para ampliar a capacidade de produção de petróleo e metais metálicos.

Muito antes de Keynes



Por José Luís Fiori - Valor 25/04

O "milagre econômico inglês", que deu origem ao capitalismo moderno, começou no século XVII, muito antes da chamada "revolução industrial". De forma aproximada, se pode dizer que seu início ocorreu entre a "República de Cromwell" (1649-1659) e o reinado de Guilherme III, o "rei holandês", que governou a Inglaterra entre 1689 e 1702. Cromwell aumentou o poder naval da Inglaterra, fez guerra e venceu a Holanda (1652-1654) e a Espanha (1654-1660), as duas grandes potências marítimas do século XVII, e conquistou a ilha da Jamaica, em 1655, criando a primeira colônia do futuro Império Britânico. Além disso, Cromwell editou, em 1651, o 1º Ato da Navegação, que fechou os portos ingleses aos navios estrangeiros e se transformou no primeiro ato mercantilista agressivo da Inglaterra, fechando as fronteiras de sua economia nacional.

Três décadas depois, Guilherme III enfrentou e venceu a França na Guerra dos 9 Anos (1688-1697), iniciou a Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1712) e conquistou e submeteu Irlanda e Escócia. Ao mesmo tempo, no campo econômico, promoveu uma "fusão revolucionária" das instituições financeiras holandesas - que eram mais avançadas - com as finanças inglesas, criando o Banco da Inglaterra e um novo sistema de financiamento da dívida pública inglesa, atrelado à bolsa de valores e ao sistema de crédito da banca privada. Uma "revolução financeira" que deu à Inglaterra um poder de fogo econômico e militar - em qualquer lugar do mundo - muito superior ao das demais potências europeias.

Foi nesse período que William Petty (1623-1687) - o pai da economia política clássica - escreveu dois ensaios que revolucionaram o pensamento econômico do século XVII: o "Tratado sobre Impostos e Contribuições", publicado em 1662, e a "Aritmética Política", publicado depois da sua morte, em 1690. No momento em que Petty publicou sua obra, a Inglaterra ainda era uma potência de segunda ordem e se sentia cercada pela Holanda, Espanha e França. Essa era sua preocupação fundamental, quando formulou o conceito de "excedente econômico", e estabeleceu uma relação direta entre o tamanho desse "excedente" e o poder internacional de cada país.

O que Petty não propôs nem previu, foi que a Inglaterra virasse uma potência agressiva, e que seu expansionismo se transformasse num motor fundamental para o próprio crescimento do "excedente interno" da economia inglesa, consagrando uma estratégia desenvolvimentista pioneira na história do capitalismo.

Basta dizer que a Inglaterra participou de 110 guerras - entre 1650 e 1950 - dentro e fora da Europa, e financiou esse seu expansionismo bélico, depois da "revolução financeira" de 1690, com a sua "dívida pública" que cresceu de 17 milhões de libras em 1690, para 700 milhões em 1800, sem perder, em nenhum momento, a sua "credibilidade" nacional e internacional.

Resumindo e apressando a história, já é possível identificar alguns traços fundamentais e específicos desse "desenvolvimentismo inglês":

1) O desenvolvimento inglês foi ligado umbilicalmente à expansão do poder internacional da Inglaterra, e essa expansão foi muito importante para o aumento da "produtividade" e do "excedente" da economia inglesa.

2) Nesse contexto, pode se entender porque as guerras e a "preparação para a guerra" ocuparam um lugar tão importante no desenho estratégico do desenvolvimentismo do estado e dos capitais ingleses.

3) O expansionismo inglês nunca foi liderado pela indústria ou pela burguesia industrial, e sim pelas suas elites ligadas à terra, às armas e às finanças.

4) A estratégia de desenvolvimento da Inglaterra seguiu sendo basicamente a mesma, antes e depois da crítica ao mercantilismo, da economia política clássica, e também, antes e depois da "revolução industrial".

5) O próprio protecionismo de Cromwell se manteve até o século XIX, e só foi abandonado depois que a Inglaterra já era a maior potência militar e econômica mundial.

6) A finança, a dívida pública e a imposição progressiva da libra como moeda do "território econômico supranacional" da Inglaterra, foram os principais instrumentos de poder responsáveis pelo sucesso internacional do capitalismo inglês.

7) Por fim, o desenvolvimentismo inglês não teria sido o mesmo sem a complementaridade dos EUA, que foi sua principal fronteira de expansão financeira, e depois se transformou no herdeiro direto desse mesmo modelo inglês de desenvolvimento e expansionismo contínuo.

Agora bem: esse "desenvolvimentismo inglês" é o único caminho possível de sucesso? Não. Ele pode ser seguido por qualquer país? Também não. De qualquer forma, o importante é entender que este foi o caminho seguido pelas duas maiores potências liberais da economia capitalista internacional.



(Vide: P.J. Cain and A.G. Hopkins, "British Imperialism, 1688-2000", Longman, London, 2001)



José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007.

Bancos estão no fio da navalha


Por Martin Wolf - Valor 25/04


Queremos nos salvar deles. Mas "os desenvolvimentos na região do euro continuam sendo o principal risco para a estabilidade financeira mundial. Recentes medidas importantes de política [econômica] trouxeram um pouco do alívio que os mercados financeiros tanto precisavam, já que os spreads soberanos diminuíram, os mercados de financiamento bancário reabriram e os preços das ações se recuperaram. No entanto, ainda podem ocorrer novos contratempos. Existem riscos significativos à frente e as políticas precisam ser ainda mais fortalecidas para assegurar e arraigar a estabilidade financeira". É assim que o Relatório de Estabilidade Financeira Mundial (GSFR, na sigla em inglês) do Fundo Monetário Internacional (FMI) avalia o progresso em direção ao que chama, de forma otimista, de "jornada pela estabilidade duradoura". Muitos se dariam por satisfeitos com algo bem menos ambicioso: só alguns anos de estabilidade já seriam um prazer inesperado.

