quarta-feira, 7 de julho de 2010

A Europa e o discurso da austeridade

Podemos acreditar piamente em equivalência ricardiana?

Por werter.macedo

O pensamento econômico dos novos clássicos postula aquilo que ficou conhecido como equivalência ricardiana.
Em uma famosa passagem de seu clássico trabalho “Princípios de Economia Política e Tributação”, o grande economista inglês David Ricardo sugeriu que a forma de financiamento do déficit não teria efeitos sobre o emprego pelo menos no longo prazo. E chegou a essa conclusão mediante um exercício mental que consiste na antecipação, pelos agentes econômicos, dos efeitos futuros das medidas econômicas.
Esse argumento seria retomado pelos novos clássicos e incorporado na noção de expectativas racionais. Apesar de toda a formalização, as idéias essenciais do pensamento e do debate econômico contemporâneo estão todas contidas no pensamento dos economistas clássicos.
Para David Ricardo, o financiamento dos déficits fiscais pela via do endividamento público não teria o condão de influenciar o nível de emprego porque os agentes econômicos interpretariam aquele aumento da dívida como uma postergação de aumentos futuros nos impostos e de redução futura na despesa pública.
E a informação relevante para os agentes econômicas seria a renda permanente, ou seja, a renda de longo prazo.
É essa idéia que parece inspirar as medidas de austeridade fiscal que estão implementadas na Europa que Belluzzo questiona no artigo abaixo publicado no jornal “Valor Econõmico”.

Vai na mesma linha das críticas de Paul Krugmann.

A Europa e o discurso da austeridade (Valor Econômico)

Por Luiz Gonzaga Belluzzo


Lá pelos idos de março, os mercados mostraram os dentes e jogaram às nuvens os spreads das dívidas soberanas dos periféricos europeus. Depois de um período de subterfúgios ideológicos e negaceios políticos, as lideranças europeias cederam às imposições da realidade.
Como é sabido, o programa da Eurolândia contou com a ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI) e envolveu compras de títulos públicos e privados pelo Banco Central Europeu (BCE), além de provimento de liquidez e interposição de garantias nos mercados interbancários, cujas conexões estavam obstruídas pelo chamado risco de contraparte.
Esse risco se manifesta sob a forma da recusa dos bancos emprestarem uns aos outros, desconfiados que o vizinho possa estar carregado de papéis ilíquidos ou encontra-se na iminência de passar para a insolvência.

Os frugais alemães aceitaram o inevitável, ainda que se recusem a admitir que a temperança de seus assalariados e pensionistas aliou-se aos destempero de seus bancos pródigos para vender bem e emprestar ainda melhor aos malditos gastadores gregos, espanhóis e portugueses.

Mais uma vez, tão logo resgatados pela vigorosa intervenção das agências do Estado encarregadas da gestão da moeda, do crédito e das finanças públicas, os senhores da banca cuidaram de transmutar a garantia pública em poder privado. Argúem, como sempre, as razões indisputáveis da ciência econômica (e quiçá os princípios universais da moral e dos bons costumes) para exigir um ajuste fiscal sem precedentes na economia da Eurolândia. A novidade das últimas semanas, dizem os economistas Laurent Jennaud e Gillaume Duval, é a adoção de políticas fiscais restritivas nos países que ficaram à margem dos processos de endividamento
excessivo - privado ou público.

A Alemanha pretende reduzir o déficit público de 5% para 3% até 2013, a Holanda projeta um déficit zero em 2015 e a França pretende alcançar 3% em 2013, escapando dos atuais 8%. A palavra de ordem é aplacar a desconfiança dos gestores privados da riqueza coletiva, atingindo indiscriminadamente virtuosos e pecadores.

Nos próximos meses, os rumos da economia europeia continuarão a depender das avaliações dos bancos e quejandos a respeito do "ajustamento fiscal" e da evolução do endividamento público nos países submergentes. Na visão dos pregadores da austeridade generalizada, o setor privado não reage aos estímulos fiscais, porquanto as expectativas de longo prazo estão insensíveis aos sinais emitidos pelo governo. Sendo assim, dizem eles, as projeções do setor privado - empresas e famílias - a respeito da evolução do déficit fiscal e do crescimento da dívida pública acentuam as antecipações pessimistas e não conseguem promover o crescimento da produção e do emprego.
Trata-se da hipótese sobre os "efeitos não keynesianos da política fiscal" que sustentam a irrelevância dos multiplicadores de renda e emprego gerados pela elevação do déficit do governo.