O mais recente Panorama Econômico Mundial do FMI, também divulgado na semana passada, traz recomendações sensatas: "É [...] crucial romper a realimentação adversa que ocorre entre o crescimento abaixo da média, a deterioração das posições fiscais, o aumento das necessidades de recapitalização e a desalavancagem. O Banco Central Europeu (BCE) deveria adotar medidas adicionais de flexibilização quantitativa para assegurar que a inflação se desenvolva de acordo com sua meta no médio prazo e para proteger-se contra riscos deflacionários, também facilitando, portanto, os ajustes tão necessários na competitividade. Além disso, [...] as autoridades bancárias deveriam trabalhar juntas [...] para monitorar e limitar a desalavancagem de seus bancos em casa e no exterior."

Vamos resumir. Primeiro, ainda é fácil identificar tanto os riscos como, não menos importante, a situação dos bancos, particularmente tendo em vista sua íntima relação com papéis soberanos fragilizados. Segundo, o crescimento é demasiado lento e a política monetária do BCE, muito rigorosa. Por fim, a inflação precisa subir nos países mais competitivos, para facilitar o ajuste entre os países-membros. Se o FMI for convocado para oferecer auxílio financeiro aos países-membros usando os recursos adicionais que obteve, suas condições para a região do euro precisam ser compatíveis com esses argumentos. Não é suficiente castigar os países mais fracos. O próprio regime de políticas econômicas precisa mudar.

Outro ponto importante é que a crise está sujeita a riscos políticos cada vez maiores. A queda do governo holandês e a vitória de François Hollande no primeiro turno da eleição presidencial francesa demonstram isso. As ruas podem sobrepujar o "establishment". Esses receios já podem ser suficientes para provocar outra profecia autorrealizável da crise. Até a França poderia ser arrastada. O jogo, então, poderia acabar.
É encorajador que a região do euro de fato tenha agido, quando confrontada com o risco de desmoronamento financeiro no fim de 2011. As operações de refinanciamento de longo prazo do BCE reduziram as tensões de financiamento e contiveram o risco de falências bancárias. Novos governos em países sob pressão vêm adotando reformas substanciais. Irlanda e Portugal tiveram progressos em seus programas de ajuste. A Grécia negociou uma reestruturação das dívidas. Houve progressos quanto à supervisão dos desequilíbrios internos, sem limitações apenas aos desequilíbrios fiscais. O "muro de proteção" financeira da região do euro contra contágios foi fortalecido.

Em resumo, destaca o GSFR, os riscos econômicos foram de fato reduzidos. Infelizmente, os riscos de estabilidade financeira continuam, ressalta o relatório. Um aspecto particularmente importante desses riscos é o de maior desalavancagem nos bancos. Isso é necessário, já que seus balanços patrimoniais estão inchados. Mas é economicamente perigoso.

No que o GSFR chama de seu "cenário atual de políticas", 58 grandes bancos com sede em países da União Europeia (UE) poderiam encolher seus balanços patrimoniais em até €2 trilhões até o fim de 2013, o que representa quase 7% dos ativos totais. O impacto na oferta de crédito da região do euro seria de apenas 1,7% dos créditos por vencer, mas esse declínio estaria concentrado no que o relatório chama de países de "alto spread", o que torna ainda mais difícil sua volta a um crescimento liderado pelo setor privado. Outras prováveis vítimas são as economias emergentes da Europa Central e do Leste Europeu. Mesmo sob o que chama de "cenário integral de políticas ", que inclui uma gestão mais ativa da crise, reestruturação dinâmica dos bancos e um "guia para uma união monetária mais integrada fiscal e financeiramente", a queda nos ativos dos bancos seria de US$ 2,2 trilhões.
Para conter os perigos de uma desalavancagem desordenada, seria necessário injetar capital nos bancos, inclusive usando os novos fundos de auxílio financeiro. Mas mesmo isso não romperia o laço nocivo entre bancos e papéis governamentais enfraquecidos. Até 12,4 % dos ativos consolidados das "instituições de depósitos" italianas - um volume igual a 32% do Produto Interno Bruto (PIB) projetado para 2012 - consistem de títulos do governo italiano. Na Espanha, os números correspondentes são 7,7% dos ativos e 26,5% do PIB. A combinação de papéis soberanos vulneráveis e bancos expostos continua perigosa. De fato, o generoso financiamento do BCE fortaleceu essa ligação. Esse remédio tem efeitos colaterais perigosos. Mas precisa ser ministrado, tendo em vista o desejo de tantos estrangeiros em reduzir sua exposição. Quase metade dos títulos da dívida pública italiana está em mãos de investidores no exterior. Caso se livrem dos títulos, os papéis estão destinados a acabar em mãos italianas.

A crise financeira expôs a debilidade de qualquer união monetária entre países soberanos, particularmente a dificuldade de promover ajustes e a falta de um banco central apropriado. Também expôs a debilidade da atual estrutura da região do euro. Por último, mas não menos importante, expôs as debilidades das políticas e instituições de seus países-membros - particularmente na regulamentação financeira -, de seus bancos, da gestão das finanças públicas e de seus mercados de trabalho. Infelizmente, o tamanho da crise tornou necessário remediar o que podia ser remediado, sob imensa pressão. A cada estágio, a região do euro fez mais do que seria de se esperar, no entanto, isso não foi suficiente.

As prioridades imediatas, contudo, são claras: dar aos países em dificuldade o tempo e a oportunidade para que ajustem suas economias e, portanto, voltem à estabilidade. Minha leitura das análises do FMI é que esses países vêm obtendo progressos dolorosos. Mas é preciso fazer muito mais. Acima de tudo, o crescimento precisa ser reiniciado, para que os encargos com dívidas governamentais e privadas e a ligação entre esses papéis e os bancos seja administrada. O desafio continua imenso. Esforcem-se ainda mais, para o bem de todos. (Tradução de Sabino Ahumada)



Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Inadimplência estoura


Inadimplência segue em alta e Bradesco breca o crédito

Valor 24/04

Num momento em que os bancos privados estão sob pressão para reduzir as taxas de juros, o Bradesco mostra que continua a conviver com a alta dos calotes. Com o aumento da inadimplência no período entre janeiro e março, as despesas com provisões para devedores duvidosos na instituição atingiram R$ 3,09 bilhões, um crescimento de 30,1% na comparação com igual trimestre de 2011. O estoque de crédito ficou praticamente estável em relação ao quarto trimestre de 2011, com leve alta de 0,4%, para R$ 269,7 bilhões (sem avais, fianças e outros).

A comparação entre o fim do ano, um período tradicionalmente mais forte para o crédito por causa do 13º salário, é sempre pouco precisa para indicar tendências. Mas, de janeiro a março do ano passado, a carteira de empréstimos do Bradesco tinha crescido mais: 4% em relação ao período encerrado em dezembro de 2010. "No primeiro trimestre, apenas o consignado (+ 3,3%) e o financiamento imobiliário (+10,3%) tiveram uma expansão significativa em relação a dezembro", escreveram ontem os analistas do Goldman Sachs em relatório. Em 12 meses, o crescimento do estoque de empréstimos no Bradesco foi de 12,4%. O resultado disso foi também uma expansão mais modesta do lucro líquido no primeiro trimestre, que cresceu 3,4% em relação ao mesmo período de 2011, para R$ 2,79 bilhões. Em relação ao quatro trimestre de 2011, o crescimento foi de 2,5%.

A piora na qualidade da carteira deveu-se principalmente ao maior atraso no pagamento das pessoas físicas e das micro, pequenas e médias empresas. A inadimplência total acima de 90 dias atingiu 4,1%, com aumento de 0,2 ponto percentual em relação ao quarto trimestre de 2011. Na comparação com igual trimestre de 2011, a alta foi de 0,5 ponto percentual.

O banco prevê que o ano termine com uma taxa de inadimplência de 3,9%, igual à registrada em dezembro do ano passado. Segundo Luiz Carlos Angelotti, diretor-gerente do banco, o índice já deve mostrar estabilidade ao longo deste trimestre, com redução a partir de julho. O banco espera uma estabilização do volume de pagamentos atrasados desde agosto do ano passado, mas os índices só têm crescido, acompanhando a tendência do sistema financeiro.

Em teleconferência com jornalistas, Angelotti não descartou a possibilidade de nova redução das taxas de juros de algumas linhas como forma de se defender da concorrência. "Estamos avaliando. Novas providências devem ser adotadas." Diante da estratégia mais agressiva dos bancos públicos, o executivo afirmou que o objetivo do Bradesco é ao menos manter a participação de mercado atual no crédito, de 12%.

O que contribuiu para o resultado do banco foram as operações de tesouraria, a desaceleração dos gastos administrativos e o resultado da seguradora do grupo. A Bradesco Seguros representou 32% do resultado do banco, contra 28% no primeiro trimestre de 2011 e 31% no quarto trimestre.

Depois de abrir mais de mil agências no ano passado, os gastos administrativos do banco começaram a entrar em rota de queda. No primeiro trimestre deste ano, houve uma redução de 8% nos gastos administrativos e de pessoal na comparação com o último trimestre de 2011. "O banco buscará compensar a pressão nas margens com a maior busca por eficiência", disse Angelotti.

Com os problemas enfrentados pelo crédito, o retorno sobre o patrimônio líquido do banco encerrou março em 21,4%, com uma queda de 2,8 pontos percentuais ante igual período de 2011 e estável (- 0,1 ponto percentual) em relação ao quarto trimestre.

O ritmo mais vagaroso da expansão do crédito divulgado pelo Bradesco pode ser a tônica do que está por vir ao longo desta semana nos balanços dos demais bancos privados, explicando também a campanha que o governo iniciou pela redução das taxas de juros cobradas nos empréstimos. Hoje é a vez de o Itaú Unibanco mostrar seu balanço, seguido pelo Santander Brasil na quinta-feira.

Na quarta-feira, o Banco Central (BC) divulgará o relatório das operações de crédito do sistema financeiro nacional em março. Até fevereiro, os dados oficiais indicavam uma expansão de 0,2% do crédito no acumulado do ano e de 17,3% em 12 meses. Mas os bancos públicos vinham mais acelerados, com alta de 0,8% no ano e de 22,2% em 12 meses. Com as recentes campanhas de redução do custo do crédito, Banco do Brasil e, principalmente, Caixa Econômica Federal podem acabar roubando mercado dos bancos privados, dependendo do contra-ataque que Bradesco, Itaú e Santander montarem.

Com inadimplência em alta, lucro do Itaú cai 3% no 1º trimestre

FSP 24/03

O Itaú Unibanco informou nesta terça-feira que teve lucro líquido de R$ 3,426 bilhões no primeiro trimestre, queda de 2,95% na comparação com o mesmo período de 2011 e retração de 6,93% ante o quarto trimestre do ano passado. A instituição trabalha com a maior taxa de inadimplência em mais de dois anos, em meio a um cenário de redução dos juros bancários.

Já o lucro líquido recorrente (excluindo ganhos e perdas extraordinárias), atingiu R$ 3,544 bilhões entre janeiro e março, redução de 2,6% em relação ao mesmo período do ano anterior e de 5,4% frente ao trimestre anterior.

"Essas reduções devem-se ao continuado cenário de aumento da inadimplência na economia brasileira que impacta a qualidade do crédito", informou no comunicado.

Os pagamentos com atraso acima de 90 dias atingiram 5,1% do total de empréstimos, crescendo 0,2 ponto percentual em relação a dezembro de 2011 e 0,9 ponto percentual em relação a março do ano anterior. A taxa é a maior desde dezembro de 2009. No caso do consumidor pessoa física, a inadimplência ficou em 6,7%, pior resultado desde março de 2010, quando ficou no mesmo nível.

Diante desse cenário, o banco elevou o valor reservado para créditos duvidosos, em que há risco de calote. A cifra cresceu 37,7% na comparação com o mesmo período do ano passado, para R$ 6,03 bilhões, e pesou sobre o desempenho do grupo no trimestre.

Preocupante, o dado sinaliza que será difícil para as instituições financeiras, especialmente as privadas, reduzir agressivamente os juros e elevar a oferta de crédito no país, como propagam Banco do Brasil, Caixa Econômica e o governo Dilma.

A carteira de crédito, incluindo operações de avais e fianças, alcançou o saldo de R$ 400,519 bilhões em 31 de março, com acréscimo de 0,9% em relação ao saldo do quarto trimestre de 2011 e de 16,1% em relação ao mesmo período do ano anterior.
No segmento de pessoas físicas, os destaques no trimestre foram as carteiras de crédito imobiliário e de crédito pessoal, com evoluções de 8,5% e 6,5%, respectivamente.

Entre pessoas jurídicas, houve crescimento de 1,1% no trimestre.