Os advogados da austeridade generalizada, diz o economista Roberto Tamborini, acreditam que, mesmo em uma situação recessiva, ocorre o fenômeno da expulsão do gasto privado pelo dispêndio público, chamado no jargão dos economistas de "crowding out". Assim, o reequilíbrio das contas públicas, ainda em uma conjuntura recessiva, libera recursos e, ao mesmo tempo,
infunde "confiança" ao setor privado. Creiam, infiéis gastadores!

Na contramão do pensamento purificador, os keynesianos temem a possibilidades de um duplo mergulho recessivo na Eurolândia, com efeitos desagradáveis na economia global. Ainda que essa trajetória indesejável não se realize, as perspectivas mais otimistas são de baixo crescimento para os próximos anos. Não é difícil imaginar, argumentam, que as políticas de redução do dispêndio e aumento de impostos resultem, ironicamente, na ampliação dos déficits, caso o gasto privado em consumo e investimento não responda à hipótese heroica e improvável dos economistas conservadores a respeito do "crowding out". Numa situação de desemprego elevado e capacidade ociosa idem, essa turma não acredita nas relações virtuosas entre austeridade fiscal e "recuperação da confiança".

Isso para não falar das agruras do povaréu - submetido aos rigores do ajustamento, depois de um período de euforia promovida pelo crédito fácil. Gregos, espanhóis e portugueses sofrerão as dores do cinto apertado: redução de salários, corte dos benefícios sociais, aumento de impostos, desemprego em alta. Aplicada numa economia balbuciante, essa receita poderá deprimir ainda mais o consumo e o investimento privados, contrariando a "reversão de expectativas" almejada pelos que advogam os programas de austeridade fiscal generalizada.

Sendo assim, os investidores, surpreendidos pelos efeitos adversos de seus clamores, elevam o prêmio exigido para absorver os papéis de dívida, sejam eles soberanos ou privados. Uma nova rodada de contração do crédito que não só reduz a capacidade de gasto das famílias e das empresas, como também compromete a própria capacidade dos Estados de emitir dívida nova e de administrar o estoque de endividamento existente.

2 comentários:

  1. Creio que não devemos crer (hehehe) piamente em nada sem questionar..

    Agora a interpretação apontada de Ricardo: "o financiamento dos déficits fiscais pela via do endividamento público não teria o condão de influenciar o nível de emprego porque os agentes econômicos interpretariam aquele aumento da dívida como uma postergação de aumentos futuros nos impostos e de redução futura na despesa pública."

    Pode ser re-interpretado de diversas maneiras chegando no mesmo resultado..

    Primeiro o que influenciaria o emprego seria a infraestrutura, se esta está mal não será a maquiagem que vai transformar a água em vinho, portanto passes de mágica governamental sem agir na estrutura podem não resolver sim..

    Segundo, os agentes poderiam prever certas coisas indiretamente como "se tivesse capacidade de prever"... Um conjunto de agentes irracionais pode sim agir como um conjunto de agentes racionais se o sistema se auto-alimentar com informação. Como bandos de passaros que parecem prever obstáculos: um avisando o outro..

    E terceiro, acho que há muitos keynesianos que não entenderam Keynes com profundidade. O Estado investir não significa Estado gastar como filho pródigo. O que o Estado deve fazer é investimento estatal: infraestrutura, educação, e suprir certas necessidades coletivas e ajustes finos no sistema.

    Nildson

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  2. Poderia haver outra solução?
    Digo no sentido de frear a queda do euro? Sim, a outra seria a retirada das laranjas podres da zona do euro. Infactível (segundo vários economistas, entre eles Krugmann) pela bagunça que acarretaria nos contratos interbancários etc, etc. Só restou, portanto, esta opção.
    O ajuste no mundo desenvolvido, para que eles fiquem do mesmo tamanho, está sendo feito a base de marretadas, parece. Já se prevê outra recessão do outro lado do Atlantico para 2011...

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