Os ativos totais do Itaú Unibanco somaram R$ 896,8 bilhões entre janeiro e março, alta anual de 15%, enquanto o retorno sobre patrimônio líquido médio anualizado caiu de 22,7% para 19,3% em 12 meses.

Calotes em alta derrubam lucro do Itaú Unibanco



Valor 25/04

Depois de arranhar os números do Bradesco, a inadimplência deste começo de ano deixou marcas também no balanço do Itaú Unibanco, divulgado ontem.

O lucro líquido do maior banco privado do país recuou para R$ 3,42 bilhões no acumulado de janeiro a março, uma queda de 2,96% na comparação com igual período de 2011. "A inadimplência é o ponto de maior atenção [do banco] agora. O crescimento dos pagamentos em atraso tem sido muito grande desde 2010", disse Rogério Calderón, diretor de relações com investidores do Itaú, em teleconferência com analistas.

O banco registrou no trimestre despesas de R$ 6 bilhões para cobrir os pagamentos em atraso, que estão em ascensão no Itaú desde setembro de 2010. O índice de inadimplência encerrou março em 5,1% do total da carteira de crédito, com alta de 0,2 ponto percentual na comparação com dezembro.

Analistas de diversas casas manifestaram preocupação com a tendência dos calotes no Itaú. As ações caíram 1,06%, num dia em que o Ibovespa subiu 0,7%. E a notícia para os investidores não foi das mais animadoras: a qualidade da carteira de empréstimos ainda vai piorar mais. "A inadimplência ainda crescerá nos próximos dois trimestres. E, depois, a queda será mais lenta do que o crescimento que houve", afirmou Calderón.

Uma pista disso é que os atrasos de curto prazo (que vão de 15 a 90 dias) permanecem em elevação. No caso das pessoas físicas, atingiu os 7,9% - aumento de um ponto percentual sobre dezembro.

O Itaú Unibanco fez questão de destacar que a deterioração dos atrasos torna difícil atender o pleito do governo de reduzir os spreads bancários. "O banco gostaria de poder reduzir mais as taxas de juros, mas enxergamos a inadimplência ainda em alta", acrescentou o executivo.

O relatório do Itaú destacou que o spread líquido do banco, já descontadas perdas com inadimplência, ficou em 7,4% em março, com uma queda de 0,6 ponto percentual em relação a dezembro -o spread bruto ficou em 13,5%. A redução, disse Calderón, se deve ao crescimento da inadimplência, que já vem corroendo parcela dos ganhos das instituições financeiras. O Itaú fez questão de evidenciar em sua divulgação de resultados o crescimento da inadimplência e a consequente redução do spread líquido. E fez isso levando em conta toda a polêmica atual em torno da redução dos spreads bancários. Analistas aventaram a hipótese de que os bancos poderiam lançar mão de provisões mais caprichadas, com consequente redução do lucro nesse contexto.

No entanto, embora as despesas com provisões estejam em ascenção em termos absolutos, o volume do estoque de provisões como proporção dos créditos em atraso - conhecido como índice de cobertura da carteira - está em queda no banco desde setembro de 2010. Chegou agora a 148% dos atrasos acima de 90 dias, com uma queda de quase 50 pontos percentuais desde setembro de 2010, quando a instituição financeira começou a sentir a inadimplência. E essa redução do índice vem num cenário de crescimento minguado do crédito, ou seja, é ditada pelo aumento da inadimplência.

Diante dos pagamentos em atraso, o Itaú decidiu desacelerar os desembolsos de novos créditos. Em relação a dezembro, a carteira de financiamentos e empréstimos (sem avais e fianças) teve um crescimento de 0,55%, para R$ 347,3 bilhões, puxado por empresas.

Nas operações de varejo, o banco não apresentou crescimento, e até encolheu no caso das transações de veículos e com cartão de crédito. Em relação a março de 2011, a carteira de empréstimos teve uma expansão de 14,4%.

Apesar dos números mais fracos, o banco optou por ainda não mudar a projeção de expansão da carteira neste ano, que está entre 14% e 17%. Eventuais mudanças, segundo Calderón, serão feitas em meados do ano.

Enquanto as condições de crédito pioraram, o Itaú Unibanco mostrou uma melhora de eficiência no primeiro trimestre deste ano. O índice de eficiência - que mede o quanto um banco precisa gastar para gerar receitas - encerrou março em 44,5%, melhor patamar dos últimos oito trimestres. Em dezembro, esse indicador estava em 47%. Quanto menor o índice do banco, mais eficiente ele é.

Concluída a integração de Itaú e Unibanco, que se uniram em 2008, o banco quer chegar a 2013 com um índice de eficiência de 41%. "As despesas administrativas caíram 10,6% (R$ 405 milhões) e as despesas de pessoal aumentaram 2,5% (R$ 84 milhões) no trimestre", informou o banco em relatório.

Novo perfil dificulta previsão de inadimplência


Os bancos podem até tentar, mas como bem sabem os profetas, prever o futuro não é tarefa das mais fáceis. Que o diga o Itaú, que viu uma salto inesperado da inadimplência corroer seus resultados. "Houve uma redução do crescimento do país, o que não era esperado", disse Rogério Calderón, diretor de relações com investidores do Itaú Unibanco.

A consequência é que os modelos de análise de risco de crédito, ferramenta estatística usada pelos bancos para projetar a inadimplência das carteiras, passam por revisão. "Os modelos são sempre revisitados. Essa desaceleração do crescimento já nos levou a uma mudança do modelo no fim de 2010 e início de 2011. Reduzimos a aprovação de cartão de crédito e de financiamento de veículos, por exemplo", disse.

O caso do Itaú serve de exemplo para um problema que atormenta o sistema bancário brasileiro: como adaptar os modelos de análise de crédito a um mercado que é radicalmente diferente do visto no passado?

"Nos últimos anos, o mercado de crédito passou por uma mudança estrutural grande. As alterações dos modelos precisam acompanhar essas transformações", diz o professor Alberto Borges Matias, da Universidade de São Paulo. No coração dessa mudança, ele posiciona a entrada das classes C e D no mercado e a concentração do sistema em poucos participantes.

Como os modelos de risco são essencialmente baseados no passado, fica difícil acertar em meio às mudanças qual é o perfil do tomador que vai dar calote. Segundo um executivo da área de crédito de um grande banco brasileiro, a onda de novos participantes do sistema financeiro, com um comportamento distinto do observado historicamente, exige que as instituições financeiras refinem as modelagens no critério de renda. "A arte está em calibrar seu apetite de risco. Não é sempre que se acerta nessa medida", diz.

"Sistemas que explicavam a inadimplência com maior enfoque no desemprego já não funcionam. Algumas variáveis do passado já não se aplicam", diz Wermeson França, economista da LCA Consultores. Ele acredita que o comprometimento da renda deve ganhar espaço como critério usado na concessão de empréstimos.

É justamente esse critério que vem sendo reforçado no financiamento a veículos. Se em 2010, os bancos costumavam exigir que o cliente tivesse uma renda superior a três vezes o crédito contratado, hoje essa relação é de quatro vezes, conta Antonio Carlos Altheim, da concessionária Volkswagen Corujão, em Curitiba.

A mudança no perfil da classe média também é um fator que dificulta a previsão de calote. "A antiga classe média tinha sempre um lastro para fazer caixa. Era um segundo carro, um terreno, um dinheiro com parente... A classe média de hoje recorre a mais crédito quando falta dinheiro no caixa", diz Nicola Tingas, economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi).




O paradoxo da poupança



Por Marcelo Côrtes Neri - Valor 24/04

Mistérios são frutos da falta de conhecimento. Nossa ignorância sobre poupança impressiona pela sua centralidade ao desenvolvimento do país. A taxa de poupança doméstica brasileira é metade da chinesa e um quarto da taxa familiar deles.

Nosso parco conhecimento sobre poupança é restrito à área macro, destaque aos estudos de João Issler e Samuel Pessoa. Trabalhos microeconométricos, mesmo tabelinhas descritivas são raros aqui, contrastando com a riqueza de estudos sobre pobreza. A ONU escolheu o Brasil como sede do International Poverty Center, seu think tank global no tema.

Há tempos me interessei pelo tema poupança. Minha tese de mestrado na PUC foi sobre o boom de consumo do Cruzado. Fui a Princeton estudar com Angus Deaton, o maior especialista vivo no tema. Ganhei de brinde aulas com Ben Bernanke, John Campbell e cia. Não foi pela falta de bons guias que perdi o rumo da poupança. O fato é que me juntei à bela manada de pesquisadores sobre pobreza e desigualdade, antes a mania era inflação.

Seria falta de dados? O Brasil recordista mundial de inflação teve sempre forte demanda por pesquisas de orçamento familiares (POF). POFs permitem incorporar efeitos-substituição de aumentos de preço, gerando índices de inflação mais precisos e baixos. O governo deveria ter financiado mais POFs, nem que fosse só para pagar menos correção monetária na dívida pública. Pelo menos hoje dispomos de POFs nacionais que permitem não só estimar os determinantes de poupança, como medir melhor indicadores de pobreza e de desigualdade.
Seria a acumulação de poupança tema de sociedades ricas? A literatura de desenvolvimento nega. O jovem agricultor indiano que poupa frente às intempéries climáticas, ou sofre as consequências de não fazê-la, é figurinha fácil nos estudos internacionais. A anedota do campo é que há mais estudos sobre poupadores rurais indianos do que entrevistados em pesquisas domiciliares sobre o tema.

A baixa taxa de poupança familiar inibe o financiamento do investimento requerido para sustentar altas taxas de crescimento. O Brasil encontra-se num círculo virtuoso onde democracia, equidade e crescimento se retroalimentam. Agora a minha positividade é inversamente proporcional com a perspectiva de taxa de poupança das famílias. Nossa taxa condicionada às suas causas centrais é ainda menor. Senão vejamos:

Desigualdade em queda inibe a poupança. Famílias mais pobres, em particular naquelas em que os filhos estudaram mais tendem a consumir uma parte maior de sua renda. Na década passada a renda da metade mais pobre cresceu 588% mais que a dos 10% mais ricos. A desigualdade de renda brasileira continua caindo pelo efeito combinado de melhoria na distribuição de educação e de programas sociais.

Poupança precaucional é desincentivada pela crescente estabilidade macroeconômica e pela ampliação do Estado de bem-estar. Para além de melhora das rendas correntes, elas provocam redução dos riscos de renda das famílias. A conquista do "investiment grade" e os novos programas sociais sob a égide do Brasil Sem Miséria implicam menor motivação a poupar. Se redistribuir é preciso, Bolsa Família com incentivos à poupança, tipo fundos de pensão, também é preciso.

Envelhecimento diminui a poupança. Na teoria do Ciclo de Vida do Nobel Franco Modigliani, idosos despoupam, em particular sob nossas regras constitucionais. Na transição demográfica em curso, a população idosa cresce três vezes mais rápido que a total. O aumento de renda dos idosos anunciado pelo gatilho do salário mínimo, acaba de disparar reajuste de 14%, prova fumegante do nosso viés gerocrático, ferindo de morte a poupança.

Juros mais baixos, em particular na captação, desestimulam a poupança. As sucessivas quedas da Selic e a pressão sobre os spreads bancários configuram outro viés de baixa poupança.

Crédito é despoupança. Apesar da razão crédito/PIB ter dobrado nos últimos oito anos, é ainda baixa para padrões internacionais. A diminuição das restrições de crédito como no consignado são exemplares.

Fatia do trabalho e formalização maiores desestimulam a poupança, dadas garantias do aviso prévio, FGTS e seguro desemprego.

Minha Casa, Minha Vida sem incentivos à acumulação prévia também. Países quase sem crédito imobiliário, como Japão e Itália, apresentam taxas de poupança financeiras mais altas, voltadas à compra prospectiva de imóveis. Por outro lado, imóveis (e educação) sintetizam bem o hábito construído ao longo de décadas de instabilidade inflacionária de alocar o binômio poupança/investimento em ativos reais.

Otimistas por natureza, como na fábula da cigarra e da formiga, poupam menos. Em quatro pesquisas do CPS/FGV, somos tetra campeões mundiais de felicidade futura. Não há sinal de queda do brasileiro, profissão esperança.

Paradoxalmente, quanto mais otimista sou com as conquistas tupiniquins em desigualdade, incertezas, informalidade, trabalho, longevidade, juros e spreads, crédito e habitação; mais pessimista fico com as perspectivas da poupança das famílias brasileiras. Em tempos de nova classe média e de inevitável mexida na caderneta, é preciso inovar nas políticas pró-poupança



Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, Fundação Getulio Vargas. Autor dos livros "Ensaios Sociais", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Microcrédito, o Mistério Nordestino e o Grammen brasileiro". mcneri@fgv.br.

Câmbio e soja provocam alta de projeções para IGPs



Por Arícia Martins - Valor 24/04
De São Paulo

A recente depreciação do câmbio, aliada à alta da soja no mercado internacional, é o que está provocando revisões para cima nas projeções para a inflação dos Índices Gerais de Preços (IGPs) em 2012 observadas no boletim Focus divulgado pelo BC, avaliam economistas consultados pelo Valor. O mercado elevou de 4,84% para 4,91% as estimativas para o IGP-M, sétimo aumento semanal consecutivo, de acordo com o Focus Para o IGP-DI, o aumento foi mais expressivo, de 4,89% para 5,05%.

Os IGPs têm 60% de sua composição atrelada aos preços no atacado - muitos deles cotados no mercado internacional - e, portanto, respondem mais à variação da moeda americana, que tem se valorizado nas últimas semanas. O dólar deixou a casa de R$ 1,70 em fevereiro, subiu para cerca de R$ 1,80 em março e encerrou a semana passada cotado a R$ 1,87. Como o impacto desse movimento no varejo é diluído, a mediana das projeções para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 2012 se manteve em 5,08%.

Thiago Curado, da Tendências Consultoria, aumentou de 0,63% para 0,73% sua previsão para o IGP-M de abril após os dados das prévias do mês terem vindo acima do esperado. Segundo o economista, a quebra de safra de grãos do início do ano está surtindo efeito tardio sobre os preços da soja e do feijão, e o câmbio já afeta os produtos industriais. Na segunda medição do mês, a soja avançou 9,9%, enquanto os preços industriais subiram 0,71% e os agrícolas, 0,94%.

"É uma aceleração bastante acentuada", diz. Essa trajetória, no entanto, não deve atingir a inflação ao consumidor no médio prazo, sustenta Curado, já que tanto os preços industriais como agrícolas têm impacto indireto e defasado sobre o varejo.

"Em um primeiro momento, a alta da soja não tem maior impacto, mas como é um insumo básico, num segundo momento promove uma aceleração dos índices ao consumidor", pondera o analista, que colocou viés de baixa na previsão de 5,5% para o IPCA em 2012.

Segundo Daniel Lima, da Rosenberg & Associados, o mercado está reticente em revisar para cima projeções para o IPCA após a surpresa positiva no primeiro trimestre, quando o indicador acumulou elevação de 1,22%, mais de um ponto percentual abaixo dos 2,44% registrados em igual período de 2011.

Depois do resultado de março, quando o IPCA subiu apenas 0,21%, Lima cortou para 5,2% a estimativa para a alta do índice em 2012, mesmo após o reajuste de mais de 20% nos preços dos cigarros e aumento dos remédios. "Além disso, o impacto do dólar nos preços ao consumidor é diluído ao longo da cadeia", afirma.

Para os IGPs, no entanto, o cenário é de aceleração, diz ele. A soja, segundo Lima, subiu 8% em reais na média diária de abril contra março, puxando avanço de 4% de uma cesta de commodities agrícolas em igual período. "A soja tem mostrado alta consistente desde a segunda quinzena de dezembro."

Lendas urbanas



Por Antonio Delfim Netto - Valor 24/04

Para dar a dimensão adequada a algumas lendas urbanas que dominam certas análises da situação atual da economia brasileira, é preciso, de início, combinar algumas coisas:

1) que o desenvolvimento social e econômico não se faz sem um Estado constitucionalmente controlado, com instituições adequadas e capacidade para regular os mercados, particularmente, o financeiro;

2) que o desenvolvimento econômico depende da quantidade e qualidade dos fatores de produção que o país dispõe, e que, em condições normais de pressão e temperatura, a importação é, também, um fator de produção;

3) que a velocidade do crescimento depende do volume e da qualidade do investimento e, portanto, da distribuição do PIB produzido entre consumo presente e o que se destina ao investimento, ou seja, ao emprego e ao consumo futuros;

4) que no regime democrático essa distribuição não é um fato econômico determinado pelo mercado. É um fato político determinado pela urna. No regime de sufrágio universal, as duas instituições se autocontrolam e determinam a velocidade do crescimento econômico e da inclusão social civilizatória;

5) que devido à finitude dos fatores de produção internos e do limite do crédito para financiar as importações, não é permanentemente possível maximizar, ao mesmo tempo, o crescimento econômico e a inclusão social sem produzir ou um aumento da taxa de inflação, que anula e torna uma ilusão a inclusão social, ou um déficit em conta corrente não financiável, que acaba matando ao mesmo tempo o crescimento e a inclusão. O problema é físico e não ilidível por mágicas monetárias, fiscais ou cambiais; e

6) que os atuais modelos econômicos, como confessou o ex-presidente do Banco Central Europeu Jean-Claude Trichet (em conferência feita em março, na Harvard´s Kennedy School), não lhe deram o menor conforto (e não nos dão!): "o estado da arte da macroeconomia foi praticamente inútil para lidarmos com a crise que se iniciou em 2007". Isso significa que devemos ter muito cuidado e grande humildade quando declaramos que as ações da política econômica e social do governo produzem "distorções" medidas com relação a modelos abstratos, dos quais obviamente não podemos extrair recomendações normativas.

A primeira lenda urbana é a frequente afirmação que "não há nada de errado com nossa taxa de câmbio, pois ela reflete apenas o resultado natural das nossas vantagens comparativas". No exemplo do livro escolar, cada país se especializa: o Brasil, por hipótese, em produtos agrominerais, e a China em produtos industriais. É esse o futuro que queremos para o Brasil? Os países podem construir vantagens comparativas, como foi o caso do Brasil no passado e é hoje na China.

Quem tem dúvida sobre isso não deve perder o WP/12/79, do FMI, "The Global Welfare Impact of China", de Giovanni, J.-Levchenko e Zhang, J., onde se afirma que "o mundo, inclusive os países desenvolvidos, fica muito melhor quando o crescimento chinês favorece os atualmente desvantajosos setores competitivos".

A segunda lenda urbana é que nosso BC teria abandonado a política de metas inflacionárias, o que, "dado à experiência histórica vivida até 1994, pode colocar-nos numa rota hiperinflacionária". É claro que num regime de câmbio flutuante, quando a taxa de juro real interna é igual à externa, a taxa de inflação mais conveniente é a que for igual à de nossos competidores. Mas não há qualquer evidência empírica sólida que uma taxa de inflação acidentalmente acima da meta de 4,5%, que continua a ser perseguida pelo BC, seja prejudicial ao crescimento e ao emprego.

A terceira lenda urbana, que perturba o sono de alguns ingênuos adoradores da religião da plena liberdade de comércio, é a que leva a sério a OMC e jura que toda taxa de câmbio é de equilíbrio. O que mais poderia ser, se é o mercado quem a determina? E ainda se atribui ao Brasil a prática de "terrível surto protecionista que, se seguido por outros países, colocará em risco o crescimento mundial".

Essa afirmação é desmontada com os dados do "Trade Tensions Mount: The 10th GTA Report", do Global Trade Alert, de novembro de 2011, que incluem as medidas de intervenção no comércio de 19 países. As "tensões no comércio internacional crescem", mas o Brasil não é um caso especial ou notório, como revela a tabela abaixo. Na coluna A, estão registrados os números de 11 países cujas medidas contrariam o interesse do país, e na coluna B, o número de países afetados por suas medidas, exclusive medidas antidumping, antissubsídios e de salvaguarda.

Vemos que o Brasil (até o terceiro trimestre de 2011) havia sido atingido por medidas tomadas em 66 países e, por sua vez, tomado medidas que atingiram 131 países. No caso da China, os números são, respectivamente, 75 e 193. Os números mostram que não há nada que possa nos incriminar como "poderosos destruidores do equilíbrio mundial"...



Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A inadimplência bancária



Por Jairo Saddi - Valor 23/04

Recentemente, as ações dos bancos foram castigadas no mercado de bolsa. Além da eterna discussão sobre a redução do spread bancário, um fato pouco surpreendente vem chamando a atenção mais uma vez: a inadimplência elevada e o interesse do governo em fortalecer o crédito nos bancos oficiais como impulso ao desenvolvimento nacional. Segundo o discurso oficial, entre as razões pelas quais o juro básico já caiu 350 pontos, mas os spreads ainda não, está a inadimplência bancária.

De acordo com dados do Banco Central (BC), a inadimplência está hoje em 5,8% sobre o crédito total, sendo que a inadimplência das famílias aumentou de 5,7%, no início de 2011, para 7,6%, neste ano. Ao mesmo tempo, o nível de endividamento chegou a 43% da renda acumulada dos últimos 12 meses, bem acima dos níveis históricos de comprometimento de até 30% da renda mensal.

Voltou ao cerne, portanto, a preocupação com a inadimplência bancária. O primeiro grande problema téorico da inadimplência é a informação, uma vez que os bancos desconhecem quem são os bons devedores, ou, em outras palavras, não consegue distingui-los dos maus pagadores. Claro que na prática, o bom uso de sistemas de informação reduz esse problema, mas, em tese, toda informação positiva é ex-ante, enquanto a inadimplência é sempre um fato ex-post. Ademais, o banco simplesmente não pode controlar as ações do devedor, nem o ambiente de negócios em que ele está inserido, tampouco as crises com que pode se defrontar.

Os problemas que surgem da relação banco-devedor podem parecer triviais, mas são extremamente complexos e envolvem decisões do tipo: 1) escolher quem são os agentes econômicos que merecem crédito; e 2) decidir emprestar, na taxa de juros do mercado (e desejada pelo banco, na sua equação risco-retorno), ao melhor devedor, ou ao devedor que está disposto a aceitar tomar recursos àquela taxa.

É consenso que o sistema financeiro processa informação e serve como um meio de atenuar as assimetrias informacionais enquanto intermediário de crédito. O banco não conhece tudo sobre seus clientes, nem sobre a sua capacidade, ou integridade, de honrar seus débitos. Aliás, não dispõe de nenhuma informação a seu respeito. Pode-se dizer que ocorre assimetria informacional quando uma parte detém mais informação sobre outra, conceito que foi mais bem explicitado por George Ackerlof em relação a determinados produtos ou atributos de um dado bem, quando o consumidor não é capaz de pagar por eles. O exemplo dado por Ackerlof é o de um carro usado - nos EUA, "lemons" -, cujo vendedor dispõe de muito mais informação do que o comprador (por exemplo, se o carro foi batido ou se o motor está avariado).

Nos mercados de crédito, há assimetria informacional no sentido de que o devedor sabe mais sobre a sua capacidade de pagar pelo crédito do que o banqueiro, e aí há maior espaço para comportamentos oportunistas após a celebração do contrato - o que fatalmente acaba por elevar os custos da transação. Isso acarreta o que se conhece como "seleção adversa", ou seja, apenas os maus pagadores acabam "selecionando" os ofertantes de crédito.

Uma das formas tradicionais de mitigar a falta de informação é apelar para os chamados birôs de créditos - úteis se, e somente se, a informação for confiável, precisa e de fácil acesso. Resumidamente, estas são algumas características, reconhecidas pelo Banco Mundial como fundamentais para a avaliação correta do crédito de um consumidor ou empresa: 1) informação positiva (empréstimos em aberto, histórico de pagamento, ativos etc.), além de informação negativa (inadimplência ou fraude no pagamento); 2) informações gerenciais tanto do indivíduo como da empresa; 3) informações sobre o histórico de pagamentos e de compras, tanto dos varejistas como das companhias de serviço público, como telefonia, eletricidade, gás e água; 4) informações de seu histórico de crédito por, no mínimo, cinco anos consecutivos.

Para fortalecer o aumento do crédito no Brasil, é preciso ampliar o uso dos vários sistemas de informações e buscar a redução dos custos de transação. O Brasil precisa disso com urgência.



Jairo Saddi, pós-doutor pela Universidade de Oxford, professor de Direito do Insper

A luta da China para desacelerar-se



Por Yu Yongding - Valor 23/04

Na abertura da sessão anual do Congresso Nacional do Povo, o parlamento chinês, o premiê Wen Jiabao anunciou que a meta de crescimento econômico anual para 2012 era de 7,5%. Com a economia mundial ainda às voltas para recuperar-se, o anúncio por Wen de um encolhimento tão significativo no índice de expansão da China, naturalmente, provocou preocupações generalizadas por todo o mundo.

É importante destacar, no entanto, que Wen estava expressando uma política e não uma previsão de desempenho. O propósito de buscar um crescimento menor, explicou premiê, é "guiar as pessoas por todos os setores a focar seu trabalho na aceleração da transformação do padrão de desenvolvimento econômico e tornar o desenvolvimento econômico mais sustentável e eficiente".
Os investimentos em ativos fixos são o motor mais importante de crescimento da China. Como país em desenvolvimento com renda per capita anual inferior a US$ 5 mil, ainda há espaço significativo para a China aumentar seu estoque de capital. O ritmo de crescimento dos investimentos, contudo, é alto demais. A questão não é se a China precisa de mais investimentos, mas se a capacidade de absorção da China pode continuar a acomodar o elevado ritmo de crescimento dos investimentos visto nos últimos dez anos.

Nesse sentido, a relação entre investimentos e Produto Interno Bruto (PIB), que na China é próxima a 50% e está em alta, pode ser considerada como indicador da tensão que o investimento de capital fixo exerce sobre a economia. Não é completo exagero dizer que a capacidade da economia de absorver o crescimento nos investimentos chegou a seu limite.

A recente debacle dos trens de alta velocidade é um bom exemplo. Em 2003, a China construiu seu primeiro projeto de trem de alta velocidade. Foi um componente fundamental do pacote de estímulos econômicos de 4 trilhões de yuans (US$ 630 bilhões) lançado durante a crise financeira mundial de 2008 e 2009, de forma que os investimentos na construção de ferrovias de alta velocidade aumentaram a grandes passos. No fim de 2010, a rede em operação superava os 8 mil quilômetros, com mais 17 mil quilômetros em construção. Em contraste, todos os países ocidentais combinados levaram meio século para construir um total de 6,5 mil quilômetros. Diante de tal rapidez na construção, uma catástrofe era quase inevitável.

Quando o crescimento nos investimentos supera a capacidade de absorção da economia, isso leva à rápida deterioração na eficiência desses investimentos, o que por sua vez prejudica as perspectivas de crescimento de longo prazo. Atualmente, há evidências generalizadas disso na China. Para reverter essa tendência, em uma economia guiada pelos lucros, certa trégua no crescimento dos investimentos não é apenas necessária, mas inevitável.

Além da relação entre investimentos e PIB da China precisar ser reduzida a um patamar mais sustentável, um desafio igual ou mais importante é ajustar a estrutura dos investimentos. Por muitos anos, o segmento mais importante de investimento na China foi o de desenvolvimento imobiliário, que representa cerca de 10% do PIB e 25% dos investimentos totais. Os recursos, no entanto, precisam ser alocados a projetos que desenvolvam o capital humano, proporcionem bens públicos e alimentem a criatividade e inovação. Ajustar a estrutura de investimentos, contudo, inevitavelmente vai desacelerar o ritmo de crescimento dos investimentos, pelo menos no período de transição, e, portanto, desacelerar a expansão total do PIB.

O comércio internacional desempenhou papel central no desenvolvimento econômico da China nos últimos 30 anos. O mercado mundial, entretanto, não é mais capaz de absorver as gigantescas exportações chinesas, para não mencionar o impacto imediato das mazelas econômicas na Europa e Estados Unidos sobre a demanda por exportações. Além disso, o aumento nos custos da mão de obra e a valorização do yuan também vão minar o setor exportador da China, provocando a desaceleração da expansão do PIB neste ano.
 
Poucos negariam a necessidade de a China passar a exibir um crescimento econômico menor, porém melhor. O problema é que se a China quiser encolher a expansão do PIB dos 9,2% em 2011 para 7,5% em 2012, sem piorar o padrão de crescimento elevando ainda mais a alta relação entre investimentos e PIB, o crescimento anual dos investimentos precisa ser igual ou menor a esses 7,5%.

Um cálculo aproximado é suficiente para mostrar que, a menos que o governo esteja disposto a tolerar um aumento na relação entre investimento e PIB, atingir a meta de crescimento de 7,5% do PIB implica queda significativa no ritmo de crescimento dos investimentos. Para compensar o impacto negativo na expansão do PIB, também afetado pela limitação ao aumento das exportações decorrente da fraca demanda mundial, o consumo local precisa crescer de forma ainda mais acentuada, o que é difícil de imaginar. Em outras palavras, reduzir a alta do PIB para 7,5% sem tornar o padrão de crescimento da China ainda mais irracional é uma missão impossível.

Um cenário mais provável para 2012, portanto, é de crescimento menor do que em 2011, mas ainda significativamente acima de 7,5%. De forma correspondente, seu padrão de crescimento, puxado pelos investimentos, será ainda mais fortalecido, embora a um ritmo menor de crescimento. De outra forma, seria difícil evitar que a política provocasse uma aterrissagem brusca.

De fato, conseguir um índice de crescimento econômico mais moderado sem provocar um pouso brusco é um dos desafios mais complicados enfrentados pelo governo chinês. Uma aterrissagem brusca, simplesmente, não é uma opção a ser cogitada.

Com a posição fiscal do país ainda positiva, é difícil imaginar que a liderança chinesa seja tão teimosa na busca pela "aceleração da transformação do padrão de desenvolvimento econômico" a ponto de arriscar-se a deparar-se com tal opção. Mesmo se fosse, os governos locais, endividados e obcecados com o PIB, provavelmente lutariam para alcançar o maior crescimento possível para eles, seguindo apenas da boca para fora a convocação de Wen para desacelerar-se. É por isso que, apesar da meta oficial, a maioria dos economistas chineses ainda aposta em um índice de crescimento econômico bem acima dos 8% em 2012. (Tradução de Sabino Ahumada)



Yu Yongding é presidente da China Society of World Economics, ex-membro do comitê de política monetária do Banco do Povo da China e ex-diretor do Instituto de Economia e Política Mundial, da Academia Chinesa de Ciências. Copyright: Project Syndicate, 2012.